Bruxas e a moralidade de puritanos da América colonial do século XVII
narrado com explícitas alusões à família que se autodestrói no filme "O
Iluminado" de Kubrick e a referência visual do quadro de Goya "O Sabá das
Bruxas". Tudo leva a crer que “A Bruxa” (The Witch, 2015) é mais um filme do
gênero terror com sustos, sangue e perseguições. Mas o estreante diretor Robert
Eggers sabe que a mente é o verdadeiro combustível
do horror: mantém o espectador no fio da navalha entre a realidade e a ficção:
a dúvida se o elemento sobrenatural sugerido no filme é real ou se atmosfera claustrofóbica da
moralidade puritana foi capaz de criar bruxas e demônios. O resultado é uma
verdadeira psicanálise dos arquétipos do horror e das bruxas que sempre foram
“bodes expiatórios” dos horrores que povoam nossas mentes.
Desde que Linda Blair vomitou um líquido verde e girou a cabeça em O
Exorcista em 1973, o gênero terror acabou confundindo-se com efeitos especiais,
monstros dismórficos e muito sangue e vísceras espirrando para a câmera. Foram
décadas de serial killers do outro mundo como Jason e Fred Krugger, zumbis e
bruxas cujas vassouras se transformam em arma mortal para decepar cabeças.
Décadas que acabaram fazendo o gênero esquecer os seus fundamentos no
distante expressionismo alemão de Fritz Lang, Robert Wiene e Murnau onde o
víamos o horror muito mais no rosto dos protagonistas (olhando para o
contra-campo – aquilo que está fora do enquadramento), na cenografia fantástica
e na atmosfera de pesadelo. O terror e o susto substituíram o horror humano
diante do próprio Mal.
Mas o filme A Bruxa, na
estreia do diretor Robert Eggers em longas metragens, resgata esse horror
fundamental e esquecido nos últimos tempos: um profundo e inquietante conto do
folclore da Nova Inglaterra em uma América colonial. Perturbador e totalmente
inesquecível.
Mas um ponto fora da curva dentro das atuais convenções hollywoodianas
do gênero. Tanto que o diretor encontrou dificuldades para encontrar
financiamento. Entre outras produtoras, precisou também de uma produtora
brasileira, a RT Features (responsável por filmes como Tim Maia e O Cheiro do Ralo),
que apostou em um filme estranho aos clichês atuais gênero.
Nas entrevistas com a imprensa especializada, Eggers afirma que o filme
foi, de um lado, o resultado de vinte anos de paixão e desconstrução do filme O
Iluminado de Kubrick e, do outro, o fascínio pelos filmes de horror inglês da
Hammer (produtora de filmes dos anos 1960) inspirados em contos do folclore daquele país.
O processo de autodestruição de uma família como em O Iluminado e as
personagens das bruxas do folclore, cuja melhor tradução visual está nas
pinturas de Goya, foram os principais elementos para a construção do filme A
Bruxa. Para tanto Eggers fez uma extensa pesquisa sobre a vida familiar e o
folclore da década de 1630 na Nova Inglaterra, algumas décadas antes do infame
julgamento das bruxas de Salém – onde 20 pessoas, a maioria mulheres, foram
julgadas e executadas.
Mas principalmente o filme A
Bruxa busca o horror que está dentro de nós: a forma como projetamos no outro
um bode expiatório para tentar expiar o Mal que instituições como a família e a
religião criam e que levam elas próprias à autodestruição.
O Filme
A narrativa acompanha uma família de agricultores que foi excomungada de
uma comunidade puritana depois de o pai William (Ralph Ineson) acusar os laços
religiosos frouxos que sustentariam aquela sociedade. William muda-se com sua
família para uma cabana isolada ao lado de uma floresta fechada e sombria,
vendo a possibilidade de praticar uma vida mais próxima a Deus e dos
fundamentos da religião puritana.
Mas o otimismo e o fervor religioso começam a ser postos em prova quando
a filha adolescente Thomasin (Anya Taylor-Joy) não percebe o desparecimento do
bebê da família enquanto brincava com ele. Então o espectador é introduzido a
uma figura encapuzada correndo com o bebê através da floresta.
O que se segue é o centro do conflito do filme: a família luta em manter
a fé em Deus diante de tal tragédia. Além disso, as coisas continuam a piorar
com a pobre colheita do milho e o perigo da família morrer de fome com a
aproximação do inverno.
A fé dos membros inclui a mãe Katherine (Kate Dickie), o filho
pré-adolescente Caleb (Harvey Scrimshaw) e dois jovens gêmeos
indisciplinados Jonas (Lucas Dawson) e
Mercy (Ellie Grainger). O tempo inteiro oscilam entre as questões
puritanas sobre o pecado original, o destino do bebê após a sua morte ou se
eles foram redimidos aos olhos de Deus. É possível ir para o céu se você pecou?
