sábado, setembro 07, 2013

Monty Python contra o cinismo contemporâneo


Há quarenta e quatro anos ia ao ar pela TV BBC o primeiro “Monty Python’s Flying Circus” com uma trupe de comediantes ingleses cujo humor era marcado pelo absoluto cinismo e non sense. Suas experiências formais (programa estruturado como “fluxo de consciência”) e sketches demolidores influenciam há décadas gerações de comediantes e redatores. Recuperando a melhor tradição do humor físico de Chaplin e Jacques Tati, mesclou tudo isso com um estilo de comédia que desconstruía ilusões e mentiras dos papéis sociais, mostrando de forma engraçada como nossa existência parece ser baseada em mentiras e ilusões. Diante do “cinismo esclarecido” contemporâneo a que se refere o filósofo alemão Peter Sloterdijk, o grupo inglês criou uma técnica de humor que remontava às próprias origens filosóficas radicais da escola dos cínicos: o "kynismo" grego da antiguidade helenística de Diógenes e Pirro.
Quando pensamos em filmes gnósticos, logo imaginamos ficções científicas dramáticas como “Cidade das Sombras” ou “Matrix” com protagonistas procurando saídas de um universo conspiratório em narrativas tensas e repletas de simbolismos enigmáticos. Terror, drama, thriller, suspense ou ficção científica parecem ser os gêneros propícios para questionamento gnósticos sobre a condição humana. Mas e a comédia?  É claro que nesses últimos quatro anos em que esse blog procurou mapear a presença de elementos gnósticos, esotéricos, ocultistas e míticos na produção cinematográfica popular recente, encontramos tais elementos em produções que primam pelo humor negro como no filme “Como Fazer Carreira em Publicidade” (How to Get Ahead in Advertising, 1989) ou em animações como a trilogia “Toy Stories”.
Mas se pensarmos a comédia muito mais do que um gênero, isto é, como técnica de humor (onde elementos como o cinismo, a ironia, a parodia e o sarcasmo podem se transformar em instrumentos de crítica social tão poderosos como a Filosofia e a Psicanálise) podemos encontrar a presença do espírito gnóstico da desmistificação da irrealidade do mundo.
 
Se partirmos do princípio de que “todo artista sério já é meio gnóstico”, como afirma o pesquisador húngaro Stephan Hoeller, então o humor cult do grupo clássico inglês “Monty Python” seria um ótimo exemplo. Além de terem influenciado diversas gerações de roteiristas e artistas de humor que vai do stand up ao teatro e cinema, ofereceram brilhantes insights que transcendem o simples texto de humor, fazendo a comédia se encontrar com a animalidade do corpo humano e de seus gestos, o sarcasmo e a pantomima. Recuperando a melhor tradição do humor físico de Chaplin e Jacques Tati, mesclou tudo isso com um humor que desconstruía ilusões e mentiras dos papéis sociais, mostrando de forma engraçada como nossa existência parece ser baseada em mentiras e ilusões.

Fluxo de consciência, cinismo e non sense

O grupo inglês formado por Graham Chapman, John Cleese, Terry Gilliam, Eric Idle, Terry Jones e Michael Palin criou o programa “Monty Python’s Flying Circus” levado ao ar pela BBC TV de 1969-1974 formado por sketches estruturados como fizessem parte de um “fluxo de consciência”: sketches isolados eram unificados por personagens, bordões ou questões que se repetiam ao longo do programa (como a constante presença de um coronel, que sempre intervinha quando o sketch começava a ficar cada vez mais absurdo), assim como as famosas animações em colagem stop motion. Mais tarde, o grupo realizou filmes que se tornariam imediatamente clássicos cultuados como “Em Busca do Cálice Sagrado” (1974), “A Vida de Brian” (1979) e “O Sentido da Vida” (1983).
 
Cinismo e suspensão de sentido (non sense) são as palavras-chave do humor do grupo. Muitas vezes involuntariamente, pois o orçamento baixo de produção obrigava o grupo a buscar imagens e músicas de domínio público e, por isso, gratuitas como a marcha da abertura “The Liberty Bell” do Monty Python’s Flying Circus e imagens e fotografias vitorianas que pontuavam os sketches e davam uma atmosfera surreal e de non sense.

