O que acontece quando
o filme clássico “A Morte do Demônio” (Evil Dead) de 1981 se encontra com “Matrix” e "Show de Truman"?
Temos o surpreendente filme “O Segredo da Cabana” (The Cabin in the Woods, 2011),
um instigante jogo metalinguístico em múltiplos níveis que vai da sátira ao
gênero “slasher movies” às origens míticas da necessidade de antigos arquétipos
e mitos serem revividos e renovados em diversos formatos, da antiguidade à
indústria de entretenimento contemporânea. Por que ritos antiquíssimos de
sacrifícios humanos precisam ser repetidos a cada filme? Por que jovens que
fazem sexo sempre morrem com requintes sadísticos em cada roteiro hollywoodiano?
É o que pretende responder o diretor Drew Goddard em “O Segredo da Cabana”.
Quando Sam Reimi escreveu e
dirigiu “A Morte do Demônio” (Evil Dead, 1981) certamente não imaginava que a
situação de cinco jovens em uma remota cabana tomada por demônios em uma
floresta se tornaria um plot prototípico de todos os chamados “slash” ou “exploited”
movies - onde sempre um assassino surge do nada para atacar um grupo com
requintes de tortura, sadismo e perversão sexual.
Mais do que isso, talvez não
imaginasse que nesse meio tempo o mainstream
hollywoodiano embarcaria em uma fase “metafísica” de auto-desconstrução como em
“Show de Truman” ou de desconstrução gnóstica da própria realidade como em
“Matrix” e “Vanilla Sky”. O resultado foi o surgimento de toda uma geração de
roteiristas e diretores (Charlie Kaufman, Christopher Nolan, irmãos Wachowsky,
Tarantino etc) com uma visão metalinguística, desconstrucionista ou de
distanciamento irônico em relação aos gêneros, fórmulas ou clichês do cinema
comercial.
Somente é possível compreender
integralmente o filme “O Segredo da Cabana” (The Cabin in the Woods, 2011)
colocando-o dentro desse contexto de produções cinematográficas cada
vez mais auto-referenciais e que, por isso, permitem muitas vezes a possibilidade de expressar agudas visões
críticas no meio do mainstream
hollywoodiano, como no caso desse filme.
O diretor e roteirista Drew
Goddard já havia demonstrado isso em “Cloverfield” (2008), um meta-filme que
brincava com os limites entre documentário/ficção e todos os clichês de filmes
de monstros como “Godzilla”. Aqui em “O Segredo da Cabana”, com a liberdade de
dirigir e escrever, Goddard vai mais fundo ao partir de uma situação que
certamente já vimos em algum lugar: cinco estudantes universitários embarcam em
uma van para passar um final de semana que promete muito sexo, diversão e
drogas em uma cabana em algum lugar remoto. A última parada é, naturalmente, um
posto de gasolina abandonado onde um caipira decrépito e demente parece saber
de tudo e ri do destino reservado para eles na cabana à frente. Eles representam os personagens arquetípicos
dos filmes do gênero: a garota devassa, a virginal, o garoto intelectualizado e
casto, o rapaz atlético e popular e o maconheiro engraçado que serve para dar o
alívio cômico às sequências de massacre.
Mas nas primeiras sequências
percebemos que há algo de diferente nesse “slash movie”: nos créditos iniciais
são mostrados desenhos que representam rituais de sacrifícios antigos, depois
vemos dois técnicos de meia idade trocando banalidades no que parecer ser mais
um dia de trabalho em uma espécie de laboratório científico para depois a tela
ser tomada pelas letras em vermelho sangrento com o título do filme.
Na próxima hora e meia
acompanhamos um vertiginoso exercício de metalinguagem e desconstrução do
gênero, muito mais radical do que as paródias e paráfrases de filmes como “Todo
Mundo em Pânico” (Scary Movies) ou “Zumbilândia” (Zombieland, 2010): mais do que
ironizar clichês, Goddard vai querer explicar o porquê de sempre o grupo querer
se separar quando ficar junto é mais seguro para enfrentar os caipiras zumbis;
ou porque sempre a garota virgem sobrevive no final e porque o casal que faz
sexo sempre tem uma morte horrível.
