Com o filme “Regressão” (Regression,
2015) o diretor Alejandro Amenábar retorna ao seu tema predileto de filmes como
“Abre Los Ojos” ou “Os Outros”: as ilusões criadas pela nossa percepção. Um
detetive e um psicólogo investigam o caso de uma jovem vítima de abuso sexual
pelo seu pai. A aplicação de terapia de regressão por hipnose revela evidencias
de uma seita secreta de cultos satânicos envolvendo estupros, raptos e
sacrifícios. O que transforma uma pequena comunidade em vítima do medo e
histeria coletiva. Mas Amenábar nos mostra outro tipo de regressão: como a
Religião e, principalmente a Ciência, que deveriam ser instrumentos de verdade
ou esperança, transformam-se em incitadores do medo, ignorância e histeria. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
No final dos anos 1980 e começo dos 90 uma onda de notícias sobre supostos abusos (estupros, assassinatos, sequestros etc.) envolvendo rituais satânicos varreu a mídia dos EUA. Pânico e suspeitas se espalharam por diversas pequenas cidades, alimentado por programas sensacionalistas que sugeriam a existência de alguma espécie de rede de seitas secretas satanistas que estaria crescendo naquele país. Tão rapidamente como a onda de medo surgiu, de uma hora para outra desapareceu com a mudança de pauta da grande mídia.
O que mais impressiona nesses “efeitos de manadas”
criados por ondas de histerias coletivas é o retrocesso que se verifica em
diversos âmbitos, mas principalmente no campo científico. Justamente aquele que
deveria ser a luz que iluminaria as trevas da ignorância e do medo.
É sobre isso que trata
o filme Regressão de Alejandro Amenábar
(Os Outros), baseado em um caso real
ocorrido em 1990 na cidade de Hoyer, Minessota. Um investigador de polícia
tenta resolver o caso de uma adolescente que teria sido abusada sexualmente
pelo seu pai. Mas o caso logo se transforma em revelações sobre uma seita
satanista com rituais de sacrifícios, inclusive envolvendo bebês.
O pai e a avó
alcoólatra são interrogados sobre as assustadoras denúncias da adolescente, mas
dizem nada se lembrar. Para auxiliar nas investigações que consigam arrancar
uma confissão dos familiares, o detetive convoca um psicólogo especializado em
extrair memórias traumáticas através da terapia hipnótica de regressão.
Depois de mais de um
século de psicanálise e dos estudos empíricos no campo dos estudos da recepção
em comunicação de massas, o tema das memórias deixou ser encarado como relatos
que devem ser levados ao pé da letra como verdades.
Na Psicanálise Freud
descobriu que as memórias das pacientes neuróticas que vinham à tona por meio
da hipnose eram na verdade fantasias. E nos estudos de recepção, a descoberta
de que somente ouvimos o que queremos ouvir ou vemos apenas o que queremos ver:
nossa memória sobre conteúdos de comunicação é sempre seletiva – lembramos
somente de detalhes que confirmam nossas convicções pré-existentes.
O filme Regressão
mostra como em momentos de crise em uma pequena comunidade, Ciência, Igreja e
Polícia, que em tese deveriam ser instituições que deveriam nos proteger,
voltam-se contra a própria sociedade ao se
transformarem em mecanismos que só alimentam o medo e a ignorância –
simplesmente acabam ignorando todos os seus próprios avanços, regredindo para
os seus estágios mais primitivos e sombrios.
O Filme
Bruce Kenner (Ethan
Hawke) é um detetive arrogante e provincial designado para investigar o caso de
Angela (Emma Watson), uma adolescente de 17 anos que fugiu da casa dos pais
para se esconder em uma igreja de um evangelista ultraconservador, o reverendo
Beaumont. Segundo ela, foi vítima de abuso sexual pelo seu pai que, juntamente
com sua avó (de cara uma figura estranha e suspeita – alcoólatra e com a casa
cheia de gatos) fariam parte de uma seita satânica.
Para provar, ela tem
uma cruz invertida supostamente desenhada com uma faca em sua pele em uma das
sessões de abuso ritualístico.
O caso quebra a pacata
rotina da comunidade que começa a acreditar nos testemunhos cada vez mais
horríveis de Angela gravados em sessões de regressão hipnótica feitos pelo
psicólogo professor Kenneth Raines (David Thewlis) – uma seita onde membros da comunidade
vestem robes pretos e vermelhos, liderados pela avó-bruxa onde bebês e crianças
inocentes seriam abatidos em um velho celeiro enferrujado.
