domingo, maio 05, 2013

A Semiótica de Che Guevara


Quando o fotógrafo Alberto Korda selecionou o fotograma de número 40 do rolo Kodak com uma série de fotos de um evento em Havana, Cuba, em 1960 e deu o nome para ele de “Guerrilheiro Heroico”, jamais imaginava o destino do personagem Ernesto Che Guevara na mitologia contemporânea. O ícone atual em alto contraste em carros, baús de motoqueiros ou bandeiras de torcida de futebol é o resultado de sucessivos sistemas linguísticos parasitários que foram se sobrepondo e se sedimentando na cultura de massas, até o simbolismo ideológico se converter em mensagem motivacional e autoajuda.

Pedalava pela rodovia Raposo Tavares voltando de mais uma manhã de aulas na Universidade Anhembi Morumbi/São Paulo quando passou por mim um desses carros estilo off road esportivo importado com o pneu estepe na traseira do veículo. Não pude deixar de perceber na capa protetora que envolvia o pneu estampada a clássica fotografia de Che Guevara como “Guerrilheiro Heroico”, estilizada em alto contraste. A subida era acentuada, mas a fadiga pelas pedaladas mais pesadas não diminuiu a minha perplexidade: o que está fazendo um ícone político-ideológico revolucionário no estepe de um carro destinado para motoristas de alto poder aquisitivo? Será que o motorista era algum “burguês esclarecido”? Alguma coisa estava fora do lugar.

Nessa mesma semana passei, então, a prestar mais atenção às versões e outros lugares inusitados onde apareceria a foto do “Guerrilheiro Heroico”. Vi em um baú de entregas de um motoqueiro, na camisa de um aluno na versão “Chê Madruga” (Seu Madruga da série cult “Chaves” travestido de boina e o mesmo olhar compenetrado) e na TV em bandeiras de uma torcida organizada de futebol do time Internacional de Porto Alegre.

Não pude resistir e perguntei para o motoqueiro qual era a sua preferência político-ideológica para estampar aquele adesivo no baú da sua moto. Ele não entendeu bem a pergunta, mas respondeu que o Guevara era “um cara que lutava pelos seus ideais, assim como eu que ralo para sobreviver com a moto”.

O Maryland Institute College Art considerou essa foto de 1960 de Alberto Korda como a mais famosa do século XX pela sua natureza ubíqua e de grande apelo. Já foi pintada, esculpida, digitalizada, tatuada, impressa em silk screen, plotagem e estampada em inimagináveis variedades de superfícies e mídias. Os puristas ideológicos viriam em tudo isso a corrupção de um símbolo político e histórico, isso sem falar na mercantilização de um sonho revolucionário. O filósofo alemão Herbert Marcuse chamaria isso de “tolerância repressiva”, práxis ideológica do capitalismo em neutralizar a crítica e a contestação ao tolerar a sua expressão através das mídias de massas.

Mas será que em algum momento, a partir do instante que Korda deu o nome à foto de “Guerrilheiro Heroico”, ela realmente teve um primeiro momento de pureza referencial? Ou melhor dizendo, se a fotografia, em si mesma, significa recorte e uma seleção retirada do fluxo da realidade orientada por um intencionalidade ou decisão ela não seria desde o início uma operação semiótica que cria uma significação que parasita a realidade? Indo mais além, as sucessivas versões e cópias poderiam criar novas operações semióticas que vão criar novos parasitas dando início a uma espiral de interpretações que vai terminar na afirmação do motoqueiro acima?

O rolo Kodak de Alberto Korda com
os fotogramas originais

Mitologias e parasitas


Toda imagem parece ser natural, evidente por si mesma, uma apresentação. “Eis aqui esse objeto que lhe apresento”, parece nos dizer de forma imperativa. Isso encobre uma complexa operação semiológica de representação (sempre formado por três elementos: o significante/significado e o signo formado pela relação entre os dois elementos).

Com uma rosa faço significar a minha paixão criando um signo único (a “passionalidade”), resultante de dois sistemas semiológicos pré-existentes: a /rosa/ (significante) e a /paixão/ (significado). Em torno dessa operação semiológica existe uma ingenuidade do usuário em acreditar que toda imagem é um simples decalque da realidade.

Essa ingenuidade em relação às imagens foi desmistificada pelo semiólogo francês Roland Barthes em dois livros fundamentais: Mitologias (onde revela o mecanismo de funcionamento dos mitos da mídia francesa na década de 1950) e O Sistema da Moda (desmontagem dos clichês das revistas de moda francesas, revelando o arbitrário e a ideologia linguística no campo da moda e estilismo).

