sexta-feira, setembro 09, 2016
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Nesses dias em que o Brasil transformou-se em uma verdadeira república
distópica, um bom filme para assistir é “Brazil, O Filme” (1985) de Terry
Gilliam, integrante da trupe de humor inglês Monty Python. Gilliam criou uma
nova versão de “1984” de George Orwell: um sistema totalitário obcecado pela
posse de informações numa sociedade onde pessoas e coisas estão totalmente
interligadas por dutos, tubos e canos. O filme vislumbrou 31 anos atrás a
vigilância e totalitarismo das redes de informação atuais e a dissidência de
hackers – aqui representado por “encanadores” free-lancers, considerados dissidentes
terroristas. Direitos individuais inexistem e qualquer um pode ser condenado e
executado através de “provas” recolhidas pelo Ministério da Informação. Alguém
pode ser morto por engano, mas tudo foi feito com “boa-fé”. Em tempos onde policiais federais aparecem na mídia como heróis hollywoodianos,
“Brazil, O Filme” torna-se amargamente atual.
Lançado em 1985,
o filme coincidiu com o fim da ditadura militar brasileira. Na época, muitos
acharam que a versão em humor negro de 1984 de Orwell com o nome
“Brazil”, e ainda com a trilha musical Aquarela do Brasil de Ary
Barroso, era uma referência direta de Gilliam ao triste regime totalitário
brasileiro que se encerrava naquele ano.
Gilliam tinha
outras pretensões, mas certamente a coincidência entre os dois momentos em cada
país (no Brasil o fim do regime totalitário e na Inglaterra a mão de ferro do
Thatcherismo) foi uma autêntica sincronia – o filme parece capturar o espírito
da sua época.
Mas ao mesmo
tempo, oferece sombrias previsões para os dias atuais ao mostrar uma sociedade
retro-futurista obcecada por informação, vigilância e... canos, ou melhor
imensos e invasivos dutos que estão por todo lugar (residências, escritórios,
restaurantes, não importando a classe social), no interior das paredes e por
sobre os tetos como se oprimissem a todos.
Parece que em
1985 Terry Gilliam antecipava um sistema obcecado pela posse da informação
sobre tudo e todos através de um “Ministério da Informação”, que emprega uma
burocracia enorme e centralizada para gerir um tsunami interminável de
papeladas que viajam através dos dutos. A rede de dutos da distopia de Brazil
é a própria Internet atual, só que sem o marketing corporativo de gigantes como
Google ou Microsoft que criam a aparência amigável da rede de computadores,
escondendo os perigos da vigilância e controle de bancos de dados
centralizados.
O Filme
O filme inicia
com uma bizarra entrevista na TV com um alto funcionário do Ministério da
Informação, Mr. Helpman (Peter Vaughan), que chama os terroristas (explosivos
atentados são cometidos a todo instante) de “perdedores amargurados”, sem
“espírito esportivo” e que “não conseguem ver o outro oponente ganhar”. A
entrevista de Helpman é uma propaganda calculada para inspirar lealdade dos
telespectadores ao regime totalitário.
O protagonista
do filme é Sam Lowry (Jonathan Price), um homem introvertido e melancólico que
trabalha em um terminal de computador o dia inteiro. Um mundo onde todos se
vestem como se estivessem nos anos 1940, onde alta tecnologia combina-se com
teclados de velhas máquinas de escrever, elevadores gaiolas e telefones em
design retro.
Apesar de filho
de uma família rica com alta influência no Ministério, Sam não tem ambições e
sente-se feliz em um trabalho com pouca responsabilidade. Periodicamente, Sam
escapa para um sonho recorrente no qual ele é um anjo que voa livre acima do
caos do seu mundo, lutando contra demônios que tentam aprisionar a sua amada
(uma linda mulher loira) em uma gaiola.
Em sua vida
monótona, o máximo de transgressão que comete é alternar a tela do computador
quando o chefe não está olhando, para assistir reprises de filmes antigos como Casablanca.
Tudo muda quando
Sam envolve-se sem querer numa trama com terroristas e a mulher dos seus
sonhos – Sam acaba descobrindo que ela existe, mas a mulher não é assim tão
romântica e delicada como imaginava. Na verdade, há uma suspeita que ela atua
junto com os terroristas.
Um dos
onipresentes tubos em sua casa pifa, inutilizando o ar condicionado. Eis que
surge um técnico free-lancer chamado Harry Tuttle (Robert De Niro). Tuttle é um
dissidente por não querer trabalhar para a Central Service do Ministério. Ele
desafia o Estado por trabalhar de forma autônoma, consertando os dutos sem
preencher os protocolos burocráticos. Por isso, é considerado um terrorista.
