O projeto cinematográfico de um casal rodado em seu
próprio apartamento em Toronto, Canadá. Junto com sua pequena filha, uma
família real atua como uma família ficcional em um suposto "found footage" (vídeo
achado como se fosse real) encontrado e anexado como prova das investigações de
um crime que aconteceu. Mas essa é uma sinopse simplista (apenas uma versão) do
filme Luciferous (2015) onde uma família real é manipulada por alguma força
sobrenatural que parece atuar no apartamento, levando a família a uma lenta
desintegração. O filme explora temas gnósticos clássicos como a paranoia,
memória e a confusão entre ilusão e realidade. O que torna tanto os
protagonistas como os espectadores em detetives que tentam compreender as
pistas falsas e estranhas metalinguagens ao longo do filme. Assim como no
arquétipo contemporâneo do Detetive, a resolução do enigma pode se voltar
contra o próprio detetive que tenta achar a verdade. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
Desde o filme A
Bruxa de Blair (The Blair Witch
Project, 1999) o subgênero terror “found footage” (um vídeo achado em algum
lugar como se fosse real) prosperou e se ramificou em produções sci-fy como Cloverfield ou na franquia de terror Atividade Paranormal. E ainda na
variação do terror em tempo real como no filme uruguaio La Casa Muda – sobre o filme clique aqui.
Na hsitória do cinema os gêneros do horror e terror
se fundamentaram no prazer escópico inerente ao olhar: voyeurismo e
exibicionismo. A narrativa tradicional do terror no cinema acabou se esgotando
no final do século passado quando slash
movies e as mortes em série perpetradas por Fred Kruger e Jason
explicitaram esse prazer perverso do público. Filmes como O Segredo da Cabana (2011) fizeram uma desconstrução desse prazer
pervertido dos espectadores – sobre o filme clique aqui.
O found
footage foi um sopro de renovação porque deu um álibi para o público se
aliviasse da culpa de ter uma prazer tão perverso: agora assistimos a “casos
reais”, a vídeos de câmeras internas que testemunham objetivamente o que
acontece. Parece que agora deixamos de ser espectadores cujo prazer está em
saber, antes do que o protagonista, o seu cruel destino final. No subgênero found footage estamos tão perdidos
quanto os protagonistas e parece nos isentar de qualquer pecado porque nos
tornamos apenas testemunhas oculares de um evento real.
O filme Luciferous
conduz esse novo álibi do terror atual à radicalidade: vemos uma família real
(os personagens são de fato a mesma família na vida real) que produziu e
dirigiu o filme ao qual assistimos. Além de fazer uma surpreendente
metalinguagem final de toda e experiência que tivemos ao longo de uma hora e
meia, ao melhor estilo Sexto Sentido.
Como discutiremos adiante, ao fazer uma
metalinguagem final (e o filme deixa pistas metalinguísticas ao longo da
narrativa) expõe o próprio prazer secreto que o espectador pretende mascarar
como álibi “found footage” – no final o próprio enigma que o espectador quer
desvendar junto com os protagonistas tem a ver com ele mesmo. Luciferous
explora o arquétipo contemporâneo gnóstico do Detetive: o enigma da paranoia
que no final reverte-se contra si mesmo.
O Filme
Alex (Alexander Gorelick) e Masha (Masha
Ghorbankarimi) desfrutam de uma vida feliz onde a filha Mina (Mina Gorelick) é
o centro daquele mundo familiar. Embora a família lute com certos desafios
profissionais, fazem de tudo para ter memórias felizes de Mina com fotografias
e vídeos, chegando a presentear a filha com uma pequena filmadora digital.
Mas aos poucos coisas estranhas começam a
acontecer, e a epígrafe da abertura retirada do livro O Exorcista parece nos
preparar para o pior: “O demônio é mentiroso, mente para nos confundir. Nos
confunde atacando nossas fraquezas psicológicas. E fica poderoso por isso”.
Enquanto a família dorme, vemos um quadro cair da
parede, do nada uma cadeira gira lentamente. Descobrimos que Alex vive
atormentado pela culpa pela morte do seu amigo Peter em um acidente de carro:
Alex estava ao volante e se culpa por isso.
Até que em uma corrida diária por um bosque, Alex é
brutalmente golpeado na cabeça por alguém ou por alguma coisa, deixando-o em
coma por um mês sob os cuidados da esposa no apartamento da família. Depois que
Alex volta à consciência, tudo começa a mudar. Durante os dias as coisas
parecem estar bem, mas durante a noite parece que o reinos das trevas domina
aquela casa. Vindo do nada uma explosão violenta acorda a todos. Mina
estranhamente fica em pé, no seu quarto, gritando enquanto os brinquedos caem.
