domingo, junho 26, 2016

A paranoia gnóstica no filme "Luciferous"


O projeto cinematográfico de um casal rodado em seu próprio apartamento em Toronto, Canadá. Junto com sua pequena filha, uma família real atua como uma família ficcional em um suposto "found footage" (vídeo achado como se fosse real) encontrado e anexado como prova das investigações de um crime que aconteceu. Mas essa é uma sinopse simplista (apenas uma versão) do filme Luciferous (2015) onde uma família real é manipulada por alguma força sobrenatural que parece atuar no apartamento, levando a família a uma lenta desintegração. O filme explora temas gnósticos clássicos como a paranoia, memória e a confusão entre ilusão e realidade. O que torna tanto os protagonistas como os espectadores em detetives que tentam compreender as pistas falsas e estranhas metalinguagens ao longo do filme. Assim como no arquétipo contemporâneo do Detetive, a resolução do enigma pode se voltar contra o próprio detetive que tenta achar a verdade. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.


Desde o filme A Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, 1999) o subgênero terror “found footage” (um vídeo achado em algum lugar como se fosse real) prosperou e se ramificou em produções sci-fy como Cloverfield ou na franquia de terror Atividade Paranormal. E ainda na variação do terror em tempo real como no filme uruguaio La Casa Muda – sobre o filme clique aqui.

Na hsitória do cinema os gêneros do horror e terror se fundamentaram no prazer escópico inerente ao olhar: voyeurismo e exibicionismo. A narrativa tradicional do terror no cinema acabou se esgotando no final do século passado quando slash movies e as mortes em série perpetradas por Fred Kruger e Jason explicitaram esse prazer perverso do público. Filmes como O Segredo da Cabana (2011) fizeram uma desconstrução desse prazer pervertido dos espectadores – sobre o filme clique aqui.

O found footage foi um sopro de renovação porque deu um álibi para o público se aliviasse da culpa de ter uma prazer tão perverso: agora assistimos a “casos reais”, a vídeos de câmeras internas que testemunham objetivamente o que acontece. Parece que agora deixamos de ser espectadores cujo prazer está em saber, antes do que o protagonista, o seu cruel destino final. No subgênero found footage estamos tão perdidos quanto os protagonistas e parece nos isentar de qualquer pecado porque nos tornamos apenas testemunhas oculares de um evento real.

O filme Luciferous conduz esse novo álibi do terror atual à radicalidade: vemos uma família real (os personagens são de fato a mesma família na vida real) que produziu e dirigiu o filme ao qual assistimos. Além de fazer uma surpreendente metalinguagem final de toda e experiência que tivemos ao longo de uma hora e meia, ao melhor estilo Sexto Sentido.


Como discutiremos adiante, ao fazer uma metalinguagem final (e o filme deixa pistas metalinguísticas ao longo da narrativa) expõe o próprio prazer secreto que o espectador pretende mascarar como álibi “found footage” – no final o próprio enigma que o espectador quer desvendar junto com os protagonistas tem a ver com ele mesmo. Luciferous explora o arquétipo contemporâneo gnóstico do Detetive: o enigma da paranoia que no final reverte-se contra si mesmo.

O Filme


Alex (Alexander Gorelick) e Masha (Masha Ghorbankarimi) desfrutam de uma vida feliz onde a filha Mina (Mina Gorelick) é o centro daquele mundo familiar. Embora a família lute com certos desafios profissionais, fazem de tudo para ter memórias felizes de Mina com fotografias e vídeos, chegando a presentear a filha com uma pequena filmadora digital.

Mas aos poucos coisas estranhas começam a acontecer, e a epígrafe da abertura retirada do livro O Exorcista parece nos preparar para o pior: “O demônio é mentiroso, mente para nos confundir. Nos confunde atacando nossas fraquezas psicológicas. E fica poderoso por isso”.

Enquanto a família dorme, vemos um quadro cair da parede, do nada uma cadeira gira lentamente. Descobrimos que Alex vive atormentado pela culpa pela morte do seu amigo Peter em um acidente de carro: Alex estava ao volante e se culpa por isso.


Até que em uma corrida diária por um bosque, Alex é brutalmente golpeado na cabeça por alguém ou por alguma coisa, deixando-o em coma por um mês sob os cuidados da esposa no apartamento da família. Depois que Alex volta à consciência, tudo começa a mudar. Durante os dias as coisas parecem estar bem, mas durante a noite parece que o reinos das trevas domina aquela casa. Vindo do nada uma explosão violenta acorda a todos. Mina estranhamente fica em pé, no seu quarto, gritando enquanto os brinquedos caem.

