Quase diariamente é previsto o fim do
mundo na TV ou na Internet, enquanto no cinema narrativas ficcionais reforçam
essas previsões com protagonistas às voltas com apocalipses climáticos,
cósmicos, geológicos, tecnológicos, alienígenas etc. Por que o mundo tem que
ser destruído? Por que essa necessidade pelo fim, embalada como ficção e entretenimento
para consumo de massas? Ideologia? Manipulação político-ideológica? Ou algum
tipo de sintoma do inconsciente coletivo? Como o Gnosticismo pode oferecer uma
explicação e uma narrativa alternativa esse mistério sobre o “fim dos tempos”?
Essa foi a discussão que este humilde blogueiro levou para o Simpósio “Do Mundo
Arcaico às Cosmologias Modernas”, evento que aconteceu de 22 a 24 últimos no
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas no Rio de Janeiro.
Nessa sexta-feira (24), mais uma vez esse humilde
blogueiro foi bem recebido no Rio de Janeiro. Desta feita, no simpósio “Do
Mundo Arcaico às Cosmologias Modernas: Natureza, Universo e Caos”, realizado no
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), promovido pelo Centro de Estudos
Avançados de Cosmologia e com o apoio da revista eletrônica Cosmos e Contexto.
A questão levada ao encontro, resultado de uma série de
postagens aqui no Cinegnose foi: “Por que o mundo tem que acabar? Neo-apocalíptica e Escatologias Líquidas” Por que essa
recorrência de filmes com narrativas apocalípticas no cinema de massas
hollywoodiano? Sabendo-se que as narrativas sobre “fim dos tempos” e “juízos
finais” estiveram e estão presentes em diversas culturas, religiões por toda
História, qual seria a natureza dessas novas narrativas midiáticas sobre o fim? - veja os slides da apresentação abaixo.
Partindo de algumas referências teórico-metodológicas de
Marc Ferro, Theodor Adorno e Zygmunt Bauman, procuramos refletir sobre a
produção cinematográfica como um “sismógrafo da História”. O cinema atual como
representação de uma sensibilidade “líquida” (Bauman) na qual os grandes
sistemas religiosos foram liquefeitos produzindo uma inédita forma de
escatologia.
O estudo do fim dos tempos
Escatologia, o “estudo do fim dos tempos”, disciplina
criada pelo teólogo Abraham Calov no século XVII. Segundo ele, o estudo seria
necessário para entender duas tensões não resolvidas na Filosofia: o indivíduo
falível versus Divino Perfeito e o destino humano versus o destino do Universo.
Porém, o sentido escatológico atual (no qual quase
diariamente acompanhamos seja na grande mídia ou na Internet profecias, relatos
ou previsões de catástrofes cósmicas, ambientais, econômicas, geológicas etc.)
nada teria de reflexivo – seria a busca de uma nova forma de religião, dessa
vez global e ecumênica, que sirva de legitimação para uma nova ordem
sócio-econômica mundial caracterizada pela extrema liquidez através da conexão
em tempo real das praças financeiras.
Um movimento paradoxal que pode ser acompanhado desde o
pós-guerra: o crescimento do hedonismo, niilismo e materialismo da sociedade de
consumo, acompanhado pela ascensão paralela de um misticismo de massas “new
age” – o mix de psicologia motivacional, autoajuda com parapsicologia,
esoterismo e física quântica.
Com isso os antigos sistemas religiosos são dissolvidos
pelo utilitarismo: Deus e religião até permanecem, desde que atendam às
necessidades individuais.
A questão é que na cultura, o senso de futuro começa a
desaparecer (só existe o presente utilitarista e individualista), deixando para
segundo plano um dos três componentes que formariam toda religião: Cosmogonia,
Teogonia e Escatologia.
Com isso teríamos o fenômeno que certa vez Herbert
Marcuse (1898-1979) definiu como “dessublimação repressiva”: a ausência de um objetivo
futuro (socialmente legítimo) para sublimar a energia instintiva pode resultar
nas explosões violentas e totalitárias. Como foi a ascensão do nazi-fascismo no
século XX – e não resolvido até hoje.
Este humilde blogueiro às voltas com sintomas do fim do mundo |
Nova religião
Por isso, a nova ordem da globalização financeira
necessitaria de uma novo senso religioso, ecumênico. Com isso, o crescimento na
indústria do entretenimento de novas narrativas sobre o fim, seja no jornalismo
ou no cinema.
Mas dessa vez não há o “Rei do Terror” das “Centúrias” de
Nostradamus ou o julgamento final divino do Apocalipse bíblico.
