quinta-feira, fevereiro 01, 2018

Quando a mídia transforma vícios privados em virtudes públicas


Para impor seu DNA, leões matam os filhotes da cria anterior ao desposar a leoa. Da mesma maneira entre os humanos, em toda História, os vencedores submetem os vencidos a castigos e crueldades como forma de demonstração simbólica do poder. E no Brasil atual, os vencedores ostentam a conquista de terras arrasadas em shows midiáticos de demonstração de poder, confirmando o sombrio presságio dos escritores libertinos do século XVIII: um dia as perversões privadas se transformarão em virtudes públicas. O bizarro vídeo da deputada quase ministra Cristiane Brasil falando em “justiça” e “direitos” enquanto fortões seminus ao redor dela encaram a câmera de forma intimidadora; o trocadilho erótico de Rosângela Moro no Instagram; e a piada pronta de Temer no quadro “Topa Tudo Por Dinheiro” de Silvio Santos que se deliciava com uma pistola que disparava dinheiro são, além de exemplares da histórica violência simbólica dos vencedores, lições de propaganda política para a esquerda. Nem Cristine Brasil está preocupada com justiça e muito menos Temer quer convencer os telespectadores. São meras provocações, bombas semióticas para ocupar espaço midiático e criar espiral de polêmica diante de uma esquerda que apenas esperneia escandalizada.

Muitos analistas da atual realidade brasileira falam em “tempos estranhos”. Mas na verdade são tempos proféticos. Melhor dizendo, tempos da realização de um antigo presságio dos escritores libertinos do século XVIII (Bernard Mandeville, Marquês de Sade e Restif de La Bretonne), atentos à amoralidade que iria ascender com o Iluminismo, como uma espécie de outro lado da moeda.

“Um dia as perversões privadas se tornarão virtude públicas”, alertavam em pleno século das Luzes. Afinal, luzes também produzem sombras. Pensadores como Adorno e Horkheimer gastaram muitas páginas para explicar a tese de que a Razão retorna ao Mito e de que luzes podem se tornar trevas na História sob a aparência do Progresso – por exemplo, leia Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer.

Mas nesse momento, aqui no Brasil, esse sombrio presságio libertino está muito além das reflexões filosóficas ou sociológicas: realiza-se de forma brutal, sem matizes ou nuances, através da infernal maquinação jurídico-político-midiática.

O inacreditável vídeo de Cristiane Brasil (às voltas com problemas judiciais e processos trabalhistas que a impedem de assumir a pasta do Ministério do Trabalho) cercada de enormes marmanjos ao melhor estilo Alexandre Frota e ray-ban alusivos a coisas no cinema como Stallone Cobra, no convés de um iate clamando por “justiça” é apenas a face mais visível desse movimento de escárnio diário, que a grande mídia apenas registra e faz pano rápido. Diferente de outros tempos, não tão distantes, nos quais a grande mídia tinha chiliques diários a cada ato presidencial.



Desde que o também inacreditável Alexandre Frota (dublê de ator pornô e ativista político) foi recebido no gabinete do recém-empossado Ministro da Educação Mendonça Filho, em 2016, para entregar um “documento” com propostas de “política educacional”, a soturna profecia dos libertinos do século XVIII realiza-se em exemplos exponenciais.

Grosseiras demonstração de força


Só para ficar em mais dois casos recentes: em postagem no Instagram, a esposa do indefectível juiz Sérgio Moro, a advogada Rosângela Moro, entre mensagens do escritor francês Jules Renard (“a Liberdade tem limites que a Justiça impõe) e indignação contra os políticos, postou: “Para me fazer feliz, é só me beijar em dois lugares... Paris e NY”.

E o outro insólito exemplo: dois homens embalsamados em suas funções, Silvio Santos (apresentador e dono do próprio canal) e Michel Temer (o presidente-desinterino) juntos no quadro “Topa Tudo Por Dinheiro” para defender a Reforma da Previdência. E ao final, pagando com uma nota de 50 reais apologia do apresentador como garoto-propaganda da reforma previdenciária – da metáfora à literalidade: no programa de maior audiência da emissora o presidente-desinterino, explicitamente, demonstra o seu modus-operandi da compra de apoios, assim como faz no dia-a-dia do Congresso.


Essa parece ser a recorrência em contextos de tomada do poder, seja na vida animal como na História: assim como os leões recém-chegados desposam a leoa e matam os filhotes da cria anterior para impor seu DNA, da mesma maneira o grupo que se apossou do Poder e do Estado após um golpe, demonstrará das formas mais grosseiras e explícitas sua força – principalmente quando as massas estão paralisadas entre o pânico e a indiferença.

E nesse contexto ritual e psíquico de ostentação para se impor e demonstrar força em terra conquistada e arrasada, as perversões privadas se tornam virtudes públicas.  

Pintos no lixo


A conotação erótico-perversa das bizarras imagens da deputada e quase ministra Cristiane Brasil fala por si mesma – vestida com saída de praia tipo rede arrastão preta, cercada de musculosos homens com torso nu. Todos no convés de um iate, do qual vê-se um mar esmeralda e ouve-se música eletrônica.

“Vai ministra”, fala um dos fortões. E Cristiane, condenada por processos trabalhistas, fala que qualquer um tem direito de pedir “qualquer coisa abstrata na Justiça”. “Quem é que tem direito?”, interroga, enquanto os fortões olham para a câmera em tom intimidador. Como se as imagens sugerissem: “Panaca! Entra na Justiça prá ver o que acontece!...”.

O dedo em riste da deputada junto com a imagem aos fortões que mais parecem gigolôs-jagunços, algo como uma espécie de tropa de choque tropical da antiga SA do regime nazista, nada tem a ver com “direitos”, “justiça” ou qualquer outro conceito iluminista associado à “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Tudo sugere o contrário: intimidação, terrificação, ameaça, choque.