Está claro desde o
início que o diretor Almenabar quer combinar um drama sobre até onde pode chegar
uma histeria de massa com os clichês básicos de um thriller de terror – cruzes
invertidas, encapuzados satanistas com rostos pintados, mantras de invocação ao
demônio etc.
O fato é que todos daquela
pequena comunidade deixam de ver o seu próximo como antes – principalmente o
detetive Bruce Keener, envolvido pela carência manipuladora que se esconde por
trás da vítima Angela: todos tornam-se suspeitos, sentindo-se a todo momento
vigiado por anônimos nas ruas.
Regressão da Ciência e Religião
Amenábar retorna nesse
filme ao seu tema predileto: thrillers focalizados em jogos das ilusões da
percepção como em Abre Los Ojos
(1997) ou Os Outros (2001). Dessa
vez, sobre os temas das memórias, regressões e hipnose.
Fica notável no filme
como o arrogante detetive sabichão se alia ao psicólogo e acadêmico professor
Raines que em pouco tempo também passará a se imaginar também como um detetive,
enquanto o reverendo Beaumont vê em tudo aquilo a confirmação do que mais
acredita: em uma conspiração satânica da qual só a fé em Deus (e a sua igreja)
poderá salvar.
É também notável o
simbolismo que Regressão explora: aos
poucos Ciência e Religião vão se despindo dos seus aspectos mais civilizatórios
e avançados e começam a regredir.
A religião abandona a
ética civilizatória cristã da tolerância, compaixão e amor ao próximo para
voltar à violência da lei do Talião – a igualdade entre o crime e a punição.
E no campo científico,
tanto o detetive como o psicólogo passam a acreditar na literalidade dos
relatos extraídos das regressões hipnóticas tanto de Angela quanto do seu pai.
Memórias e fantasias – alerta de spoilers
Porém, há muito tempo
as ciências da mente deixaram para trás a literalidade nas interpretações das
memórias. Por exemplo, em plena era vitoriana do final do século XIX Freud
construiu toda a sua teoria das neuroses a partir da reviravolta nas
experiências clínicas com pacientes submetidos a hipnose.
Freud descobriu que
todos os relatos de pacientes sobre incidentes ocorridos na infância (as
chamadas cenas da sedução, a primitiva ‑ onde a criança teria
testemunhado o coito parental – e a da castração)
jamais aconteceram. As cenas foram fantasiadas. A partir dessas três fantasias,
mais tarde Freud iria construir a teoria do Complexo de Édipo.
E, mais ainda, indicaram
a presença de uma vida sexual ativa na infância (ao contrário do que se
acreditava nos meios científicos da época, onde a sexualidade era considerada
uma atividade especificamente adulta e voltada para a procriação). Mas uma
estranha vida sexual, dominada por fantasias perversas e por nenhuma clareza na
definição da identidade sexual.
Enquanto na era
vitoriana de Freud as memórias eram fantasias alimentadas pela atmosfera de uma
ordem patriarcal repressiva, hoje as fantasias são induzidas pela própria
terapia ou pela mídia, como Amenábar sugere brilhantemente em uma sequência: a
“receita secreta” (droga com a qual seriam dopados as vítimas dos rituais) que
veio à tona tanto pela hipnose como pelos pesadelos do paranoico detetive nada
mais era do que o slogan de uma campanha publicitária de uma marca de sopa
instantânea.
Portanto, o título do
filme, “Regressão”, parece ser irônico: não se trata apenas da terapia por
hipnose, mas também como Ciência e Religião podem regredir ao ponto em que se
tornam ferramentas que induzem e alimentam a histeria coletiva, o medo e a
ignorância.
É emblemática a cena
onde, após todas as mentiras serem reveladas, o detetive Bruce Keener e o
psicólogo Kenneth Raines estão sentados em um bar, perplexos e frustrados,
olhando para a TV acompanhando um telejornal onde Angela denuncia a suposta
conspiração satanista: “a pior parte é que nós acreditamos”, lamenta o
psicólogo.
Ficha Técnica |
Título: Regressão
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Diretor: Alejandro Amenábar
|
Roteiro: Alejandro Amenábar
|
Elenco: Ethan Hawke, David Thewlis, Emma
Watson, Lothaire Bluteau
|
Produção: FilmNation Entertainment, Mod Producciones, First Generation Films
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Distribuição:
Elevation Pctures
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Ano: 2015
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País: Canadá, Espanha
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