Quando o fotógrafo
Alberto Korda selecionou o fotograma de número 40 do rolo Kodak com uma série de
fotos de um evento em Havana, Cuba, em 1960 e deu o nome para ele de “Guerrilheiro
Heroico”, jamais imaginava o destino do personagem Ernesto Che Guevara na
mitologia contemporânea. O ícone atual em alto contraste em carros, baús de
motoqueiros ou bandeiras de torcida de futebol é o resultado de sucessivos
sistemas linguísticos parasitários que foram se sobrepondo e se sedimentando na
cultura de massas, até o simbolismo ideológico se converter em mensagem
motivacional e autoajuda.
Pedalava pela rodovia Raposo
Tavares voltando de mais uma manhã de aulas na Universidade Anhembi Morumbi/São Paulo quando passou por mim um desses carros estilo off road esportivo importado com o pneu estepe na traseira do
veículo. Não pude deixar de perceber na capa protetora que envolvia o pneu
estampada a clássica fotografia de Che Guevara como “Guerrilheiro Heroico”,
estilizada em alto contraste. A subida era acentuada, mas a fadiga pelas
pedaladas mais pesadas não diminuiu a minha perplexidade: o que está fazendo um
ícone político-ideológico revolucionário no estepe de um carro destinado para
motoristas de alto poder aquisitivo? Será que o motorista era algum “burguês
esclarecido”? Alguma coisa estava fora do lugar.
Nessa mesma semana passei,
então, a prestar mais atenção às versões e outros lugares inusitados onde
apareceria a foto do “Guerrilheiro Heroico”. Vi em um baú de entregas de um
motoqueiro, na camisa de um aluno na versão “Chê Madruga” (Seu Madruga da série
cult “Chaves” travestido de boina e o mesmo olhar compenetrado) e na TV em
bandeiras de uma torcida organizada de futebol do time Internacional de Porto
Alegre.
Não pude resistir e perguntei
para o motoqueiro qual era a sua preferência político-ideológica para estampar
aquele adesivo no baú da sua moto. Ele não entendeu bem a pergunta, mas
respondeu que o Guevara era “um cara que lutava pelos seus ideais, assim como
eu que ralo para sobreviver com a moto”.
O Maryland Institute College Art
considerou essa foto de 1960 de Alberto Korda como a mais famosa do século XX
pela sua natureza ubíqua e de grande apelo. Já foi pintada, esculpida,
digitalizada, tatuada, impressa em silk screen, plotagem e estampada em
inimagináveis variedades de superfícies e mídias. Os puristas ideológicos
viriam em tudo isso a corrupção de um símbolo político e histórico, isso sem
falar na mercantilização de um sonho revolucionário. O filósofo alemão Herbert
Marcuse chamaria isso de “tolerância repressiva”, práxis ideológica do
capitalismo em neutralizar a crítica e a contestação ao tolerar a sua expressão
através das mídias de massas.
Mas será que em algum momento, a
partir do instante que Korda deu o nome à foto de “Guerrilheiro Heroico”, ela
realmente teve um primeiro momento de pureza referencial? Ou melhor dizendo, se
a fotografia, em si mesma, significa recorte e uma seleção retirada do fluxo da
realidade orientada por um intencionalidade ou decisão ela não seria desde o
início uma operação semiótica que cria uma significação que parasita a
realidade? Indo mais além, as sucessivas versões e cópias poderiam criar novas
operações semióticas que vão criar novos parasitas dando início a uma espiral
de interpretações que vai terminar na afirmação do motoqueiro acima?
O rolo Kodak de Alberto Korda com os fotogramas originais |
Mitologias e parasitas
Toda
imagem parece ser natural, evidente por si mesma, uma apresentação. “Eis aqui
esse objeto que lhe apresento”, parece nos dizer de forma imperativa. Isso
encobre uma complexa operação semiológica de representação (sempre formado por
três elementos: o significante/significado e o signo formado pela relação entre
os dois elementos).
Com
uma rosa faço significar a minha paixão criando um signo único (a “passionalidade”),
resultante de dois sistemas semiológicos pré-existentes: a /rosa/ (significante)
e a /paixão/ (significado). Em torno dessa operação semiológica existe uma
ingenuidade do usuário em acreditar que toda imagem é um simples decalque da
realidade.
Essa
ingenuidade em relação às imagens foi desmistificada pelo semiólogo francês
Roland Barthes em dois livros fundamentais: Mitologias
(onde revela o mecanismo de funcionamento dos mitos da mídia francesa na
década de 1950) e O Sistema da Moda
(desmontagem dos clichês das revistas de moda francesas, revelando o arbitrário
e a ideologia linguística no campo da moda e estilismo).