A crítica afirma que o filme é
“irregular”, porém essa troca de “tons” ou “tempos” no filme corresponde aos
níveis sucessivos de metalinguagem que Goddard vai aprofundando, alterando o
significado daqueles cinco jovens da cabana: primeiro nível: o porquê dos
comportamentos clichês de cada um deles; segundo nível: o meta-psiquismo dos
arquétipos a que cada um deles corresponde; e terceira e mais profundo nível: o
porquê da necessidade atávica de cada um desses arquétipos serem reencenados ad infinitum pela espécie humana desde
os tempos imemoriais até Hollywood.
Primeiro nível: “slasher movie” se encontra com “Matrix” e “Truman Show”
Pode parecer que estou revelando
um segredo, mas na verdade a cabana onde toda a tragédia rolará não é uma
cabana comum: é controlada por um laboratório subterrâneo repleto de cientistas
que monitoram através de telas cada segundo de ação dos jovens que, na verdade,
não passam de cobaias onde suas escolhas são induzidas por situações simuladas.
Há possibilidade de o experimento ter a ver com segurança nacional já que
também vemos vítimas em cenários semelhantes em outras partes do mundo.
Mas acredite: isso é apenas o
começo! Tudo parece ser um mix do reality show do filme “Show de Truman” e a
simulação tecnológica de “Matrix”. Todos os técnicos, cínicos e indiferentes,
fazem apostas sobre quem vai morrer primeiro ou qual tipo de entidade maligna
(zumbis, tritão, demônios etc.) será despertado para dizimar o grupo.
De forma instigante, “O Segredo
da Cabana” faz uma metalinguagem das ações dos personagens que seguem as
exigências do gênero (a “experiência” do laboratório subterrâneo) com a própria
indústria do entretenimento que codifica o livre-arbítrio dos atores dentro dos
roteiros e clichês comerciais. Na verdade, nesse nível a dupla de cientistas
geeks (Richard Jenkis e Bradley Whitford) é uma sátira da própria condição de dupla
de roteiristas do filme diante das pressões comerciais para que as exigências
do gênero seja cumpridas.
Segundo Nível: o meta-psíquico
Aos poucos, o filme começa a
procurar metalinguagens tão profundas quanto o laboratório dos cientistas
demiurgos. A cada morte previsível dentro dos clichês, vemos o sangue da vítima
escorrendo através de canaletas subterrâneas até preencher um diagrama do arquétipo
correspondente: a do atleta popular, da garota devassa etc. É a galeria dos
arquétipos (símbolos do inconsciente coletivo) por trás de cada clichê
comercial que são como revividos por meio do sangue em um ritual antiquíssimo.
Aqui os roteiristas estão
conscientes de que, na verdade, manipulam materiais psíquicos, formas-pensamento
da humanidade por trás de cada personagem-clichê. Por algum motivo, que ainda
não sabemos, esse ritual tem que ser repetido por todo lado, em todas as partes
do mundo (a globalização da indústria do entretenimento).
Inadvertidamente, os jovens
despertam zumbis ao lerem frases em latim de um antigo diário no porão, como
poderiam também ter optado por demônios, monstros, palhaços assassinos etc. No subterrâneo
ainda mais profundo está confinada uma verdadeira galeria dos maiores pesadelos
humanos, prontos para serem aleatoriamente despertados pelo experimento da
cabana. Tudo vem de subterrâneos (porões, laboratórios, entidades malignas)
como o “Estranho” (“uncanny”) que aflora repentinamente do inconsciente.
Freud sustenta que as pulsões inconscientes proveem da inesperada
erupção de medos que foram por muito tempo reprimidos. O inconsciente é o
retorno do reprimido, a perturbadora fusão entre o conhecido e o desconhecido. De
um lado essa pulsão reprimida é monstruosa, chocante, motivo pelo qual foi há
muito tempo escondido no inconsciente. Essa mesma energia inconsciente deve necessariamente
retornar por ser a força essencial da motivação e organização psíquica.
