domingo, maio 19, 2013

O paradoxo de um prisioneiro no curta "Room 8"


Premiado no Tribeca Film Festival desse ano, o curta “Room 8” desafia o protagonista e o espectador a um paradoxo lógico: qual a verdadeira prisão em que os personagens se encontram? Quando uma caixa é aberta no interior de uma cela, eventos surreais começam a acontecer que colocam em xeque a natureza não só da prisão como a da própria realidade. O paradoxo lógico proposto pelo curta teria solução?

Situado em uma cela de prisão russa em um momento qualquer da Guerra Fria, um prisioneiro britânico é transferido para uma nova cela (“sala 8”) onde encontra um compatriota e uma misteriosa caixa vermelha sobre a cama. Quando a caixa é aberta uma série de acontecimentos surreais e incríveis oferecem a ele a oportunidade de escapar.

A trama nos remete diretamente à atmosfera das narrativas da antiga série “Além da Imaginação”. Dirigido pelo inglês James W. Griffiths e tendo como base o roteiro do vencedor de um Oscar, Geoffrey Fletcher, a trama de sete minutos tem uma parte de thriller, uma parte de ficção científica e uma parte de horror.

Veja primeiro o curta para continuar lendo essa postagem (spoilers a seguir):


Room 8 from Bombay Sapphire on Vimeo.


A ideia proposta no curta é a de uma prisão muita mais perversa do que paredes e portas pesadas de ferro: a prisão lógica no qual o protagonista se vê envolvido. O enigmático companheiro de cela indiretamente incentiva a curiosidade do protagonista sobre a caixa vermelha. Ao abri-la, abre também uma caixa de pandora: a tortura lógica do paradoxo da recursividade.

Recursividade tem a ver com um dos problemas lógicos mais recorrentes que é estudado em Matemática e Ciências da Computação. Recursividade é o estudo que se faz quando um processo é definido em função de si mesmo, a fim de alcançar um objetivo qualquer. Trata-se de uma verdadeira “viagem” onde o processo invoca a si mesmo formando um longo caminho de processos com ida e volta.

Saindo desse árido mundo das exatas, a recursividade tem sua expressão artística máxima nas figuras impossíveis do artista plástico M.C. Escher: assim como na linguagem da computação onde cada problema contém a instância menor do mesmo problema, reduzindo-a até voltar à instância original, em Escher as linhas e formas descrevem movimentos de causalidade circular, onde a multiplicidade de pontos de vista não é dada pela fragmentação, colagem ou sobreposições, mas pela continuidade. Figura e Fundo, observador e observado, formam um emaranhado. A imagem não mais representa algum evento, objeto ou situação referencial. Ela remete a si mesma.

A recursividade lógica propõe um problema paradoxal semelhante a do nosso prisioneiro em “Room 8”: como sair do ciclo vicioso? Imagine o famoso “paradoxo do cretense”, típico problema em recursividade: um cretense diz para nós que na ilha de Creta todos mentem. Como ter certeza da afirmação se sabemos que todo cretense mente? Mas, por outro lado, se ele estiver mentindo então está dizendo a verdade, o que é impossível! Como solucionar esse paradoxo?

A realidade é uma prisão recursiva


Em “Room 8” há uma atmosfera gnóstica em colocar o protagonista como prisioneiro de um paradoxo lógico. Ele abre a caixa pensando encontrar alguma ferramenta ou dispositivo que o faça fugir dali. Ele acaba nada mais encontrando do que a sua própria condição repetida no interior da caixa, uma réplica perfeita de si mesmo e da prisão. Mais do que isso, as versões mini e macro se interagem, sem conseguir estabelecer onde é a causa e o efeito.

Figuras impossíveis de Escher:
a realidade é recursiva?
A situação proposta é de espelhos que se refletem mutuamente, criando uma repetição infinita. Pensadores gnósticos como Basilides que pensava em sua cosmologia mundos sucessivos que se interpenetram (365 mundos para ser exato), passando por filmes como “13o Andar” (1999) onde mundos simulados criam outras simulações computacionais dentro de si, até a desconfiança de físicos atuais de que viveríamos em uma gigantesca simulação criada por outra simulação (veja links abaixo), tudo isso parece representar uma desconfiança de que há algo errado ou extremamente diverso sobre o que entendemos por “realidade consensual”.

“Room 8” parece partilhar dessa tradição ao juntar os temas do prisioneiro e o da realidade como uma prisão recursiva.

Esta intuição gnóstica de que a realidade é uma estrutura que nos aprisiona pela sua recursividade atualmente encontra-se dispersa e latente em muitos pesquisadores como Jean Baudrillard até o sociólogo e pensador Niklas Luhmann: os sistemas tendem a adquirir tal grau de complexidade que eles passam a se autoreferenciar, criando um “fechamento operacional” que impossibilita qualquer forma de comunicação com o “exterior”. Principalmente nos meios de comunicação podemos perceber isso pela forma como os fatos (o político, o econômico, o esportivo etc.) são filtrados e arranjados dentro de uma metalinguagem.

Por exemplo, a TV Globo não transmite apenas um evento esportivo: ela quer transmitir a si mesma transmitindo um evento esportivo com uma metalinguagem infinita onde repórteres entrevista outros repórteres, câmaras enquadram outras câmeras e atletas fazem questão de parecerem amigos dos repórteres com piadas internas e demonstrando intimidade com a paafernália de cobertura jornalística (sobre isso veja link abaixo sobre os “abismos metalinguísticos da TV Globo”).

Da mesma forma o tema em “Room 8” é essa prisão metalinguística e autoreferencial em que o protagonista está metido. Chega-se á conclusão gnóstica que a verdadeira prisão talvez esteja em nossas mentes.

É sabido que a solução para o paradoxo lógico do cretense é a superação do princípio de não-contradição de Aristóteles – uma proposição não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa. Somente o raciocínio dialético com o princípio do “um se divide em dois” poderia resolver o problema recursivo: na verdade há dois sujeitos no enunciado do paradoxo, o “mentiroso em ato” e “o mentiroso em potência”. O “mentiroso em ato” está obrigado a mentir, enquanto o “mentiroso em potência” no presente pode estar falando a verdade.

Certamente o nosso herói trágico de “Room 8” deveria superar a causalidade circular recusando o paradoxo (“isso é uma ilusão!”) e separando as situações da caixa e do mundo fora dela em “ato” e “potência” - virtual. O mundo da caixa é o potencial ou virtual. Ao aceitar o virtual como real foi como se, por exemplo, tomássemos os mundos virtuais computacionais como reais e tentássemos fugir de tudo se refugiando em um “Second Life” ou numa “SimCity”.

Ao aceitar os pressupostos do paradoxo, o protagonista caiu em uma prisão muito pior.

Ficha Técnica

  • Título: Room 8
  • Diretor: James Griffiths
  • Roteiro: Geoffrey Fletcher
  • Elenco: Tom Cullen, Michael Could
  • Produção: Ohna Falby  e Sophie Verner (Independent)
  • Ano: 2013
  • País: Reino Unido

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