sábado, novembro 05, 2016

Neon e maquiagem mascaram a morte em "Demônio de Neon"


O mundo da Moda como máquina que tritura a inocência e juventude de modelos é um tema nada novo no cinema. Mas ao contar a história de uma modelo iniciante que entra no universo de estilistas e fotógrafos de Los Angeles que mais parece um clube soturno relacionado com o ocultismo de Aleister Crowley ou o satanismo de Charles Manson, o filme “Demônio de Neon” (2016) aproxima-se da mitologia gnóstica – rostos robóticos e sorrisos frios de um mundo sem vida que necessita sugar vitalidade e inocência dos mais jovens. Um mundo que necessita do neon e maquiagem para criar a aparência de glamour e brilho, para atrair a juventude que ponha em funcionamento um mundo que aprisiona a todos. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende

O neon é um gás que ocupa apenas 0,00046% da atmosfera do planeta. Foi descoberto em 1898 e começou sua carreira como um produto orgânico para, uma década depois, transformar-se na metáfora de tudo aquilo que é artificial e superficial – tubos coloridos com o gás já eram utilizados em letreiros comerciais em 1912 na França: Opera de Paris, bancos, lojas de luxo e até mesmo igrejas. Era símbolo de sofisticação.

Mais tarde, o neon desapareceu na sociedade de consumo Pós-Guerra, associando-se ao visual decadente de motéis baratos e bares de beira de estrada suspeitos.

Mas o neon reaparece décadas depois nos anos 1970-80 com a estética pós-moderna new wave associado a um futurismo-retrô, frivolidade e superficialidade. Passou a ser identificado com o mundo do design, moda e decoração.

Filmes como underground Liquid Sky (1982), sobre o submundo de modelos em Nova York, foi mais além mostrando não só como o neon se incorporou à própria maquiagem de modelos e desfiles, mas como essa associação possui um simbolismo mortício, fúnebre, beirando o horror – como se o brilho tentasse dar vitalidade a personagens esquálidos, heroin heroes sem futuro, à beira da morte final – sobre o filme clique aqui.


O filme Demônio de Neon é uma fábula sobre o mundo da alta moda, com inflexão de horror, sobre uma jovem modelo iniciante em Los Angeles em desfiles e lounges adornados pelo neon no qual a maquiagem e cirurgias plásticas são os elementos centrais que conferem uma superficial impressão de vitalidade ou élan.

A ironia do filme do diretor holandês Nicolas Winding Refn (Drive, Bronson e a trilogia Pusher) está em torno da maquiagem: se nas suas origens está associada à mitologia e ritual (rituais xamânicos, cultos funerários ou cultos à fertilidade), isto é, formas dos vivos criarem um canal de contato com os mortos ou mundos espirituais, agora é a forma dos mortos-vivos criarem uma aparência de vitalidade e juventude.

Tudo gira em torno de Jesse, a neófita no mundo altamente competitivo e intoxicado pela inveja, ressentimento, medo e ciúmes. “Entrando numa sala, é como se no meio do inverno você fosse o Sol”, diz a certa altura uma modelo invejosa para Jesse, menor de idade mas que a agência de modelos diz ter 19 anos.

Em Neon Demon, o mundo da Moda tende à morte precoce: “quando você completa 21, nessa indústria você se torna irrelevante”, diz uma modelo. Em um mundo onde tudo é manufaturado, a beleza natural e espontânea de Jesse é a faísca de vida ambicionada por fotógrafos e estilistas.

Por isso, o filme ingressa em um mitológico tema gnóstico – o mundo material é decadente, pálida cópia da Plenitude. Por isso, o Demiurgo necessita arrancar dos humanos sua “fagulha espiritual” (alegria, boa-fé, brilho, vitalidade, confiança) para manter em funcionamento um cosmos que tende à entropia. Neon e maquiagem tentam esconder essa imperfeição ontológica do mundo, iscas que atraem a confiança de pessoas como Jesse.

Jesse pensa que poderá manter o controle da narrativa (“todas injetam coisas em si, morrem de fome, torcem, rezam para parecerem uma versão em segunda mão de mim”). Mas descobrirá, da pior forma possível, que um moderno conto de fadas pode literalmente devorá-la.


O Filme


Demônio de Neon abre com uma sequência que dará o tom ambíguo da narrativa: vemos Jesse (Elle Flanning) em um vestido tubinho azul-elétrico, reclinada em um sofá, pálida e encharcada de sangue. Estamos em um cena de crime ou em um editoral fotográfico de moda?