Para ele
era necessário desmontar a operação linguística de significação por trás de toda
a mitologia da cultura de massas que deforma o sentido original (história,
factualidade) para criar uma fala petrificada onde a arbitrariedade do mito é
encoberta pela aparente naturalidade da constatação da imagem.
Barthes afirmava que as mitologias modernas seriam uma fala ou mensagem que pertence a um sistema semiológico parasitário e
extensivo a um primeiro sistema (fotografia, pintura, cartaz, rito, objeto
etc.) que passa a ser dominado por ela, atribuindo-lhe um novo significado
estereotipado e arbitrário e que deforma o sentido original. Esse novo signo
criado é consumido pelos receptores como um sentido inato e harmônico, encobrindo-se
a operação semiológica arbitrária que lhe deu origem.
A versão de Fitzpatrick de 1968 |
A foto do “Guerrilheiro Heroico” foi tirada em 1960 em
Havana, Cuba, em um memorial dedicado às vítimas de uma suspeita explosão dias
antes. O primeiro sistema semiológico é o denotativo, o fotograma de número 40
em paisagem, no meio de diversas imagens de autoridades, além dos filósofos
Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Vemos Guevara com os olhos focalizados
na área da frente. O olhar é um misto de preocupação, consternação, fragilidade
humana enfim.
Korda, fotógrafo oficial do governo Fidel Castro,
publicará essa foto internacionalmente sete anos depois como “O Guerrilheiro
Heroico”. Um segundo sistema semiológico começa a parasitar esse primeiro. A “imobilidade
absoluta” do primeiro sistema denotativo é convertida em “raiva, caráter,
firmeza, estoicismo e determinação” (ZIFF, Tisha. Che Guevara: Revolutionary & Icon, Abrams Image, 2006). Che Guevara do fotograma 40 (humano e frágil)
ainda está lá na foto do “Guerrilheiro Heroico”, mas é estranhamente ocultado na visualidade. Assim como o
vermelho da rosa transpira paixão, a imagem de Guevara em contra-plongee
(debaixo para cima) confere uma naturalidade à construção arbitrária do
significado do segundo sistema.
Mas um terceiro sistema semiológico parasitário estava
por vir. Um artista plástico irlandês chamado Jim Fitzpatrick criou em 1968 sua própria
imagem estilizada, em dois tons, que servirá de ajuste para a utilização em
massa. Nesse terceiro sistema há um sutil reposicionamento dos olhos: se no
primeiro sistema denotativo o olhar de Guevara está focado para a área à sua
frente, Fitzpatrick na nova versão posiciona os olhos focando a distância.
Associado ao contra-plongee, o olhar
para aquilo que está distante atribui ao heroico estoicismo de Korda o
idealismo de um visionário. À dureza estoica, atribui-se a Guevara agora uma
qualidade mais “espiritual”.
Guevara como um
Meme
Mas se Fitzpatrick criou uma versão mais icônica e em
dois tons facilitando a futura disseminação em massa através de diversos
suportes e mídias, faltava ainda um quarto e decisivo sistema semiológico que
permitisse a definitiva globalização do ícone, representada pela afirmação do
motoqueiro acima.
A reprodução em massa, as diversas versões em diversos “meta-memes”
(“Chê Madruga” é um exemplo) produziram o efeito pós-moderno do simulacro:
sucessivas cópias da cópia criam um efeito de refração de sentido que dará o
sentido final à mitologia contemporânea de Chê Guevara. Se nos planos
conotativos (segundo e terceiro sistema semiológico) Guevara era um símbolo do
Comunismo e ideais revolucionários de esquerda, no definitivo (e mítico) quarto
sistema Guevara se converte no ícone definitivo. Iconificação genérica de “um
cara que lutava pelos seus ideais”, meme de fundo motivacional que inspira para
que lutemos até o fim pelos nossos ideais, sejam eles quais forem.
Atualizando o conceito de “mitologia” de Roland Barthes,
podemos dizer que o mito contemporâneo, resultante desse efeito de refração de
sentido é o meme, ícone de consumo genérico, de símbolo de torcida organizada,
ícone motivacional ou simplesmente signo de distinção em uma capa de pneu
estepe (veja o quadro abaixo).
Operações semiológicas como a de Che Guevara estão por
todos os lados na construção da mitologia contemporânea globalizada. Veja por
exemplo o mito do “Western” da cultura americana: de representações rudes de
homens fortes domando animais e massacrando índios é ressemantizando na
mitologia do “country” – o cowboy sem laços ou armas, aquilo que genericamente se
contrapõe ao “urbano”, imaginário pronto para ser aplicado em qualquer parte do
planeta, ecologicamente correto representado por carros esportivos off roads... com Che Guevara no pneu
estepe.