O “cinismo esclarecido” contemporâneo

Mas o mais importante no grupo foi a sua proposta de cinismo associado ao humor negro e o que seria hoje considerado “politicamente incorreto”. Seu cinismo certamente não é o do humor contemporâneo, marcado pro aquilo que o filósofo Peter Sloterdijk chama de “cinismo esclarecido”: o cínico integrado aos seus postos e privilégios (gerentes, executivos, professores, jornalistas ou diretores) que mantêm um autodistanciamento irônico e melancólico sobre o que fazem, um sentimento de “inocência perdida”, de ironizar e depreciar a si mesmo e ao que faz (“é o que tem prá hoje”, dizem), uma falsa consciência conformista e sem sonhos diante do sistema de onde tira seus privilégios.

Esse tipo de “cinismo esclarecido” é o que permeia o humor contemporâneo em cada show de stand up para burocratas que desapertam suas gravatas em casas de shows.

O grupo Monty Python parece retornar ao cinismo da tradição filosófica (os kynismos) de Diógenes e Pirro do período helenístico da Grécia antiga. Para eles o cinismo era uma arma crítica contra as três formas de falsidade que sustentam os poderes e a sociedade: a mentira (a má fé), a ilusão (a falsidade ontológica do mundo) e a ideologia (a instrumentalização da ilusão para finalidades políticas). Por isso os cínicos desprezavam o dinheiro, mendigavam, não queriam posição estável e nem nacionalidade, vivendo apenas o dia a dia e de forma errante. A filosofia cínica era uma escolha por liberdade total e a recusa de necessidades inúteis, recusando o luxo e vaidade presentes na vida social.

O estilo dos seus discursos, tiradas e aforismos era marcado por paradoxos e, principalmente em Pirro, de indiferença em relação à linguagem, valores e julgamentos: tudo é relativo, marcado pela convenção. A linguagem é intransitiva, não aponta para nada real – são apenas jogos e convenções diante da qual devemos ser indiferentes, essa a verdadeira virtude.

Para Peter Sloterdijk tudo isso se perdeu quando o cinismo passou “para o outro lado do balcão” transformando-se na “lógica dos senhores”:
“A força do cinismo antigo foi aclimatada às modernas estufas de conforto. Seus gestores não são mais sábios mendigos de Atenas, mas o Estado, professores universitários, partidos políticos, formadores de opinião. Todos mentem, sobretudo quando dizem a verdade. Todos falsificam a realidade, especialmente quando nos oferecem o elixir de nossa salvação. Pois um dos critérios do marketing da falsidade é ser honesto. A transparência alimenta todos os dias o commodities do cinismo. As ações da virtude são as que mais sobem na bolsa cínica. A mentira não é mais o fundo podre da civilização, como queriam Freud e Benjamin. Ela veio à luz. Tornou-se um bem de primeira necessidade.” (PETRONIO, Rodrigo. “Peter Sloterdijk reconstrói suas matrizes do ocidente: cinismo e ira”, Estadão.com.br)

O “Papagaio Morto”