Podemos saber com certeza se Deus perdoa? O que significa permitir a entrada do
pecado em sua vida? E como podemos identificar as consequências?
Essas dúvidas começam a atormentar cada vez mais os corações e mentes da
família enquanto os infortúnios vão se sucedendo, o que se transformam em suspeitas
de uns contra os outros. Alguém deve ser o responsável pela má sorte. Se não é
Deus, com certeza será alguns deles.
O susto e o medo
O filme lida com o medo e não com sustos. O filme sugere que há alguma
coisa de sinistra e sobrenatural no
interior da floresta que cerca a cabana. Mas Eggers sabe que o verdadeiro poder
de filmes como esse não é mostrar um vilão icônico e familiar para o gênero. Há
uma dúvida sobre a existência real de algum círculo de bruxas no interior da
floresta, ou se a própria floresta sombria não passa de uma projeção da
crescente paranoia e ansiedades religiosas daquela família.
Há diversos sub-plots no filme (a relação de Caleb com o pai, a
incompetência do pai em manter a subsistência da família, a crescente histeria
religiosa da mãe, mentiras e hipocrisias que aos poucos vem à tona etc.).
Mas todos esse subtemas terminam na menina Thomasine. Ela está entrando
na puberdade, tornando-se um fator de desequilíbrio na dinâmica familiar.
Sutilmente, Eggers mostra como a natural sensualidade de Thomasine começa a
afetar a todos, a cada um de uma maneira diferente.
O que impressiona é como a moralidade puritana torna cada membro daquela
família duro consigo mesmo: se todos são filhos do pecado original, então somos
naturalmente culpados e condenados ao inferno desde o início, tornando a vida
uma série de gestos e penitências que buscam pedir o perdão de Deus.
O inferno puritano procura um bode expiatório
Com esse inferno psíquico puritano somada a série de infortúnios que
atinge a família, a pressão torna-se cada vez mais insuportável para todos.
Como em qualquer instituição social, essa pressão deve ser necessariamente
aliviada pela busca do chamado “bode expiatório”- alguém deve ser o culpado por
não ter fé suficiente ou de simplesmente ser um traidor.
O que Eggers faz no filme é uma verdadeira psicanálise dos contos de
fadas, no melhor estilo do livro clássico Psicanálise dos Contos de Fadas de
Bruno Bettelhein. A figura mítica da bruxa surge como um recurso desesperado
para manter uma família ou comunidade coesas quando estão à beira da
autodestruição.
As acusações dos pais contra Thomasine onde tentam encontrar alguma
lógica religiosa para acusa-la de bruxaria foram retiradas das pesquisas do
diretor sobre os relatos do Julgamento das Bruxas de Salém. Somado ao
assustador design de áudio e os sets unicamente iluminados por velas e
lampiões, cria-se uma atmosfera claustrofóbica que em muitos momentos faz o
espectador lembrar do filme O Iluminado.
A mente é o combustível do horror. Eggers sabe disso e mantém a
narrativa e os espectador no fio da navalha – os constantes enquadramentos com
os personagens olhando aterrorizados para o contra-campo; as sequências das
imagens da floresta profunda sugerindo às vezes o horror sobrenatural e, outras
vezes, apenas o medo natural diante das intempéries; a ameaça de alguma força demoníaca que
parece crescer ao mesmo tempo em que se acumulam as tensões e são reveladas as
mentiras e hipocrisias daquela família puritana. E a dúvida permanente do
espectador entre a realidade e ficção, bruxas reais ou delírios de puritanos
atormentados pelo culpa e pecado.
Eggers conseguiu fazer uma história arquetípica do horror da Nova
Inglaterra após pesquisas junto a historiadores, museus de história natural e
os arquivos do infame Julgamento de Salém. Mas, principalmente, também conseguiu
fazer uma psicanálise dos colonos puritanos que iniciaram a América.
Assistindo ao filme, fica a questão que continua martelando a mente
desse humilde blogueiro: qual as conexões desse horror gótico do século XVII
com o mundo moderno? Como esses medos puritanos que, foram a base cultural da
América, continuam presentes no mundo atual? Principalmente em um mundo onde a
cultura norte-americana é irradiada para todo o planeta através da indústria
hollywoodiana.
Ficha Técnica |
Título: A
Bruxa
|
Diretor: Robert Eggers
|
Roteiro: Robert Eggers
|
Elenco: Anya Taylor-Joy, Ralph Ineson, Kate
Dickie, Harvey Schrimshaw
|
Produção: RT Features, Parts and Labor, Rooks Nest Entertainment, Cod Red
Productions
|
Distribuição:
Universal Pictures International (UPI)
|
Ano: 2015
|
País: EUA, Brasil, Canadá
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