Mas a repetição irrefletida dos filmes de terror é neurótica e psicótica
pela necessidade do clichê. Não há reflexão sobre o porquê da repetição, mas
apenas a repulsa e a atração pelo “Estranho”: sentimos a repulsa pela erupção
do estranho, mas, ao mesmo tempo somos atraídos pela revelação através de
imagem e movimento daquilo que vem de suas próprias profundezas.
Terceiro Nível: o mítico [cuidado com spoilers!]
Mas por que é necessário repetir
desde séculos e em toda parte do planeta esse verdadeiro ritual de sacrifício
humano seguindo o roteiro de arquétipos antiquíssimos? O filme dá duas pistas
que revelam esse novo e terceiro nível metalinguístico: os cientistas do laboratório
subterrâneo falam das necessidades sinistras dos “Antigos” às quais todos devem
obedecer; e numa ponta da atriz Sigourney Weaver (mais uma metalinguagem ao
fazer referência à sua participação no filme “Ghostbusters” de 1984 onde ela também
atua numa sequência de sacrifício humano a uma divindade da antiguidade em
plena Nova York atual) ela “revela” o porquê: “porque vocês são jovens!”, diz
enfaticamente para a garota virgem sobrevivente.
Rituais de sacrifícios humanos e
de animais são as mais antigas formas de idolatrar e se comunicar com
divindades, segundo Sir James Frazer em seu livro The Golden Bough – A study in
magic and religion de 1890. Essa forma mágica primitiva não apenas representava essa
forma de comunicação com a dimensão mítica e do Sagrado, mas também uma forma
de submissão e conformismo através da destruição do indivíduo jovem. Por
exemplo, entre os sírios O sacrifício de criaturas humanas era praticado para promover a
fertilidade da terra, aumentar as colheitas, facilitar os meios de comunicação
com as divindades aquém eram dedicadas e também para a expiação de seus
próprios pecados. Os sacerdotes usavam de muita imaginação ao efetuar tais
sacrifícios. Segundo James Frazer, as vítimas geralmente
virgens podiam ser enforcadas, afogadas, queimadas vivas, lançadas
de penhascos, etc. Quanto pior a morte, melhor...
Tudo
isso para impor o medo e terror aos jovens como ritual de passagem ao mundo
adulto da Ordem e Tradição míticas. Com a religião essas formas pagãs ou foram
reprimidas ou sublimadas como no ritual do sangue e do corpo de Cristo
convertidos em hóstia e vinho. E revivem em plena era hightech atual por meio
da indústria do entretenimento.
Mas
os antigos deuses gigantes continuariam lá, no nosso inconsciente (e no filme
nas camadas mais inferiores do planeta). Por isso precisam ser expiados,
apaziguados, denegados através de repetidos e sempre renovados rituais de
sacrifícios humanos: guerras, propagandas nazi-fascistas que exploram o ódio,
racismo e preconceito personificado por bodes expiatórios (judeus, negros,
imigrantes etc.) que precisam ser sacrificados em rituais como campos de
extermínio ou chacinas étnicas e... nos slasher
movies como metalinguisticamente aborda “O Segredo da Cabana”.
De
forma gnóstica, Drew Goddard subverte os clichês slasher movies: primeiro, ao
localizar o Mal não como punição aos pecados de jovens transgressores. O Mal
não está no indivíduo, mas em um sistema opressor controlado por cínicos e
indiferentes demiurgos. E, talvez o mais importante: toda a conspiração é
desmascarada pelo personagem que sempre deve morrer nesses filmes: o jovem
drogado e paranoico.
Ficha Técnica
- Título: O Segredo da Cabana (The Cabin in the Woods)
- Diretor: Drew Goddard
- Roteiro: Joss Whedon, Drew Goddard
- Elenco: Kristen Connolly, Chris Hemsworth, Anna Hutchison, Fran Kranz, Jesse Williams
- Produção: Lionsgate, Mutant Enemy
- Distribuição: Lionsgate
- Ano: 2011
- País: EUA
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