“Grau Zero da Política” e “Micropolítica”. Esses dois conceitos,
respectivamente dos pensadores Jean Baudrillard e Gilles Deleuze, podem nos
ajudar a compreender o significado simbólico do atual processo de impeachment contra
a presidenta Dilma. Os catorze anos de sucessões de governos petistas teriam
criado uma crise simbólica no sistema político: a reversibilidade entre
Esquerda e Direita no momento em que governos supostamente de esquerda
implementaram políticas
neodesenvolvimentistas que ajudaram a criar condições ótimas de reprodução do
capitalismo - inclusão no consumo e precarização do trabalho. A Esquerda estaria
tomado para si a agenda conservadora? Então, por que derrubar Dilma? Baudrillard
diria que esse é a revelação do “grau zero” por trás dos simulacros da
política; e Deleuze diria: “nunca houve governo de esquerda”.
Uma das minhas primeiras experiências como repórter. No distante ano de
1983, cumprindo uma pauta para o Jornal Laboratório da Faculdade de Jornalismo
de Santos , fui cobrir uma sessão plenária da Câmara dos Vereadores da cidade.
Não sei se dei sorte ou se as sessões eram sempre assim movimentadas: testemunhei
vereadores do PMDB contra os do antigo PDS em discussões ferozes. Alguns deles
quase indo às vias da agressão física, sendo segurados pelos demais. Atmosfera
pesada e um final sem qualquer consenso.
No meu bloco de notas fiz um resumo da plenária, alguns depoimentos de
vereadores e saí do Paço Municipal da
Praça Mauá, Centro de Santos. Atravessei a av. General Câmara em direção a um
ponto de ônibus e passei em frente a uma padoca badalada na época. E com quem
deparei? Com alguns dos vereadores de situação e oposição que há pouco mais de
meia hora estavam quase se matando na plenária, agora todos juntos dando
risadas conversando sobre temas com certeza bem mais amenos. Conversavam
animados enquanto degustavam suas xícaras de café, em pé no balcão, em um
aprazível final de tarde.
Essa lembrança sempre foi recorrente na cabeça desse humilde blogueiro:
tudo foi uma simulação? Qual a natureza daquilo tudo que presenciei?
Mais tarde na pós-graduação me deparei com um livro do filósofo francês
Jean Baudrillard chamado Partidos
Comunistas: o Paraíso Artificial da Política. Em síntese, nesse livro
Baudrillard desenvolve seu ceticismo radical em relação à política em três
teses principais: (1) os comunistas não mudarão nada se chegarem ao poder; (2)
os comunistas não querem chegar ao poder; (3) a tese mais niilista: não há
perigo em ganhar o poder porque o poder, de fato, não existe.
Baudrillard referia-se a um suposto “grau zero da política”: e se todo o
sistema político tornou-se autônomo e fechado em si mesmo em relação à
sociedade e a economia? Um sistema cujos signos tornaram-se intransitivos, onde
sua distinções (Direita/Esquerda, Oposição/Situação) não são dadas como
representação de algo externo, referencial, ao sistema (ideologias, História,
Classes sociais etc.), mas como simples distinções binárias em um sistema
fechado em si mesmo.
O grau zero: signos comutáveis
Direita e Esquerda seriam signos comutáveis, definidos não positivamente
pelo seu conteúdo, mas negativamente por suas relações distintivas no sistema
- o grau zero da política.
Todas essas lembranças vem à tona na atual crise política brasileira com
o impeachment da presidenta Dilma e a condenação, inclusive da imprensa
internacional, de um golpe político em andamento no País.
O fantasma baudrillardiano do grau zero ressurge mais uma vez para assombrar
a política a partir de três premissas:
(a) Se em 2003 alguém viesse do futuro e dissesse que, depois de mais de
uma década de sucessivos governos de
esquerda, o Congresso seria dominado por homofóbicos, neofascistas, evangélicos
e pequenos escroques de um baixo clero que anunciariam, com todo os pulmões ao
vivo pela TV, seus votos pelo impedimento de uma presidenta, certamente
acharíamos que isso era um roteiro de algum filme de humor politicamente
incorreto;
(b) A forma como após sucessivos governos de esquerda um presidente foi
derrubado do poder praticamente sem reação: enquanto a grande mídia detonava
suas bombas semióticas diariamente para criar um clima de opinião de crise
econômica e política, os governos petistas não só eram reticentes em relação a
Lei dos Meios e o monopólio midiático – também alimentavam a grande mídia com
grossas verbas publicitárias com sua orientação “técnica” e “republicana”.
(c) Os sucessivos governos de esquerda não implementaram nenhuma
política “socialista”: nada mais fizeram do que ingressar o País em um regime
capitalista com a regularização da reprodução da mão de obra com sua inclusão
no mercado de consumo a partir de políticas neodesenvolvimentistas. Enquanto
isso, o sistema financeiro aferia lucros recordes com os altos juros. E mais: o
outro lado da inclusão no consumo foi a precarização do trabalho – o estágio
avançado da exploração no capitalismo com a abolição dos direitos trabalhistas
– leia ALVEZ, Giovanni. “Neodesenvolvimentismo
e precarização no trabalho no Brasil” in Blog Boitempo.
