Premiado no Tribeca Film Festival desse ano, o curta “Room 8” desafia o
protagonista e o espectador a um paradoxo lógico: qual a verdadeira prisão em
que os personagens se encontram? Quando uma caixa é aberta no interior de uma
cela, eventos surreais começam a acontecer que colocam em xeque a natureza não
só da prisão como a da própria realidade. O paradoxo lógico proposto pelo curta
teria solução?
Situado em uma cela de prisão
russa em um momento qualquer da Guerra Fria, um prisioneiro britânico é
transferido para uma nova cela (“sala 8”) onde encontra um compatriota e uma
misteriosa caixa vermelha sobre a cama. Quando a caixa é aberta uma série de
acontecimentos surreais e incríveis oferecem a ele a oportunidade de escapar.
A trama nos remete diretamente à
atmosfera das narrativas da antiga série “Além da Imaginação”. Dirigido pelo
inglês James W. Griffiths e tendo como base o roteiro do vencedor de um Oscar,
Geoffrey Fletcher, a trama de sete minutos tem uma parte de thriller, uma parte
de ficção científica e uma parte de horror.
Veja primeiro o curta para continuar lendo essa postagem (spoilers a seguir):
Room 8 from Bombay Sapphire on Vimeo.
A ideia proposta no curta é a de
uma prisão muita mais perversa do que paredes e portas pesadas de ferro: a
prisão lógica no qual o protagonista se vê envolvido. O enigmático companheiro
de cela indiretamente incentiva a curiosidade do protagonista sobre a caixa
vermelha. Ao abri-la, abre também uma caixa de pandora: a tortura lógica do
paradoxo da recursividade.
Recursividade tem a ver com um
dos problemas lógicos mais recorrentes que é estudado em Matemática e Ciências
da Computação. Recursividade é o estudo que se faz quando um processo é
definido em função de si mesmo, a fim de alcançar um objetivo qualquer.
Trata-se de uma verdadeira “viagem” onde o processo invoca a si mesmo formando
um longo caminho de processos com ida e volta.
Saindo desse árido mundo das
exatas, a recursividade tem sua expressão artística máxima nas figuras
impossíveis do artista plástico M.C. Escher: assim
como na linguagem da computação onde cada problema contém a instância menor do
mesmo problema, reduzindo-a até voltar à instância original, em Escher as
linhas e formas descrevem movimentos de causalidade circular, onde a
multiplicidade de pontos de vista não é dada pela fragmentação, colagem ou
sobreposições, mas pela continuidade. Figura e Fundo, observador e observado,
formam um emaranhado. A imagem não mais representa algum evento, objeto ou
situação referencial. Ela remete a si mesma.
A
recursividade lógica propõe um problema paradoxal semelhante a do nosso
prisioneiro em “Room 8”: como sair do ciclo vicioso? Imagine o famoso “paradoxo
do cretense”, típico problema em recursividade: um cretense diz para nós que na
ilha de Creta todos mentem. Como ter certeza da afirmação se sabemos que todo
cretense mente? Mas, por outro lado, se ele estiver mentindo então está dizendo
a verdade, o que é impossível! Como solucionar esse paradoxo?
A realidade é uma prisão recursiva
Em “Room 8” há uma atmosfera
gnóstica em colocar o protagonista como prisioneiro de um paradoxo lógico. Ele
abre a caixa pensando encontrar alguma ferramenta ou dispositivo que o faça
fugir dali. Ele acaba nada mais encontrando do que a sua própria condição
repetida no interior da caixa, uma réplica perfeita de si mesmo e da prisão.
Mais do que isso, as versões mini e macro se interagem, sem conseguir
estabelecer onde é a causa e o efeito.
Figuras impossíveis de Escher: a realidade é recursiva? |
“Room 8” parece partilhar dessa
tradição ao juntar os temas do prisioneiro e o da realidade como uma prisão
recursiva.
Esta intuição gnóstica de que a
realidade é uma estrutura que nos aprisiona pela sua recursividade atualmente
encontra-se dispersa e latente em muitos pesquisadores como Jean Baudrillard
até o sociólogo e pensador Niklas Luhmann: os sistemas tendem a adquirir tal
grau de complexidade que eles passam a se autoreferenciar, criando um “fechamento
operacional” que impossibilita qualquer forma de comunicação com o “exterior”.
Principalmente nos meios de comunicação podemos perceber isso pela forma como
os fatos (o político, o econômico, o esportivo etc.) são filtrados e arranjados
dentro de uma metalinguagem.
Por exemplo, a TV Globo não
transmite apenas um evento esportivo: ela quer transmitir a si mesma
transmitindo um evento esportivo com uma metalinguagem infinita onde repórteres
entrevista outros repórteres, câmaras enquadram outras câmeras e atletas fazem
questão de parecerem amigos dos repórteres com piadas internas e demonstrando
intimidade com a paafernália de cobertura jornalística (sobre isso veja link
abaixo sobre os “abismos metalinguísticos da TV Globo”).
Da mesma forma o tema em “Room 8”
é essa prisão metalinguística e autoreferencial em que o protagonista está
metido. Chega-se á conclusão gnóstica que a verdadeira prisão talvez esteja em
nossas mentes.
É sabido que a solução para o
paradoxo lógico do cretense é a superação do princípio de não-contradição de
Aristóteles – uma proposição não pode ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa.
Somente o raciocínio dialético com o princípio do “um se divide em dois”
poderia resolver o problema recursivo: na verdade há dois sujeitos no enunciado
do paradoxo, o “mentiroso em ato” e “o mentiroso em potência”. O “mentiroso em
ato” está obrigado a mentir, enquanto o “mentiroso em potência” no presente
pode estar falando a verdade.
Certamente o nosso herói trágico
de “Room 8” deveria superar a causalidade circular recusando o paradoxo (“isso
é uma ilusão!”) e separando as situações da caixa e do mundo fora dela em “ato”
e “potência” - virtual. O mundo da caixa é o potencial ou virtual. Ao aceitar o
virtual como real foi como se, por exemplo, tomássemos os mundos virtuais
computacionais como reais e tentássemos fugir de tudo se refugiando em um “Second
Life” ou numa “SimCity”.
Ao aceitar os pressupostos do
paradoxo, o protagonista caiu em uma prisão muito pior.
Ficha Técnica
- Título: Room 8
- Diretor: James Griffiths
- Roteiro: Geoffrey Fletcher
- Elenco: Tom Cullen, Michael Could
- Produção: Ohna Falby e Sophie Verner (Independent)
- Ano: 2013
- País: Reino Unido