sábado, março 21, 2015
Wilson Roberto Vieira Ferreira
“Existem forças
em ação nesse filme. Referências sobre a morte estavam no roteiro original e
isso para mim é que é assustador”, disse o diretor Terry Gilliam sobre o filme
mais estranho da sua carreira, “O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus” (2009). Foi marcado para sempre pela morte de Heath Ledger no meio da produção do filme,
após atuar vivenciando dois fortes arquétipos ocultistas: o “Joker” no filme “Batman” e
o “Enforcado” no filme de Gilliam. Ironicamente a morte de Ledger confirmou o
forte niilismo gnóstico presente em “Dr. Parnassus” e mantido na sua última
produção “O Teorema Zero” (2014): um ex-monge budista faz sucessivas apostas
com o Diabo desde tempos imemoriais – o Bem e o Mal vistos como entidades
reversíveis, onde um precisa do outro para manterem-se relevantes. E os
personagens (e todos nós) seriam meras peças inocentes e prisioneiras de um
jogo que se confunde com a própria eternidade.
A
tradicional câmera inquieta com pontos de vista delirantes com lentes grande
angulares que deformam a perspectiva, criando atmosferas grotescas, é a marca
registrada do ex-integrante do grupo Monty Python Terry Gilliam. Tudo isso para
realçar um tema recorrente do diretor: heróis que através da força da
imaginação e da fantasia conseguem enfrentar e vencer realidades opressivas.
Mais uma vez, no filme O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus, estão presentes esses
elementos narrativos. Mas há algo mais que tornou esse filme de Gilliam
estranho e misterioso. O filme começa com um homem vestido como Mercúrio (ou
Hermes dos gregos ou Toth dos egípcios) anunciando a entrada do Dr. Parnassus,
um monge segurando uma flor de lótus, símbolo do misticismo oriental.
Essa
atmosfera misteriosa ainda se completa quando sabemos que no meio da sua
produção o ator Heath Ledger (o Coringa de Batman,
O Cavaleiro das Trevas) morreu de uma overdose acidental de medicamentos.
Se no filme anterior Ledger havia representado o Coringa, personagem
arquetípico carregado de forte simbolismo oculto, no filme de Gilliam o ator assume
outro forte arquétipo, o do Enforcado - seu personagem é encontrado pendurado
em uma ponte após Parnassus retirar a carta correspondente do Tarot.
Além disso, Gilliam rompe com o dualismo ou
maniqueísmo que sempre marcaram suas narrativas - o protagonista puro e inocente
contra um mundo opressor e corrompido. Pelo contrário, nesse filme vemos uma
visão do Bem e do Mal como entidades reversíveis, como dois lados de uma mesma
moeda que travam um jogo eterno onde os personagens inocentes são meras peças
de uma aposta que se confunde com a eternidade.
Veremos
como Terry Gilliam, dessa maneira, insere-se numa tradição herética como a dos
gnósticos maniqueos e cátaros que pensavam o Bem e o Mal ao mesmo tempo como
irreconciliáveis e equânimes: não há pureza e sabedoria que não resultem no seu
inverso (a corrupção), assim como não existe perfídia e maldade que não motivem
a existência do seu inverso – a bondade e fé.
O Filme
Dr. Parnassus (Christopher Plummer) foi um monge budista em tempos
imemoriais e vive há milhares de anos. Ele é o mestre de cerimônias de um velho
show itinerante decadente com figurinos vitorianos brilhantes e relíquias de
várias épocas. Os poucos espectadores que pagam para assistir ao show podem
atravessar um espelho mágico ondeencontram um mundo onírico onde realizam desejos e fantasias mais
íntimas, e têm a oportunidade de escolher entre a luz e as trevas, entre a
alegria e a melancolia.
Embora abençoado por esse dom de guiar a imaginação das pessoas,
Dr. Parnassus é assombrado por um segredo sombrio: Há muito tempo ele fez uma
aposta com o próprio Diabo em pessoa, Mr. Nick (Tom Waits, perfeito no papel) e
acabou ganhando a imortalidade como prêmio. Mais tarde, ao encontrar seu grande
amor, Parnassus faz novo acordo com Mr. Nick, trocando sua imortalidade pela
juventude, sob a condição de que quando seu primogênito completasse 16 anos, a
alma dele ou dela se tornaria propriedade do Diabo.
Sua filha Valentina (Lily Cole) está prestes a completar seus 16
anos e Parnassus se desespera procurando uma forma de evitar o destino iminente. Mr. Nick aparece para cobrar, mas ele está sempre disposto a fazer
novas apostas. Renegocia a promessa: dessa vez o vencedor será aquele que
converter cinco almas. Parnassus tentará usar seu espelho mágico para atrair
uma galeria de personagens que precisam ser regenerados – bêbados, mulheres
consumistas e bandidos mafiosos.
Nesse meio tempo, a trupe do Dr. Parnassus encontra um homem pendurado em
uma forca em uma ponte numa noite chuvosa. Seu nome é Tony (Heath Ledger) e possui estranhos
símbolos de magia negra desenhados em sua testa. Ele ainda está vivo, mas desperta sem
lembrar quem é e como parou naquela forca.
