O que acontece quando um filme sobre zumbis mistura referências a escritores como Norman Mailer e William Burroughs? Resulta em um dos mais surpreendentes e originais filmes do gênero dos últimos anos. A produção canadense “Pontypool”(2008) cruza dois insights da literatura ensaística: as coincidências sincromísticas que antecederiam eventos importantes na história e a linguagem humana como um vírus letal que parasita a humanidade. Em “Pontypool” o vírus não é disseminado pelo sangue, ar ou corpo, mas pelas palavras. O que resulta num interessante “terror semiótico”: certas palavras estariam infectadas, aquelas mais carregadas de afeto e emoção. E nos Dias dos Namorados isso pode ser fatal... Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
Quando pensamos em
filmes sobre zumbis, vem à mente as recorrentes cenas de sangue, corpos
despedaçados e olhares selvagens de pessoas transfiguradas querendo comer o
cérebro dos vivos. Mas, o que dizer de um filme sobre o tema cuja proposta é
juntar ideias do escritor e ensaísta Norman Mailer com as do escritor beatnik
William Burroughs dentro de uma atmosfera que lembra a transmissão radiofônica de Guerra dos Mundos de Orson
Welles de 1938? O resultado são zumbis infectados por uma espécie de virus semiótico.
Essa é a produção
canadense Pontypool (2008) dirigida por Bruce McDonald e baseada no livro do
escritor Tony Burgess Pontypool Changes
Everything. Para os aficionados do gênero, Pontypool pode causar estranheza porque além de ser bem econômico em termos de sangue e visceras, todo o filme ocorre no interior do estúdio de uma emissora de rádio em
uma pequena comunidade canadense, em uma crescente atmosfera claustrofóbica. E
os zumbis não foram contaminados pelo sangue, ar ou pelo corpo, mas por algumas
palavras quando elas são ditas e compreendidas pela vítima, tornando-se o
hospedeiro de uma nova forma de vida: o vírus da linguagem.
Tanto o livro como
o filme faz uma surpreendente conexão entre a teoria de Norman Mailer sobre o
porquê da nossa consciência não perceber as conexões causais entre eventos
aparentemente aleatórios do mundo e a convicção de Burroughs que a linguagem é
um vírus letal que transformou o homem em seu hospedeiro privilegiado.
O filme
A narrativa acompanha
três pessoas em uma emissora de rádio na cidade rural de Pontypool em um dia de
pesada nevasca em pleno Dia dos Namorados – Grant Mazzy, o DJ; Sidney Briar, a
produtora; e Laurel Ann, a assistente de produção. Relatórios sobre estranhas
ocorrências na cidade começam a chegar: inexplicavelmente uma multidão
enfurecida tenta invandir um edifício onde está o consultório do doutor John
Mendez.
Aos poucos, os relatos
vão se amplificando, com mais distúrbios em outros pontos da pequena
localidade. Relatos fragmentados de assustados correspondentes da rádio, que
relatam atos de violência e canibalismo. Ao vivo, Mazzy é surpreendido com uma
ligação da BBC querendo colocá-los ao vivo na TV para que deem uma explicação
sobre os eventos. A BBC acredita que os distúrbios sejam políticos motivados
por alguma recorrência de terrorismo separatista de uma província
franco-canadense, como ocorrido na década de 1960 naquele país.
Três pessoas em um
estúdio, capazes de se comunicar e receber informações do mundo exterior, mas
assustados e sem entender o que está acontecendo, o que lembra bastante a
histórica transmissão radiofônica de Guerra dos Mundos em 1938 pela rádio CBS
que provocou uma onda de pânico entre os ouvintes.
Tanto o espectador
como os personagens do filme são envolvidos nesse clima claustrofóbico onde nos
agarramos em pequenas pistas para tentar estabelecer uma causa, uma conexão, alguma
explicação. O que nos força a nos concentrarmos nos diálogos do trio na
tentativa de juntar as peças de algo sinistro que cresce em Pontypool.
“Espasmos da realidade”
O filme inicia com
o relato de um evento fortuito: o desaparecimento de um gato chamado Honey que
quase foi atropelado pelo carro da Sra. Colette Piscine. A narração em of cria
um curioso jogo de trocadilhos que será uma das chaves de explicação do
terrível vírus que contaminará as pessoas: “colette” que soa como “culotte”
(calça em francês) que em inglês é “Panty” e “Piscine” (piscina) que equivale a
“pool” em inglês. A ponte onde ocorreu o incidente chamava-se Pont de Flaque: “flaque
também significa “piscina” em francês – “Pant Pool”... “Pont Pool”... Pont de
Flaque... onde quase foi atropelado o gato chamado Honey (“mel”, forma retórica
de afeto, em pleno Dia dos Namorados) na cidade de Pontypool...