Para ele era necessário desmontar a operação linguística de significação por trás de toda a mitologia da cultura de massas que deforma o sentido original (história, factualidade) para criar uma fala petrificada onde a arbitrariedade do mito é encoberta pela aparente naturalidade da constatação da imagem. 

Barthes afirmava que as mitologias modernas seriam uma fala ou mensagem que pertence a um sistema semiológico parasitário e extensivo a um primeiro sistema (fotografia, pintura, cartaz, rito, objeto etc.) que passa a ser dominado por ela, atribuindo-lhe um novo significado estereotipado e arbitrário e que deforma o sentido original. Esse novo signo criado é consumido pelos receptores como um sentido inato e harmônico, encobrindo-se a operação semiológica arbitrária que lhe deu origem.

A versão de Fitzpatrick de 1968
A foto do “Guerrilheiro Heroico” foi tirada em 1960 em Havana, Cuba, em um memorial dedicado às vítimas de uma suspeita explosão dias antes. O primeiro sistema semiológico é o denotativo, o fotograma de número 40 em paisagem, no meio de diversas imagens de autoridades, além dos filósofos Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Vemos Guevara com os olhos focalizados na área da frente. O olhar é um misto de preocupação, consternação, fragilidade humana enfim.

Korda, fotógrafo oficial do governo Fidel Castro, publicará essa foto internacionalmente sete anos depois como “O Guerrilheiro Heroico”. Um segundo sistema semiológico começa a parasitar esse primeiro. A “imobilidade absoluta” do primeiro sistema denotativo é convertida em “raiva, caráter, firmeza, estoicismo e determinação” (ZIFF, Tisha. Che Guevara: Revolutionary & Icon, Abrams Image, 2006). Che Guevara do fotograma 40 (humano e frágil) ainda está lá na foto do “Guerrilheiro Heroico”, mas é estranhamente ocultado na visualidade. Assim como o vermelho da rosa transpira paixão, a imagem de Guevara em contra-plongee (debaixo para cima) confere uma naturalidade à construção arbitrária do significado do segundo sistema.

Mas um terceiro sistema semiológico parasitário estava por vir. Um artista plástico irlandês chamado Jim Fitzpatrick criou em 1968 sua própria imagem estilizada, em dois tons, que servirá de ajuste para a utilização em massa. Nesse terceiro sistema há um sutil reposicionamento dos olhos: se no primeiro sistema denotativo o olhar de Guevara está focado para a área à sua frente, Fitzpatrick na nova versão posiciona os olhos focando a distância. Associado ao contra-plongee, o olhar para aquilo que está distante atribui ao heroico estoicismo de Korda o idealismo de um visionário. À dureza estoica, atribui-se a Guevara agora uma qualidade mais “espiritual”.

Guevara como um Meme

Mas se Fitzpatrick criou uma versão mais icônica e em dois tons facilitando a futura disseminação em massa através de diversos suportes e mídias, faltava ainda um quarto e decisivo sistema semiológico que permitisse a definitiva globalização do ícone, representada pela afirmação do motoqueiro acima.

A reprodução em massa, as diversas versões em diversos “meta-memes” (“Chê Madruga” é um exemplo) produziram o efeito pós-moderno do simulacro: sucessivas cópias da cópia criam um efeito de refração de sentido que dará o sentido final à mitologia contemporânea de Chê Guevara. Se nos planos conotativos (segundo e terceiro sistema semiológico) Guevara era um símbolo do Comunismo e ideais revolucionários de esquerda, no definitivo (e mítico) quarto sistema Guevara se converte no ícone definitivo. Iconificação genérica de “um cara que lutava pelos seus ideais”, meme de fundo motivacional que inspira para que lutemos até o fim pelos nossos ideais, sejam eles quais forem.

Atualizando o conceito de “mitologia” de Roland Barthes, podemos dizer que o mito contemporâneo, resultante desse efeito de refração de sentido é o meme, ícone de consumo genérico, de símbolo de torcida organizada, ícone motivacional ou simplesmente signo de distinção em uma capa de pneu estepe (veja o quadro abaixo).

Operações semiológicas como a de Che Guevara estão por todos os lados na construção da mitologia contemporânea globalizada. Veja por exemplo o mito do “Western” da cultura americana: de representações rudes de homens fortes domando animais e massacrando índios é ressemantizando na mitologia do “country” – o cowboy sem laços ou armas, aquilo que genericamente se contrapõe ao “urbano”, imaginário pronto para ser aplicado em qualquer parte do planeta, ecologicamente correto representado por carros esportivos off roads... com Che Guevara no pneu estepe.


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