Com essas fotos, tiradas pelo seu amigo Dean (um fotografo também aspirante na indústria da moda), monta o book que será o cartão de visitas em uma grande agência de modelos em LA, que lhe promete uma carreira internacional.

Em meio a sorrisos endurecidos pela competitividade do meio, rostos robóticos com olhares metálicos, o olhar juvenil e o jeito de adolescente vulnerável logo se tornam objeto de fetiche de desejos obscuros.

Enquanto todas as modelos se esfalfam em cirurgias plásticas e dietas insanas, Jesse tem uma beleza natural. Por isso, olhando para o céu noturno aberto, ela acha que a Lua é um olho que a observa. Ela sabe que é desejada, e que, por isso, também se tornará uma predadora daquele meio, assumindo o controle da sua vida e do sucesso.

Uma maquiadora chamada Ruby (Jena Malone) logo se torna a amiga confidente de Jesse. Mas logo percebemos que há nela pretensões obscuras. A personagem de Ruby é uma das chaves de compreensão do filme: sua jornada de trabalho divide-se em dois lugares aparentemente opostos – maquiar modelos para desfiles e editoriais de moda e maquiar mortos em um necrotério preparando-os para o último adeus dos familiares.


Onírico e realista


Por isso a narrativa de Demônio de Neon é ao mesmo tempo onírica e realista: cercada de espelhos e neons, pirâmides misteriosas, estroboscópios vermelhos e festas ocultistas que lembram Stanley Kubrick em De Olhos Bem Fechados. Parece que Jesse está entrando em algum clube soturno futurista ao som retro do synth-pop dos anos 1980.

Muitas cenas jogam com a exposição do cruel mercado da moda, com modelos vestindo unicamente underwear e situações humilhantes de entrevistas, esperas e demissões arbitrárias, forçadas a suportar o caminho da vergonha. A trilha musical retro-futurista, a profusão de cores primárias, objetos pontiagudos e pirâmides lembrando o cinema dos anos 1970 de Dario Argento passa uma sensação de que todos vivem entre a condição de robôs ou mortos-vivos.

E Jesse é o “Sol que ilumina o inverno” – parece que aquele clube soturno (que parece a todo tempo evocar alguma coisa entre o ocultismo Aleister Crowley, Drácula e o satanismo ritual de Charles Manson) pretende de alguma forma absorver a vitalidade de Jesse. Neons e maquiagem são apenas simulações de beleza e vida. Eventualmente necessita de alguma verdade e espontaneidade representada por modelos iniciantes como Jesse. Parece que o desejo obscuro que todos acalentam é, de alguma forma, absorver sua vitalidade.


Thanatos aprisiona Eros


O tema da exploração consumista da juventude é tão antigo quanto as colinas de LA que emolduram o drama de Jesse. Demônio de Neon poderia ser mais um filme a explorar esse tema, porém a narrativa faz uma abordagem mitológica ou arquetípica: ciclos lunares, o arquétipo do espelho e o seu duplo, pirâmides misteriosas, estilistas e estranhas modelos que mais parecem fazer parte de alguma irmandade ocultista.

Por isso, Demônio de Neon aproxima-se da mitologia gnóstica sobre demiurgos e arcontes aprisionando a raça humana no cosmos material em busca da fagulha espiritual que pulsa dentro de cada um de nós, para colocar  o mundo físico em funcionamento. Morte dominando a vida, Thanatos aprisionando Eros.

Assim como em toda sociedade de consumo e indústria de entretenimento modelos mortos e abstratos de sedução e prazer se oferecem como iscas para extrair de nós não só dinheiro, mas principalmente o élan espiritual.

Demônio de Neon é uma fábula com um moral sombria: assim como Jesse, acreditamos que temos nossas vidas e o mundo na palma da mão – tudo seria apenas uma questão de querer, acreditar, ter otimismo e confiança. Mas não percebemos que é exatamente essa vitalidade que perpetua um mundo inautêntico que nos aprisiona. Assim como um rato correndo numa roda spinner, preso no interior de uma gaiola, diante do olhar atento do seu dono.



Ficha Técnica

Título: Demônio de Neon
Diretor: Nicolas Winding Refn
Roteiro:  Nicolas Windin Refn
Elenco:  Elle Fanning, Christina Hendricks, Jena Malone, Keanu Reeves
Produção: Space Rocket Nation, Bold Films
Distribuição: California Filmes
Ano: 2016
País: França, Dinamarca, EUA


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