Como o dramaturgo do
Teatro do Absurdo Eugène Ionesco pode explicar o suposto escândalo da questão de uma prova de
Filosofia de uma escola pública que citava a música da Valesca Popozuda? Não só
explica como também fornece um método para a criação de notícias em telejornais:
a estratégia de descontextualização. Mais uma
bomba semiótica onde a fabricação da notícia é ordenada pela organização de
fragmentos díspares em função de uma lógica que parece fazer os pedaços
convergir em direção a um desenlace que já se tem em vista. Como nos romances,
tudo parece ser o presságio de um inevitável abismo para onde o País
caminharia. Uma bomba semiótica cujo efeito é turbinado tanto pelo preconceito de
classe contra o funk quanto pelo jornalismo
metonímico do “Não Vai Ter Copa”.
Como recortar um
elemento do real para apresentá-lo como notícia em um telejornal? Na peça A Cantora Lírica Careca (La Cantatrice Chauve, 1950) Eugène
Ionesco, dramaturgo do Teatro do Absurdo – 1909 a 1994) nos fornece um método
bem interessante que é seguido à risca na atualidade para a montagem de bombas
semióticas. Em primeiro lugar, devemos declarar como “extraordinário” um
conjunto de elementos qualquer:
Sra. Smith ao casal Martin: vocês que viajam bastante devem ter muita coisa para contar.O Sr. Martin para a sua mulher: Diga querida, o que você viu hoje?
Sra. Martin: Não vale a pena, não acreditarão em mim.
Sr. Smith: Não duvidaremos da sua boa-fé.
Sra. Smith: Você os ofenderia se o fizesse.
Sra. Martin (com graça): Pois bem, assisti hoje a uma coisa extraordinária, inacreditável.
Sr. Martin: Diga logo, querida.
Sr. Smith: Ah! Vamos nos divertir.Sra. Smith: Finalmente!
Estamos nas
manchetes, ou tecnicamente naquilo que se chama “escalada” em um telejornal. É
preciso que o espectador tenha curiosidade por algo que foi pinçado da
realidade seja uma novidade.
Sra. Martin: Muito bem, ao ir ao mercado para comprar verduras, que estão cada vez mais caras...Sra. Smith: Onde é que vamos parar?
Sr. Smith: Não devemos interromper, querida levada!
Sra. Smith: Via na rua, ao lado de um café, um senhor convenientemente vestido, com cerca de 50 anos, talvez nem isso, que...
Sr. Smith: O que, quem?
Sra. Smith: O que, quem?
Sr, Smith: Não devemos interromper, querida. É desagradável.
Sra. Smith: Pois bem, vocês dirão que inventei, mas ele pôs o joelho no chão e se agachou...Sr. e Sra. Smith: Ohh!Sra. Martin: Sim, agachado!Sr. Smith: Impossível!Sra. Martin: Sim, agachado. Aproximei-me dele para ver o que ele fazia.
A fabricação da
notícia é ordenada por essa organização de fragmentos díspares em função de uma
lógica que parece fazer os pedaços convergir em direção a um desenlace que já
se tem em vista. Como nos romances, tudo aprece ser o presságio do inevitável.
Sr. Smith: E então?Sra. Martin: Ele amarrava os cordões do seu sapato que tinha soltado
Os outros três: Fantástico!
Sr. Smith: Se não fosse a senhora, não acreditaria.
Sr. Martin: Por que não? Veem-se coisas ainda mais extraordinárias quando se anda por aí. Eu mesmo vi sentado em um metrô um senhor que lia tranquilamente seu jornal!
Sr. Smith: Que original! Talvez fosse o mesmo.
Substitua os
personagens dessa peça de Ionesco pelos apresentadores e telespectadores de
telejornais e o homem que “estranhamente” se agachava na rua pela falsa
polêmica da questão da prova de Filosofia que fazia referência a Valesca
Popozuda, e teremos um caso exemplar de fabricação de mais uma bomba semiótica.
O fato descontextualizado
A primeira vista o
trabalho de um jornalista pode parecer simples: ver coisas que se passam e
relatá-las. A princípio, essas coisas que passam seriam acontecimentos que
rompem a norma, destoam em relação à regra e, por isso, chocam – um cachorro
que morde um homem não é notícia, mas se um homem morder um cachorro... Mas
desde que o Jornalismo transformou-se em uma indústria de notícias, esse
trabalho simples tornou-se complexo: o mundo não produz um número de acontecimentos
“chocantes” que atenda às necessidades diárias de produtividade da Imprensa.
Então, é necessário tornar chocante qualquer acontecimento, algo parecido com o
método proposto por Ionesco.