A teoria do Big Bang é a nova Cosmogonia. A Noosfera (a
“consciência planetária”) a nova Teogonia. E as catástrofes climáticas
(aquecimento global), cósmicas (cometas, meteoros) ou geológicas (falhas tectônicas,
terremotos e tsunamis) a nova Escatologia.
Mas paradoxalmente essa escatologia líquida, somada à
nova “neo-apocalíptica”, destrói o senso de futuro ao transformar o presente
numa bomba relógio em contagem regressiva. É a “necrospectiva”, conceito
cunhado pelo pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007). Conceito que se
contrapõe à “retrospectiva”, impulso racionalista de catalogar e organizar o
passado para tirar do tempo lições que apontariam para o futuro.
Essa noção baudrillardiana de
necrospectiva que reduz o presente como uma bomba relógio que consome o futuro
permite vislumbrar a possível função de cimento ideológico das escatologias
líquidas num mundo globalizado: o presente como uma “utopia mínima”, isto é,
como a redução da vida a uma luta pela sobrevivência diante das catástrofes
futuras – a neo-apocalíptica.
O auditório do CBPF |
O Mínimo Eu
O sociólogo norte-americano Christopher Lasch (1932-1994)
procurou entender porque apesar de vivermos em uma época de confortos materiais
desconhecidos em épocas passadas, vivemos obcecados por ideias de catástrofes
iminentes. A preocupação da sobrevivência passaria, então, a ser o traço
proeminente na cultura atual. O tema teria entrado de forma tão profunda na
cultura popular e no debate político que qualquer tema se apresentaria como um
questão de vida e de morte – leia de Lasch os livros A Cultura do Narcisismo e O
Mínimo Eu.
Para Lasch, o comportamento da vida cotidiana passa a
assumir as características mais sinistras típicas de vivências em situações
extremas: auto-observação irônica, individualidade multiforme e anestesia
emocional.
Lasch argumenta que por trás dessa
cultura terapêutica que oferece verdadeiras tecnologias do eu (autoajuda,
autoconhecimento, técnicas de desenvolvimento pessoal e das potencialidades
internas) estaria uma “subcultura do milênio”: a imaginação apocalíptica
derivada de fundamentos religiosos e na versão secularizada do apocalipse
pregada por ecologistas (Clube de Roma), economistas neomalthusianos
(esgotamento energético e a ameaça da explosão populacional) etc.
Se este “mínimo eu” torna-se a vivencia
cotidiana num presente sem futuro, em contagem regressiva para a realização
escatológica de alguma neo-apocalíptica para as massas, qual a alternativa
filosófica, existencial ou mesmo cosmológica para esse mal estar da cultura?
A alternativa do Gnosticismo
Este humilde blogueiro apresentou o
Gnosticismo como como narrativa alternativa, como uma espécie de escatologia
realizada, uma história que começa pelo fim: a Apocalipse já aconteceu na
Criação.
Para o Gnosticismo, principalmente
Valentiano (de Valentino, nascido em Cartago em torno de 100 DC e
aluno de São Paulo quase se tornou papa), somos fragmentos da Divindade
Suprema, agarrados em destroços em um mar de matéria escura...
Uma narrativa que começou a se
esgueirar pelo cinema, por exemplo, em filmes pós-apocalípticos iniciado com O Planeta dos Macacos (Planet of The Apes, 1968) no qual os
homens são escravizados pelos macacos após uma inversão evolutiva gerada pela
catástrofe nuclear.
Para os valentianos, as ideias
cristãs sobre o fim do mundo e uma ressurreição física eram interpretações
ingênuas. Por meio de experiências visionárias e rituais acreditavam que a
gnose restauraria a plenitude e dissolveria a ilusão do mundo no presente. Para
a pessoa que tem a gnose o fim do mundo já teria chegado!
Por isso, Se a hipótese escatológica de um
fim onde tudo seria redimido foi uma tentativa de solução para as principais
tensões existentes nas religiões (a tensão entre o indivíduo falível e mortal e
o Divino imortal e perfeito) e na filosofia (a tensão entre o destino humano e
do Universo como um todo), ela também expressou o mal estar da condição humana: o estranhamento e alienação em relação à existência, a
desconfiança gnóstica de que seríamos prisioneiros em um cosmos hostil, nas
mãos de um Demiurgo enlouquecido – desconfiança tão bem expressa
cinematograficamente em filmes como Show
de Truman (Truman Show, 1998) ou
em Prometheus (2012).
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