Quando lançado foi desprezado como
uma enorme baboseira pretensiosa e cheia de diálogos sem sentido. Doze anos depois,
“Huckabees – A Vida é uma Comédia” (2004) ganha sentido e atualidade e vale à pena ser revisto. Além de
mostrar como é possível aliar entretenimento com uma séria discussão
filosófica, o filme faz uma surreal metáfora da vida como uma grande loja de
departamento onde tudo está à venda – da doença até o suposto remédio que iria
nos curar com a paz de espírito. Como a esquizofrênica imagem da rede de lojas
Huckabees (vende ao mesmo tempo consumismo e mensagens ecologicamente
responsáveis) contamina a vida dos protagonistas que buscam soluções possíveis:
ou a melancolia e pessimismo ou a fé nas imagens de sucesso. Mas outros
vendedores aparecerão para lhes oferecer conforto no mercado filosófico:
aristotélicos, sofistas e céticos.
Historicamente as relações sociais sob o
capitalismo sempre foram marcadas pela exploração e violência: da exploração de
crianças na indústria têxtil na Revolução Industrial inglesa até a atual
exploração infantil em países asiáticos na fabricação de produtos de marca como
Nike, passando pelas denúncias de que a rede Walmart obriga funcionários a
usarem fraldas descartáveis para não abandonarem posições para ir ao banheiro.
Até o início do século
passado isso sempre foi explícito, com a ajuda da violência policial a cada
greve operária. Mas tudo mudou desde que o sobrinho de Freud, Edward Bernays,
inventou as Relações Públicas e as primeiras técnicas de engenharia de opinião
pública. E também quando as fábricas tornaram-se gigantescas corporações
anônimas onde a figura do burguês desumano deu lugar aos acionistas sem rostos.
Desde então, as corporações procuram criar a imagem de socialmente responsáveis
e ecologicamente corretas por meio das técnicas mercadológicas.
Isso fez a sociedade
como um todo ingressar numa espécie de cultura esquizofrênica: o capital
explora mas ao mesmo tempo promove o marketing da responsabilidade social e
ambiental; enquanto a publicidade e propaganda produz imagens de felicidade e
sucesso, convivemos com fracasso e frustração; enquanto a mídia promove imagens
dos vitoriosos e bem sucedidos, introjetamos a culpa pelas nossas derrotas.
Esse abismo entre
aparência e essência, imagem e realidade talvez seja o motivo de muitos dos
nossos dramas existenciais. Esse é o tema de Huckabees – A Vida é uma Comédia (2004), um filme sobre a
impessoalidade do mundo corporativo onde a imagem positiva das relações
públicas substitui a realidade, restando para as pessoas duas saídas: o
pessimismo e a melancolia ou acreditar nas imagens de sucesso.
O filme consegue
combinar uma comédia non sense e surreal com séria questão filosófica: qual o
sentido da nossa existência numa sociedade manipuladora e que procura preencher
as falhas com as aparências?
O Filme
Huckabees é um filme caótico, cheio de desafios e enigmas. A certa altura o
excesso de linhas de diálogos curtos e minimalistas torna-se até maçante. Mas
vale a pena acompanhar as desventuras de Albert (Jason Schwartzman), um
ativista ambiental desiludido que trabalha rede de lojas de departamentos
chamada Huckabees, “a loja que vende de tudo”.
Albert está
atormentado por uma coincidência surreal: encontrou um rapaz africano em uma
loja em uma sessão de autógrafos, para depois reconhece-lo como o porteiro do
prédio onde mora. Além de quase atropelá-lo no estacionamento de uma das
filiais da Huckabees. É dessa coincidência que inicia a discussão
existencialista que será o plot principal do filme: a vida é composta apenas por
eventos aleatórios? Ou coincidências como essas podem revelar algum propósito
para a existência?
Angustiado, Albert
contrata um casal de “detetives existenciais”, Bernard (Dustin Hoffman) e
Vivian (Lily Tomlin), um serviço especializado em descobrir o sentido da vida
de cada cliente – vem imediatamente à mente a lembrança da Lacuna Inc. do filme
Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças,
especializada em deletar do cérebro as memórias de frustrações amorosas com
seus métodos tão malucos como os da dupla de detetives – sobre o filme clique aqui.
A ironia é explícita: assim
como na rede Huckabees, tudo está à venda, inclusive a busca do sentido da
vida.
Albert é um ativista
que luta para defender uma rocha da especulação urbana – um pedaço de pedra que
foi a única coisa que sobrou de um pântano destruído pela construção de mais
uma loja da rede Huckabees. Através da sua garota-propaganda Dawn Campbell
(Naomi Watts), a rede tenta passar a imagem de ecologicamente responsável para
a opinião pública, em contradição flagrante com a imagem materialista e
consumista que a modelo inspira.