As principais críticas ao governo Dilma vinham da própria esquerda,
acusando-a de dar as costas aos
movimentos sociais enquanto aplicava uma agenda de medidas econômicas “conservadoras”.
Por que derrubar Dilma?
Se governos supostamente de esquerda deixaram a banca financeira
satisfeita e ajudaram a modernizar as formas de exploração capitalista, por que
a urgência da derrubada da atual presidenta?
Dando ainda mais força etérea ao fantasma de Baudrillard poderíamos
afirmar: Dilma não foi derrubada por colocar em perigo a ótima reprodução do
capitalismo mas, ao contrário, por paradoxalmente ajudar a implementar uma
agenda neoliberal roubando essa pauta da “Direita”.
Levando às últimas consequências a tese do grau zero da política, os
governos do PT colocaram o sistema da política em uma crise simbólica ao
criarem uma perigosa reversibilidade: a partir do momento em que lentamente
expropriaram a agenda conservadora da Direita,
colocaram em risco o código binário Esquerda/Direita que sustenta a
reprodução do sistema linguístico da Política.
Para o ceticismo de Baudrillard, o sistema político não produz política, mas reproduz a Política. Através de
estratégias de simulação procura esconder a intransitividade do signo político
– de que as posições do espectro político nada mais são do que signos
distintivos de um sistema que se autonomizou e fechou-se em si mesmo enquanto o
sistema econômico se autogere.
Para a economia a única função do sistema político é tornar verossímil
para a opinião pública as decisões dos agentes financeiros ou industriais por
meio de uma narrativa política crível, porque construída pela binariedade do
código.
Pois é justamente essa narrativa simbólica que o PT colocou em perigo.
Todo o sistema político necessita simular diferenças através de dois
discursos: o escândalo da corrupção e a ameaça do terror através de um inimigo
interno ou externo. “Mensalão”, “petrolão” e “bolivarianismo” foram as
variações de uma narrativa que é sempre posta em ação quando o sistema político
é ameaçado pela entropia: o perigo dos eleitores descobrirem que, na verdade,
todos os signos são reversíveis e equivalentes.
A ameaça do non sense
Quando os governos petistas ameaçaram permanecer no poder continuando a
implementar medidas ótimas de reprodução do capitalismo, a grande mídia disparou
o alarme para esse ameaçador non sense
que poderia implodir a narrativa política.
Essa implosão da narrativa política seria através da descoberta por parte dos
eleitores desse niilismo político, a verdadeira ameaça a todos os sistemas: o
vislumbre de que por trás da simulação das diferenças nada existe, a não ser o
simulacro da Política.
Sem um discurso que torne verossímil a gestão econômica, a sociedade
poderia ser dominada pela anarquia e desobediência civil. Por exemplo: quebra
do sistema financeiro através do saque dos ativos feito pelos próprios
correntistas ao descobrirem a inexistência do dinheiro através do crédito –
sobre as formas irônicas de destruição do capitalismo clique aqui.
Deleuze: nunca houve governo de esquerda
Podemos então afirmar que nunca
existiu governo de esquerda? Quem pode dar essa resposta é outro filósofo
francês, Gilles Deleuze. Como podemos acompanhar no vídeo abaixo de uma
entrevista com Deleuze , para ele a esquerda ou direita são muito mais formas
de percepção do que discursos políticos. Para ele nunca houve governos de
esquerda mas governos que aplicaram algumas exigências da esquerda.
O que Deleuze chama de “esquerda” nada tem a ver com governos ou com a
política. É uma forma de percepção (“Micropolítica”) de onde se parte do
contorno, do horizonte ou do mundo para compreender fenômenos particulares – ao
contrário do “endereço postal” da direita que parte do individualismo para
avaliar o todo – a sociedade, o país, o continente.
Para Deleuze, todas as críticas
da esquerda em relação as injustiças sociais não partiriam de um julgamento
moral ou político, mas em nome da própria percepção. Isso seria “ser de
esquerda: “começar pela ponta e considerar que esses problemas devem ser
resolvidos por agenciamentos mundiais”.
Além disso ser de esquerda é um “devir de minoria”, nada a ver com o
“padrão vazio” da construção da maioria em um sistema político democrático. Uma
sociedade com diversos “devires”, fenômenos de percepção cujos olhares buscam o horizonte e o todo.
Muito diferente do sistema político que se autonomizou e fechou em si
mesmo em um sistema distintivo de signos vazios e intransitivos. Por isso, a “percepção de esquerda” jamais teve lugar no sistema político e muito menos
em um governo.
E como acompanhamos no caso atual do impeachment, a mídia cumpriu bem o
seu papel de alarme do sistema político: irradiou a narrativa do escândalo da
corrupção e do perigo do inimigo interno (o PT “bolivariano”) para proteger o
código binário do sistema que o mantém fechado e sem horizontes.
Em outras palavras: Dilma cai não pelos seus defeitos, mas por suas
“virtudes”: estava fazendo a coisa certa. Porém, com os sinais trocados.
As memórias daquela tarde de 1983 continuam assombrando esse humilde
blogueiro.
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