Esse é o início
das tribulações de Sam: além de conhecer a mulher de seus sonhos, Sam resolve
ajudar o seu chefe para encobrir um erro do Ministério – ele decide entregar
pessoalmente um “cheque de reembolso” para a esposa de Mr. Buttle, um homem que
foi erroneamente preso (confundido com Harry Tuttle), torturado e morto pelo
Ministério como resultado de um erro de digitação.
A convergência
desses três eventos leva-o a aceitar a promoção que recusava pela insistência
da sua mãe ambiciosa. Aceitando a promoção, Sam consegue privilégios nos bancos
de dados do Ministério para conseguir localizar a mulher de seus sonhos e
eventualmente ajudar os dissidentes do regime.
Por que
“Brazil”?
Para o diretor
Terry Gilliam a imagem do filmeveio em
Port Talbot, uma cidade industrial cinza e metálica no País de Gales onde até a
praia é cheia de poeira e areia escura. O sol se punha e o contraste para
Gilliam foi extraordinário: ele imaginou alguém com um rádio portátil naquela
praia triste vendo o por do sol e ouvindo canções escapistas como Aquarela do
Brasil. A música o transportava para um lugar menos cinza.
Gilliam vez um
jogo de palavras ambíguo, não apenas com o Brasil, mas com uma ilha da
mitologia irlandesa chamada “Brasil” (ou “Hy-Brasil” – significando
“descendente do clã Breasal”) – segundo o mito, uma ilha a oeste da Irlanda que
se torna visível em apenas um dia a cada sete anos.
A música “Aquarela
do Brasil” tem a mesma função das Ilhas Fiji no filme Show de Truman – uma
fantasia escapista de um mundo opressivo, cinza e totalitário.
Embora Brazil,
o Filme parece de início mais uma versão do mundo de George Orwell, há uma
primeira diferença:Gilliam parece fiel
ao espírito psicodélico dos anos 1960 – a visão anárquica em que a melhor
maneira de melhorar as coisas é explodindo-as.
Por isso, a
narrativa do filme é confusa e ambígua com uma pesada atmosfera paranoica:
repleto de efeitos especiais, cenas apocalípticas de destruição. É como se
Gilliam tivesse sentado e colocado no papel em sketches todas as suas
fantasias, sem se importar com as dificuldades de produção – para a época, o
orçamento de 15 milhões de dólares era alto. O filme foi um fracasso de
bilheteria, recuperando apenas metade do investimento. Mas com o passar do
tempo tornou-se um clássico cult.
Por que Terry Gilliam
estava obcecado por dutos e canos?
A bizarra rede
de dutos, tubos e canos é outro simbolismo central no filme. São cinzas e
maciços, pendurados tão baixo que quase toca na cabeça das pessoas. Claramente,
é uma demonstração do papel opressivo que o Ministério da Informação
desempenham todos os aspectos na vida das pessoas. Os dutos conectam todos os
cantos da caótica cidade – ou seja, tudo e todos fazem parte da rede de
informações do Estado.
Dessa forma
compreende-se por que o Ministério é tão sensível aos técnicos free-lancers
como Harry Tuttle que trabalham por fora do Central Services que faz a
manutenção dos dutos:Tuttle hackeia o
sistema, para usar um termo atual.
Por isso Terry
Gilliam foi visionário: enquanto em 1984 de Orwell a vigilância é visual por
meio do olhar do Big Brother que tudo vê, em Brazil a vigilância se dá
através de uma rede de informações que conecta pessoas e objetos – é a própria
Internet das Coisas, estágio de vigilância terminal para o qual nos dirigimos
na atualidade. Não só pessoas, mas também os próprios objetos que manipulamos e
o seu destino e finalidade poderão ser perscrutados.
Ilegal, mas com
boa-fé
Estamos perto da
distopia de Gilliam vislumbrada há 31 anos: um sistema onde praticamente não há
um sistema judiciário. Apenas vigilância, detenção, condenação e execução como
o ocorrido pelo pobre vendedor de sapatos, o sr. Buttle, confundido com o
dissidente Harry Tuttle. Alguma reclamação? Preencha o formulário de
reclamações e envie através dos dutos da Central Services.
O irônico é que
o filme aproxima-se bastante da própria realidade política brasileira onde
operações da Polícia Federal como a Lava-Jato recolhem “provas” de forma
ilegal, alegando que se há boa fé nos investigadores, então tudo torna-se “legal”.
Lembra a linha
de diálogo do torturador responsável pela morte por engano do Sr. Tuttle,
tentando justificar-se: “mandaram-me o cara errado como a pessoa certa... fiz
tudo de boa-fé... Nesse momento, como em vários ao longo do filme, o leitor
perceberá como Brazil, O Filme encontra-se com o Brasil atual.
Ficha
Técnica
Título: Brazil,
O Filme
Diretor:
Terry Gilliam
Roteiro:Terry Gilliam, Tom Stoppard
Elenco: Jonathan Price, Kim Greist,
Robert De Niro, Michael Palin, Katherine Helmond, Peter Vaughan
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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