Para piorar, Albert
também é atormentado pela sua espécie de duplo: Brad Stand (Jude Law), bonito,
bem sucedido na empresa, articulado, rico e namorado da garota-propaganda da
Huckabees. Ele é tudo que Albert gostaria de ser, também possuidor das mesmas
assombrações existenciais de Albert, mas que as esconde no consumismo e na vida
superficial.
Pessimismo gnóstico?
Os detetives
existenciais assumem Albert e Brad como seus clientes, aplicando seus métodos
de pesquisa etnográfica – munidos de blocos de anotações, gravadores e câmeras
observam a vida cotidiana de cada um, procurando atos falhos, frases ou
qualquer coisa que sirva de mote para a descoberta do sentido da vida pessoal.
Mas esses detetives
são assombrados pela sua rival: Caterine (Isabelle Huppert), outra detetive
existencial, ex-cliente, que agora busca um método radicalmente alternativo
para competir com o casal Bernard e Vivian – enquanto esses têm uma visão mais
otimista e holística da existência (o ser humano seria parte de um universo
harmônico), Caterine é cética e pessimista por acreditar que o ser humano é um
intruso em um universo caótico e imperfeito. Quando mais cedo o homem cair fora
desse caos cosmológico, tanto melhor.
Caterine tenta roubar
os cliente Albert e Brad. Trazê-los para a sua visão de mundo muito próxima do
niilismo gnóstico. Mas que, como tudo no filme, é mais um produto à venda na
“loja que vende de tudo” – o slogan da Huckabees que é uma irônica metáfora do
mundo regido pela lógica mercantil.
Aristotélicos, sofistas e céticos
Por trás da narrativa
caótica, o filme consegue fazer uma pequena síntese das posições antagônicas
básicas na história da filosofia ocidental: os aristotélicos, os sofistas e os
céticos, uma discussão que começou na cena filosófica da antiguidade grega e
parece que até hoje não terminou.
Os detetives
existenciais Bernard e Vivian são os típicos aristotélicos: procuram a verdade
através da lógica e disciplina mental. Acreditam em uma lógica sistêmica que
governaria a existência onde dedutivamente o homem encontraria o seu lugar em
um propósito maior.
Caterine é a cética, o
demônio que invade o universo logicamente holístico do casal de detetives –
para ela nada vale a pena porque apenas 5% do composto químico do corpo humano
correspondem aos elementos que compõem o universo. O que prova que somos
intrusos num cosmos frio e hostil.
E a rede Huckabees é o
próprio sofismo: como na antiga filosofia grega onde os sofistas cobravam um
preço para ensinamentos à venda, Huckabees vende um estilo de vida onde o
consumismo e o ecologicamente correto convivem confortavelmente. Assim como os
sofistas gregos acreditavam na relatividade da verdade (“o homem é a medida de
todas as coisas”), para a Huckabees tudo é uma questão de “percepção” e de
criação de uma boa imagem publicitária.
Para a Huckabees a
verdade só existe quando ela pode ser vendável.
Enquanto Albert tenta
se apegar na poesia e no ativismo ambiental, Brad se apega ao consumismo. São
as respostas até aqui possíveis para o dilema de uma sociedade esquizofrênica.
Nem um e nem o outro consegue encontrar a verdade. E em volta deles,
aristotélicos, sofistas e céticos tentam lhes convencer das suas verdades que
estão à venda no mercado das receitas para alcançar a felicidade.
Huckabees – A Vida é
uma Comédia é um filme que vale à pena ser revisto. Na época foi desprezado e
esquecido como uma enorme baboseira pretensiosa cheia de diálogos sem sentido.
Mas doze anos depois, revela como o capitalismo ampliou a sua lógica
esquizofrênica - ele não apenas explora enquanto cria imagens de sucesso. Agora
também vende receitas de felicidade, enquanto secretamente sabota essa
pretensão.
Ficha Técnica |
Título: Huckabees
– A Vida é uma Comédia (I Heart Huckabees)
|
Diretor: David A. Russell
|
Roteiro: David A. Russell e Jeff Baena
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Elenco: Jason Schwartzman, Jude Law,
Dustin Hoffman, Isabelle Huppert, Lily Tomlin, Naomi Watts
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Produção: Fox Searchlight Pictures, Qwerty Films
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Distribuição:
20th Century Fox (DVD)
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Ano: 2004
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País: EUA, Reino Unido
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