Mas, quando, além
disso, a Imprensa e a grande mídia assumem o papel de oposição política, temos então
a necessidade de produzir acontecimentos “chocantes” não mais de forma genérica
como “sensacionalismo” (notícias chocantes para vender jornais e conquistar
audiências), mas agora com uma intencionalidade: descontextualizar acontecimentos. Tal como o absurdo diálogo acima
proposto por Ionesco, a grande mídia deve retirar fatos da sua banalidade
cotidiana para em seguida, descontextualizado, o fato é elevado à condição de
acontecimento.
Um professor de
Filosofia, na sua atividade cotidiana de ministrar o conteúdo programático da
disciplina em uma escola pública do Distrito Federal, lança mão de uma
estratégia pedagógica para discutir com os alunos os valores da sociedade e o
papel da imprensa – como a mídia apenas vê pontos negativos e não consegue
enxergar os pontos positivos. E o funk como um exemplo. Correspondendo ao que
foi discutido em aula, o professor formula uma questão ao mesmo tempo irônica é
séria citando uma música da Valesca Popuzada.
Professor Antonio Kubitschek versus Valesca Popozuda: uma estretégia didática rotineira elevada à condição de escândalo |
A imagem nas redes
sociais da questão da prova (correspondendo ao homem convenientemente vestido
que se agacha na rua, de Ionesco) e a citação da música “Beijinho no Ombro” (o
homem estava amarrando os cordões do sapato) são retirados do contexto dos
instrumentos didáticos cotidianos utilizados por um professor para discutir
conteúdos (não só aquele homem, mas todos os homens convenientemente vestidos
amarram seus cadarços na rua).
Eu mesmo na minha
experiência como professor, já utilizei letras de músicas de Talking Heads e
Madonna a Latino e o funk Dança da Motinha para contextualizar certos temas e
debates. Imagine se uma dessas provas fosse parar em redes sociais...
Turbinando os efeitos da descontextualização
O objetivo dessa
bomba semiótica de descontextualização é evidente: ao lado de outras notícias e
produtos como o livro Diário de Classe
(sobre as denúncias dos problemas de uma escola pública), o propósito é o de
levantar evidências não só da crise do ensino público mas dos valores da
sociedade brasileira exemplificado na sugestão de uma suposta má formação de um
professor de rede pública. Reparem no vídeo abaixo do Telejornal Hoje da TV
Globo, o rosto grave de Sandra Annenberg enquanto baixam os créditos finais,
como se estivesse gesticulando indignada com a matéria a pouco exibida...
Sandra Annenberg: feições graves e indignação estudada após a notícia |
Mas o efeito de
tornar chocante um fato pedagogicamente banal através da estratégia de
descontextualização somente é possível com o cruzamento de alguns pressupostos
latentes, aumentando a letalidade dessa bomba semiótica:
(a) O estereótipo
criado pela grande mídia de que o funk é intrinsecamente mau, criminógeno e
perigoso para as pessoas de bem. E as casas noturnas funkeiras como lugares
insalubres onde ocorrem crimes e obscenidades – como se em raves e baladas de
classes médias e altas não pudessem ocorrer casos idênticos.
(b) Como na
maioria dos telejornais, Internet e redes sociais (inimigos da mídia
tradicional) são sempre associados a casos exemplares negativos como golpes,
trapaças, viciosidade e deterioração cultural. A fotografia da prova com a
questão sobre a Valesca Popozuda, apenas comprovaria esse pressuposto que faz
recordar das denúncias de publicações de gabaritos de provas do Enade e Enem
nas redes sociais.
(c) Seguindo a estratégia do jornalismo
metonímico (sobre esse conceito clique aqui), essa suposta evidência da
deterioração do ensino público que representaria a questão sobre a Valesca
Popozuda, foi estrategicamente colocada antes ou depois das notícias sobre a
Copa do Mundo no Brasil ou dos exames internacionais de educação onde o País
ocupou posições classificatórias modestas. Essa operação semiótica cria um
imediato efeito de contaminação, turbinando essa estratégia de
descontextualização e tornando a notícia uma evidência do suposto abismo para o
qual o País caminha.
(d) Isso sem falar na coincidência significativa (na verdade, um evento sincromístico) do professor ter o sobrenome Kubitschek, o mesmo do presidente que construiu Brasília (Juscelino Kubitschek). Mais um fator que turbina essa bomba semiótica, oferecendo um evento sincrônico que sublinha ainda mais o elemento de "brasilidade" ao destino das más notícias que, para a grande mídia, o Brasil está predestinado.
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