Incluído na trupe, Tony se mostra hábil em trazer espectadores
para o show de mágicas do Dr. Parnassus – mas sempre através de pequenas
mentiras ou falsas promessas. Com mais espectadores, Parnassus tem a chance de
conquistar as cinco almas para vencer a aposta com o Diabo. Cada vez mais o
filme se passa no universo onírico atrás do espelho onde se inicia uma surreal
corrida contra o tempo onde o Bem e o Mal, Parnassus e Mr. Nick disputarão palmo
a palmo cada alma dos incautos espectadores.
O que está por trás dos simbolismos?
Fica claro que o enredo gira em torno do tema clássico de Fausto,
no qual Dr. Parnassus faz diversas apostas com o Diabo ao longo da vida. Sobre
esse tema, Gilliam construiu camadas e camadas de simbolismos esotéricos e
ocultistas como pirâmides, a escada para as nuvens, o rio que conduz à vida
eterna, o palco do Imaginarium do Dr. Parnassus em xadrez tridimensional
maçônico, os simbolismos de magia negra desenhados na testa de Tony etc.
Enquanto isso, a inocente Valentina (alheia ao seu terrível
destino) folheia uma revista de decoração onde vê fotos de uma família
perfeita, desejando uma vida melhor pelos parâmetros da sociedade de consumo,
assim como os espectadores do show do Dr. Parnassus. Gilliam parece nos dizer
que todos esses simbolismos e imagens de consumo escondem uma realidade mais
profunda. São apenas formas de nos distrair de uma realidade fundamental: o Bem
e o Mal jogam constantemente e somos apenas joguetes nessas partidas sem fim.
Isso fica evidente quando Mr. Nick desdenha os simbolismos da
testa de Tony. “Nunca me envolvi com essa coisa de magia negra... Nunca fui
muito bom nisso”, diz o próprio Diabo. Para Dr. Parnassus e Mr. Nick, todos os
simbolismos são apenas iscas para captar a atenção das pobres almas que caem
nos seus jogos e apostas.
O niilismo de Gilliam (que fica ainda mais acentuado no seu
próximo filme O Teorema Zero – sobre
o filme clique
aqui) parece se associar ao dualismo da tradição de Zoroastro e Mani: o
cosmos vive a Queda desde a sua criação pela profunda cisão entre o Bem e o
Mal. Porém, um precisa do outro para existirem e manterem-se relevantes. Por
isso tudo é reversível.
Fica evidente no filme como ada ato resulta em um efeito perverso:
Tony era responsável por uma ONG filantrópica que transformou-se em instrumento
de lavagem de dinheiro de mafiosos russos; o amor de Parnassus pela sua filha
converte-se em objeto de aposta; todo amor, inocência e pureza reverte-se no
seu oposto. E o Diabo jamais quer uma vitória final – penalizado ao ver Dr.
Parnassus derrotado, sempre propõe uma nova aposta. Parnassus é um jogador
compulsivo, enquanto o Diabo quer manter a Banca.
O niilismo de Terry Gilliam é cruel: não importa qual a escolha
que as pessoas façam no mundo do espelho do Imaginarium do Dr. Parnassus (seja
a iluminação ou a ignorância, seja uma escada para o céu ou um pub). Todas as
opções se igualam no gigantesco jogo cósmico no qual estamos prisioneiros.
A irônica morte de Heath Ledger
Ironicamente, a própria morte de Heath Ledger no meio das
filmagens confirmou esse niilismo gnóstico de Terry Gilliam. “Existem forças em
ação nesse filme, não me veja em seu modo místico... mas o filme fez a si mesmo
e foi co-dirigido por Heath Ledger. As referencias à morte no filme estão todas
no roteiro original. Todos pensam que escrevemos essas coisas depois da morte
de Heath Ledger... nós não alteramos uma das palavras. E isso para mim é
assustador – por que tudo foi tão presciente? Parece que tudo foi sobre a
morte”, disse Terry Gilliam.
Ledger vivenciou dois fortes arquétipos nas produções sucessivas
de Batman e Dr. Parnassus: os mitos do Joker
e o do Enforcado - sobre o arquétipo do "Coringa" clique aqui. O Enforcado refere-se ao mito do deus moribundo que se
entrega ao sacrifício final a fim de alcançar a imortalidade.
Em uma das sequências mais estranhas do filme, vemos Tony
(interpretado por Johnny Depp) orientando uma mulher rica a fazer a opção pela
gôndola da imortalidade com a cabeça de Anúbis, o deus dos mortos. A mulher vê
três barcos com fotos de Rodolfo Valentino, Princesa Diana e James Dean,
personalidades midiáticas que tiveram mortes prematuras. “São imortais... não
vão ficar velhos e gordos, doentes ou fracos... são eternamente jovens, são
deuses... e você pode juntar-se a eles”, diz Tonny tentando convencer a mulher.
A mulher opta pelo rio da imortalidade, assim como Ledger optou em
mergulhar de cabeça em mitos que marcariam para sempre seu nome no pantheon das
lendas do cinema.
A opção que a mulher rica faz no mundo imaginário do Dr. Parnassus
apenas alimenta o jogo de apostas entre um ex-monge budista e o Diabo, assim
como a “imortalidade” de Ledger converteu-se em mais uma narrativa que sustenta
a indústria do entretenimento.
Ficha
Técnica
Título: O
Mundo Imaginário do Dr. Parnassus
Diretor:
Terry Gilliam
Roteiro:
Terry Gilliam, Charles McKeown
Elenco: Christopher
Plummer, Lily Cole, Heath Ledger, Tom Waits, Andrew Garfield, Verne Troyer
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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