                Em dois sketches clássicos do Monty Python podemos encontrar essas características da escola dos cínicos de Diógenes e Pirro: “O Papagaio Morto” e “Criando um Filme” - veja os vídeos abaixo.
Em “O Papagaio Morto” Cleese entra em um pet shop segurando uma gaiola com um papagaio inerte e reclama que ele já estava morto quando o comprou. O proprietário do pet shop falou que ele estava apenas descansando. O inconformado cliente tenta de todas as formas provar que o animal está morto, enquanto o proprietário utiliza diversas evasivas e artimanhas para confundir e adiar a decisão final do cliente. Quanto mais o sketch avança, trocadilhos, palíndromos e jogos de linguagem começam a dominar as linhas de diálogo até tudo “ficar idiota demais” e sem sentido e entrar em cena o coronel que sempre aparece para terminar sketches que estão ficando chatos.
O quadro apresenta as duas formas de cinismos: de um lado o proprietário do pet shop que sabe que o “papagaio azul norueguês” já estava morto, mas se utiliza de jogos de linguagem para mentir. Essa é um tema constante no humor do grupo inglês: o cinismo não só do Poder, mas das burocracias e prestadores de serviço. Para o grupo, eles não existem para resolver problemas, mas adiá-los. Assim como os atuais SACs de empresas que se esmeram em eufemismos, gerundismos para adiar a solução. Por que? Porque não existem soluções. O cínico esclarecido sabe disso, e por isso adia o quanto pode. Governos e administrações de empresas compartilham com o mesmo cinismo através de comissões, inventários e reuniões com muitos power points onde soluções são adiadas.
Do outro lado o kynismo de Cleese: aos poucos ele vai esquecendo o objeto da discussão e se perde nos enigmas linguísticos dos trocadilhos e palíndromos. Torna-se indiferente no sentido do cinismo de Pirro: a linguagem é pura convenção, é relativa. É outro tema recorrente no humor do grupo: de repente as linhas de diálogo tornam-se discussões bizantinas, etimológicas, jogos de trocadilhos inúteis e sem sentido. Esse é um cinismo radical, por assim dizer epistemológico: se a linguagem não tem sentido absoluto, é uma espiral de interpretações relativas, o Poder não existe porque ele não fala em nome de nada, não possui qualquer autoridade ou legitimidade.

“Criando um Filme”

 
Em “Criando um Filme” Graham Chapman faz um impagável capitão de um estúdio cinematográfico com um pesado sotaque sulista. Ele entra em uma sala de reuniões com um enorme pôster ao fundo com o seu rosto em estilo do filme Cidadão Kane e diante dele estão executivos trêmulos e apavorados. Ele expõe as ideias absurdas para o novo filme e todos concordam por medo. Não acreditando na sinceridade deles, começa a inquiri-los colocando-os em um jogo de linguagem do tipo “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”: se discordar é demitido, se concordar será considerado um puxa saco e, também, será demitido. Novamente, o cinismo do poder é confrontado com o cinismo dos subalternos. O dilema proposto é o do constrangimento: o indivíduo nega uma situação, ao mesmo tempo em que quer concretizá-la. Um por um começam a cair fora como única forma de resolver o dilema: pular fora do jogo.

Outro tema recorrente no grupo inglês: o Poder é construído por paradoxos e dilemas onde aos subalternos só resta a imobilidade diante da ausência de solução dos jogos propostos.
 
E em ambos os sketches aquilo que Sloterdijk afirma na sua obra “Crítica da Razão Cínica” sobre o kynismo grego, “o poder argumentativo da animalidade do corpo humano e seus gestos”, isto é, o humor sarcástico e pantomímico. Se o cínico é capaz de mentir falando a verdade, o gesto corporal não: seria a retomada da “insolência” antiga identificada com o cinismo de Diógenes, um antídoto para o cinismo moderno. Não é à toa que o humor físico desde Chaplin e do cinema chamado slapstik perdem espaço na cultura de massas, para dar lugar ao humor centrado unicamente no texto oral.
 
Por isso, a experiência do grupo Monty Python foi única, gnóstica no sentido mais amplo do termo: um humor que questiona a si mesmo, a própria linguagem por meio da qual se expressa ao brincar com a sua intransitividade e ausência de sentido que é, afinal, usada pelas formas cínicas de poderes, tentando esconder essa natureza non sense da sociedade: a mentira, a ilusão e a ideologia.

Ficha Técnica

  • Título: Monty Python’s Flying Circus (série de TV)
  • Criadores e elenco: Graham Chapman, John Cleese, Terry Gilliam, Eric Idle, Terry Jones, Michael Palin
  • Produção: Britsh Broadcasting Corporation (BBC), Python (Monty) Pictures
  • Distribuição: BBC e Sony Pictures Entertainment (Box Set DVD)
  • Ano: 1969-1974
  • País: Reino Unido

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