O coelho de estimação Fluffy é encontrado morto no armário do quarto de Mina. Alex e Masha começam a discutir frequentemente. Ele se torna imprevisível e quase violento. Quando dirige o carro põem em ameaça a todos. Mina passa a culpar o pai pela morte do coelho, colocando Alex em dúvida quanto a sua sanidade mental: será que seu comportamento é decorrente de alguma lesão neurológica?

Os remédios prescritos pelos médicos apenas ampliam o seu estado paranoico por acreditar que tudo é uma vingança do fantasma do seu amigo Peter. Todos ao seu redor parecem enlouquecer e a família perfeita deixa de ser feliz.

Através das imagens supostas câmeras internas, percebemos que durante a noite, e mais tarde também durante o dia, de fato há alguma estranha presença que se desloca pelo apartamento, parecendo observar a todos. Mas tudo é fragmentado e estranhamente editado no filme aumentando propositalmente uma ambiguidade fundamental da narrativa: o que afinal estamos assistindo, um “found footage” ou uma “live action” de um filme convencional de terror?


Paranoia gnóstica e o Detetive


Paranoia e confusão entre ficção e realidade (será que tudo é efeito da lesão de Alex?) toma os protagonistas assim como o próprio espectador.

Paranoia que leva a confusão entre ficção e realidade é um tema gnóstico por excelência. Remete a Valentim (filósofo gnóstico do início da Era Cristã) onde a desconfiança radical sobre a consistência da realidade pode levar tanto à iluminação quanto a loucura.

Na galeria dos arquétipos contemporâneos remete à figura do Detetive: aquele que se confronta com um enigma onde tenta juntar os pedaços de um mundo que está desabando. Mas que no final o enigma se volta contra ele mesmo, revelando alguma verdade interior escondida pelas ilusões do ego.

A narrativa fragmentária e as estranhas pistas metalinguísticas espelhadas pelo filme (como, por exemplo, os saltos dos frames em algumas sequências) sugerem também um enigma para os espectadores: afinal, qual o “tom” dessa história. É um found footage? Live action? Há alguma entidade sobrenatural naquele apartamento? Ou tudo não passa de alucinações de Alex produzidas pelas prescrições médicas psicotrópicas?

O próprio Alex tenta encontrar alguma sanidade em tudo fazendo uma espécie de metalinguagem de si mesmo: em seu vlog (um blog com vídeos) partilha grava a impressões pessoais na tentativa de encontrar alguma concreção. Ironicamente para Alex, a realidade transforma-se numa ilusão, e o único elemento real é a imagem de si mesmo gravada em vídeo no blog pessoal.


 A família filmou o projeto em seu próprio apartamento em Toronto, Canadá. Na vida real Alex é um especialista em produções stop motion e um judeu da antiga União Soviética; e Masha trabalha com fotografia, iluminação e composição, natural de Teerã, Irã.

Uma química perfeita


O curioso é que a própria decoração do apartamento do casal (com máscaras, estátuas e quadros com motivos religiosos, tribais e mitológicos ajudam a criar a atmosfera misteriosa de um apartamento amaldiçoado possivelmente por algum tipo de fantasma ou poltergeist. Não há efeitos especiais aqui, a não ser edições fotográficas que sugerem uma estranha inquietação.

Esses artefatos visuais mudam a imagem apenas o suficiente para intensificar o clima de ansiedade e paranoia. Há pouco uso da música e com um design de som discreto.

Essa combinação entre realidade e ficção (a família real que contracena como família ficcional) criou uma química perfeita, criando uma sensação de autenticidade difícil de encontrar na safra de filmes recentes dentro desse subgênero do terror.

A narração ao mesmo tempo lenta e fragmentada parece querer ferver aos poucos, em banho-maria, o drama de uma família que aos poucos vai perdendo o verniz da normalidade e felicidade. E no final o enigma é exposto ao espectador:  tanto protagonistas como espectadores são os detetives que tentam resolver o mistério do porquê o mais aterrorizante é o próprio homem.


Ficha Técnica


Título: Luciferous
Diretor: Masha Ghorbankarimi, Alexander Gorelick
Roteiro:  Masha Ghorbankarimi, Alexander Gorelick
Elenco:  Masha Ghorbankarimi, Alexander Gorelick, Mina Gorelick, James Schryer
Produção: Alexander Films
Distribuição: Factory Film Studio
Ano: 2015
País: Canadá

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