Cristiane Brasil não é louca e tão “sem noção” ou “cara de pau” como sugerem muitos comentários. Ela parece à vontade, segura, em sintonia com esses novos tempos de terra arrasada onde os conquistadores dispõem do território do jeito que querem. Ela, assim como toda a tropa de choque no Congresso, sentem-se felizes como pintos no lixo.

Seu pai, o presidente do PTB Roberto Jefferson, foi o “homem-bomba” do mensalão, a fagulha que iniciou todo o processo turbinado pelas bombas semióticas midiáticas que deu-no-que- deu. Por isso, o vídeo é uma provocação, uma bravata semelhante àquelas que militantes do MBL, como Kim Kataguiri e Alexandre Frota, fazem.


Virou meme e certamente um potencial hit do Carnaval. Mais uma lição de comunicação política para as esquerdas que, como sempre, escandalizam-se com tudo: o objetivo de Cristiane Brasil era produzir um acontecimento, impactar, falar através das mídias não para a oposição. Seu interlocutor são as massas indiferentes e bestificadas.

E ela sabe que está “blindada” nessa queda de braço entre Executivo e Judiciário na qual é o pivô: a grande mídia apenas mostra as imagens e... pano rápido! Entre os muxoxos dos apresentadores que pulam rápido para a próxima notícia da pauta.

Ostentação do Poder e ambiguidade erótica


             Ela aparece em capas de revistas femininas e de celebridades. Ela é a esposa do juiz da Lava Jato, Sérgio Moro. Ela é a nova dama da mídia. Na página do Facebook “Eu Moro com Ele” postava homenagens ao marido e, com a ajuda de uma amiga, apagava mensagens inconvenientes.

Após a condenação de Lula no TRF-4, sob elogios rasgados dos desembargadores ao trabalho do marido, Rosangela Moro postou no Instagram: “Para me fazer feliz é só me beijar em 2 lugares... Paris e NY!”.

Mais um exemplo de como conquistadores de terras arrasadas ostentam a vitória para as massas: sempre através de um mix de erotismo perverso, poder e força – “vou para Paris e NY porque posso! E nesses lugares ser beijada!”. Com destaque para  a carga ambígua e erótica do “beijar em dois lugares”.

Um flagrante de como no contexto atual onde os vencedores ostentam os louros da vitória, privado e público misturam-se de forma perversa. Se na Antiguidade os vencedores impunham castigos e crueldades aos vencidos, hoje através da mídia ostentam de forma grosseira e pervertida a força da violência simbólica.

Canastrice em cena


Foi praticamente uma piada pronta: após o SBT veicular peças publicitárias promovendo a reforma da previdência pagas com muito dinheiro público, eis que o próprio desinterino Michel Temer faz uma aparição no quadro “Topa Tudo por Dinheiro” do dublê de apresentador/proprietário da emissora, Silvio Santos (SS).

Antes do presidente-desinterino entrar em cena, SS apontou para a plateia uma pistola que dispara notas de 10 e 50 reais. E mulheres se engalfinham para pegá-las. O quadro chama-se “Revólver da Fortuna”. Tal como um libertino pós-moderno, SS diverte-se sadicamente com a plateia feminina que luta pelas notas disparadas da sua pistola...


Como sempre canastrão, Temer entrou em cena com gestual, corte de terno e peito empolado (só faltou o microfone sorvetão) idênticos aos de SS. Tão mimético que, ao final da defesa apologética de SS às reformas, Temer tira uma nota de 50 reais e entrega para o apoplético apresentador.

Dinheiro público entregue a empresário de uma concessão pública de comunicação social num bizarro show de ostentação de poder na sua forma mais crua e sádica: “Faço porque posso! Porque vencemos!”.

Em todos esses exemplos de publicização das perversões privadas há três pontos em comuns que deveriam ser lições para as estratégias de guerrilhas semióticas da esquerda:

(a) Vencedores compulsivamente necessitam ostentar e demonstrar para os vencidos o poder conquistado. É a violência simbólica, traço antropológico que está presente em todos os cenários de guerra e conquista na História. É a sua força, mas também um ponto fraco, desde que superado o pânico e a indiferença das massas derrotadas. Ou também superado a “servidão voluntária” como Étienne de la Boétie denominou em 1548: estrutura de dominação em que o tirano joga migalhas para os vencidos. E na atualidade, as migalhas são o show midiático da ostentação das próprias perversões privadas – leia Discurso da Servidão Voluntária, editora Nós, 2016;

(b) Esse show público das perversões privadas são shows de provocações: Cristiane Brasil, Rosângela Moro e Michel Temer estão pouco se lixando para as oposições: seu alvo é a massa, ao criar acontecimentos-choque. Afinal, qual a eficiência persuasiva de um vídeo tosco como a de Cristiane Brasil ou de Sílvio Santos ou Ratinho como garotos-propaganda de Temer? São nada mais do que provocações para a esquerda, em geral, morder a isca e responder com escândalo moral, dando maior repercussão na espiral da polêmica. E atingir o alvo principal: as massas.

Mas quando será que a esquerda jogará no mesmo campo semiótico dessas bombas semióticas?

(c) Portanto, esses episódios precisam ser analisados em dois aspectos: o primeiro, como recorrência histórica e antropológica dos vencedores ostentarem de forma perversa os frutos da conquista para as massas indiferentes e em pânico; e segundo: como tática paradoxal de propaganda política: não objetiva persuasão ou convencimento, mas apenas provocação por meio de acontecimentos-choque que se retroalimentam.

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