O coelho de estimação Fluffy é encontrado morto no
armário do quarto de Mina. Alex e Masha começam a discutir frequentemente. Ele
se torna imprevisível e quase violento. Quando dirige o carro põem em ameaça a
todos. Mina passa a culpar o pai pela morte do coelho, colocando Alex em dúvida
quanto a sua sanidade mental: será que seu comportamento é decorrente de alguma
lesão neurológica?
Os remédios prescritos pelos médicos apenas ampliam
o seu estado paranoico por acreditar que tudo é uma vingança do fantasma do seu
amigo Peter. Todos ao seu redor parecem enlouquecer e a família perfeita deixa
de ser feliz.
Através das imagens supostas câmeras internas,
percebemos que durante a noite, e mais tarde também durante o dia, de fato há
alguma estranha presença que se desloca pelo apartamento, parecendo observar a
todos. Mas tudo é fragmentado e estranhamente editado no filme aumentando
propositalmente uma ambiguidade fundamental da narrativa: o que afinal estamos
assistindo, um “found footage” ou uma “live action” de um filme convencional de
terror?
Paranoia gnóstica e o Detetive
Paranoia e confusão entre ficção e realidade (será
que tudo é efeito da lesão de Alex?) toma os protagonistas assim como o próprio
espectador.
Paranoia que leva a confusão entre ficção e
realidade é um tema gnóstico por excelência. Remete a Valentim (filósofo
gnóstico do início da Era Cristã) onde a desconfiança radical sobre a
consistência da realidade pode levar tanto à iluminação quanto a loucura.
Na galeria dos arquétipos contemporâneos remete à
figura do Detetive: aquele que se confronta com um enigma onde tenta juntar os
pedaços de um mundo que está desabando. Mas que no final o enigma se volta
contra ele mesmo, revelando alguma verdade interior escondida pelas ilusões do
ego.
A narrativa fragmentária e as estranhas pistas
metalinguísticas espelhadas pelo filme (como, por exemplo, os saltos dos frames
em algumas sequências) sugerem também um enigma para os espectadores: afinal,
qual o “tom” dessa história. É um found footage? Live action? Há alguma
entidade sobrenatural naquele apartamento? Ou tudo não passa de alucinações de
Alex produzidas pelas prescrições médicas psicotrópicas?
O próprio Alex tenta encontrar alguma sanidade em
tudo fazendo uma espécie de metalinguagem de si mesmo: em seu vlog (um blog com vídeos) partilha grava
a impressões pessoais na tentativa de encontrar alguma concreção. Ironicamente
para Alex, a realidade transforma-se numa ilusão, e o único elemento real é a
imagem de si mesmo gravada em vídeo no blog pessoal.
A família
filmou o projeto em seu próprio apartamento em Toronto, Canadá. Na vida real
Alex é um especialista em produções stop
motion e um judeu da antiga União Soviética; e Masha trabalha com
fotografia, iluminação e composição, natural de Teerã, Irã.
Uma química perfeita
O curioso é que a própria decoração do apartamento
do casal (com máscaras, estátuas e quadros com motivos religiosos, tribais e
mitológicos ajudam a criar a atmosfera misteriosa de um apartamento amaldiçoado
possivelmente por algum tipo de fantasma ou poltergeist. Não há efeitos
especiais aqui, a não ser edições fotográficas que sugerem uma estranha
inquietação.
Esses artefatos visuais mudam a imagem apenas o
suficiente para intensificar o clima de ansiedade e paranoia. Há pouco uso da
música e com um design de som discreto.
Essa combinação entre realidade e ficção (a família
real que contracena como família ficcional) criou uma química perfeita, criando
uma sensação de autenticidade difícil de encontrar na safra de filmes recentes
dentro desse subgênero do terror.
A narração ao mesmo tempo lenta e fragmentada
parece querer ferver aos poucos, em banho-maria, o drama de uma família que aos
poucos vai perdendo o verniz da normalidade e felicidade. E no final o enigma é
exposto ao espectador: tanto
protagonistas como espectadores são os detetives que tentam resolver o mistério
do porquê o mais aterrorizante é o próprio homem.
Ficha Técnica |
Título: Luciferous
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Diretor: Masha Ghorbankarimi, Alexander Gorelick
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Roteiro: Masha Ghorbankarimi, Alexander
Gorelick
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Elenco: Masha Ghorbankarimi, Alexander
Gorelick, Mina Gorelick, James Schryer
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Produção: Alexander Films
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Distribuição:
Factory Film Studio
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Ano: 2015
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País: Canadá
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