Coincidências
significativas? O filme aproxima esse evento aparentemente casual à convicção
sincromística de Norman Mailer presente em livros como Existential Errands de que no despertar de grandes eventos, tanto
antes quanto depois, ocorrem estranhas coincidências como fossem pequenos
espasmos da realidade, que depois retornam ao seu estado normal. De repente
nomes, sobrenomes, aniversários e demais coisas supérfluas passam estranhamente
a se relacionar entre si. Um efeito em cascata que é um sintoma de algo
importante acontecerá, como as coincidências que envolveram o assassinato de
John Kennedy em 1963.
Essa introdução do
filme associando fenômenos sincromísticos às palavras se junta à grande sacada
criativa do filme: as pessoas estão sendo contaminadas através da linguagem,
por certas palavras infectadas – principalmente palavras carregadas de afeto ou
de efeito retórico – “amor”, “honey”, “querida” etc.. E no Dia dos Namorados,
palavras assim são as mais repetidas.
Ao ouvir ou
pronunciar essas palavras a vítima entra num estado que é descrito com mais
detalhes no livro de Burgess no qual se baseou o filme Pontypool: “a praga se manifesta
na pessoa como uma espécie de déjà vu e com um estado de afasia que o
acompanha. Tudo que acontece se apresente como se já tivesse acontecido. Cada
realização deve ser duplicada contra si mesmo. O tempo presente transforma-se
em uma ladeira escorregadia. O “agora” transforma-se numa lesão profunda e com
isso essa nova doença se dissemina” (BURGESS, Tony, Pontypool Changes Everything, Toronto: ECW Press, 1998, p.148).
Para o personagem
Doutor John Mendez, o vírus se duplica através da compreensão das palavras, que
são repetidas pelos zumbis até eles quererem se matar, matando outra vítima
para que a “lesão profunda” do “agora” seja eliminada.
Terror semiótico
O filme Pontypool apresenta em seu argumento um
surpreendente “terror semiótico”. William Burroughs acreditava que a linguagem
era uma doença viral, maligna e letal. E não se tratava de nenhuma metáfora ou
analogia, mas algo literal: um vírus que atingiu primeiramente um certo grupo
de símios, tornando-os aptos a exercerem a linguagem. Um vírus que estabeleceu
uma relação simbiótica com o hospedeiro que a partir daí passou a encarar o vírus
como parte útil de si mesmo.
Esse vírus (o
signo) causou uma profunda lesão: a chamada “cisão semiótica”, uma separação
radical entre o homem e o real – estamos condenados a não mais experimentarmos
o real como ele é, mas a conviver com signos da realidade, realidades de
segunda mão fabricadas pelo código da linguagem viral – simulacros do real.
No filme, quando a
vítima ouve a palavra carregada de sentimento e afeto, ela experimenta aquilo
que o escritor Tony Burgess chama de “déjà vu” e “afasia”: ele começa a repetir
a palavra para tentar capturar essa transitividade entre o signo e o real. Mas
é impossível, tentando então o suicídio a partir da destruição selvagem de
outra vitima. Como se quisesse ultrapassar a barreira dos signos, devorando o
próprio real.
Alguma coisa
parecida como a pessoa que come o menu do restaurante como se comesse os
próprios pratos descritos nele!
Há uma expressão oriental que diz que “as palavras são coisas”. A teoria de Norman Mailer citada no filme sobre um efeito em cascata de coincidências de nomes antes da ocorrência de eventos significativos é nitidamente sincromística. Lembra a hipótese de pesquisadores como Jake Kotze, Jason Horesley e Christopher Knowles acreditam que há um texto invisível no Universo, conexões significativas entre eventos que, vistos superficialmente, parecem ter causalidade dispare. Na verdade os eventos estariam imersos em uma rede formada pelo inconsciente coletivo cuja dinâmica é baseada nas chamadas formas-pensamento e arquétipos – sobre esse tema clique aqui.
Pontypool ainda
sugere outros subtemas como o de uma emissora de rádio ser a disseminadora de
palavras infectadas por vírus. Uma referencia satírica à propagação das músicas
comerciais, spots, jingles publicitários, slogans e bordões criados
propositalmente para disseminação e repetição. Como o exemplo daquelas músicas
bregas que, embora racionalmente as rejeitemos, seus refrões grudentos insistem
em se repetir em nossas mente como uma espécie de praga viral.
E, no final, a
mais sarcástica das ironias no filme: a descoberta de que o vírus zumbi é disseminado
unicamente pela língua inglesa, o que obriga os personagens a dialogarem em
francês. Será uma referência irônica a indústria do entretenimento
norte-americana e a sua capacidade de disseminação dos seus conteúdos para todo
o planeta?
Aos leitores que
forem assistir ao filme um conselho: continuem assistindo aos créditos finais
porque durante e logo depois acompanhamos diálogos que serão importantes para a
compreensão da narrativa.
Ficha Técnica |
Título: Pontypool
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Direção: Bruce McDonald
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Roteiro: Tony Burgess baseado em seu próprio livro “Pontypool Changes
Everything”
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Elenco: Stephen McHattie, Lisa Houle, Georgina
Reilly
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Produção: Ponty Up Pictures, Shadow Shows
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Distribuição: IFC Films
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Ano: 2008
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País: Canadá
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