Talvez essa postagem jamais seja publicada: o mundo poderá acabar antes. Estamos em meio a uma contagem regressiva para o fim do mundo que, segundo a profecia maia, seria no dia 21 de dezembro de 2012. Tal como em 1999 (talvez lá fosse muito pior, pois estávamos às voltas com uma dupla catástrofe: a bomba informática do “bug do milênio” e as profecias de Nostradamus), agora temos uma nova contagem regressiva, dessa vez à base de uma interpretação arbitrária do calendário Maia, turbinada por filmes-catástrofes de Hollywood como “2012”. Por que essa necessidade das religiões e do imaginário contemporâneo criarem profecias, apocalipses e contagens regressivas? Por que essa obsessão “necrospectiva”?
Final de ano é um momento de
retrospectivas que dominam quase totalidade dos conteúdos das mídias. Como todo
tipo de olhar que use o prefixo “retro”, é um misto de nostalgia e compulsão de
colecionador em querer catalogar e organizar o passado. Dessa forma, a
necessidade retrospectiva é um subproduto do pensamento racionalista Ocidental
de tentar encontrar nos eventos recorrências, padrões ou sentido. Lá tentamos
achar lições ou conhecimentos que nos orientem em direção ao futuro.
Mas uma obsessão maior parece
sobrepor esse olhar retro: a Necrospectiva, no sentido dado pelo pensador
francês Jean Baudrillard – a liquidação de todo e qualquer futuro em uma
contagem regressiva. O futuro transformado em bomba relógio. O tempo não mais
contado aditivamente como nas retrospectivas, mas como subtração começando do
fim nas proféticas necrospectivas (veja BAUDRILLARD, Jean, Paroxism: the end of the millennium or the countdown).
Estamos em meio a mais uma
contagem regressiva, dessa vez da profecia Maia, da chegada do planeta Nibiru
ou de qualquer outra catástrofe cósmica que esteja por trás desses eventos. E tudo
isso turbinado ou expresso por uma série de filmes-catástrofes hollywoodianos
como “2012”, “o Dia Depois de Amanhã”, “Presságio” ou mais autorais como
“Melancolia” de Lars Von Trier.
Hollywood turibina ou apenas reflete o imaginário social da necrospectiva? |
Por trás dessa necrospectiva
paradoxalmente encontraremos o renascimento das escatologias religiosas, em
plena era de uma suposta racionalidade tecnológica.
A necessidade da Escatologia
A Escatologia é uma parte da Teologia e da
Filosofia. Significa “último” mais o sufixo “logia”, podendo ser definido como
“estudo sobre o fim”. Pretende tratar sobre os últimos eventos da história do
mundo ou do destino final do gênero humano. Muitas religiões possuem suas
profecias sobre o final do mundo, comumente associado a conceitos como
“Messias”, “profetas” ou “novos reinos” que unificariam o que foi perdido antes
da intromissão do pecado na História humana.
Por
exemplo, em diversas seitas cristãs encontramos tipos de apocalipses
fundamentados nas profecias do apóstolo João em torno dos Quatro Cavaleiros (Conquista,
Guerra, Fome e Morte). Ou ainda, radicais islâmicos ainda estão à espera do chamado
décimo segundo Imam.
Conceito criado no século XVII
pelo teólogo A. Calov, o conceito “Escatologia” vai expressar os pontos
centrais de muitos sistemas religiosos do passado (fim dos séculos,
ressurreição, juízo final etc.) e tensões não resolvidas dentro da Filosofia
como a
tensão entre o destino individual e o coletivo ou o destino do humano e o do
universo como um todo.
O racionalismo vai criticar a preocupação
escatológica, primeiro ao vê-la como alienação: Feuerbach achava que a
imortalidade não seria realizada numa pós-morte ou ressurreição, mas na
História e na imanência e por isso a preocupação escatológica apenas encobriria
que a imortalidade está já presente na espécie humana; e Marx via a ideia de
uma realização humana num paraíso futuro, em algum além vida, como forma de
alienação ideológica para desviar a atenção do proletariado para as condições
de miséria reinantes no capitalismo do presente.
Nietzsche propôs uma desescatologização
radical ao anunciar a morte de Deus: a ideia de Verdade ou sentido final não
passariam de ilusões da verdade, um engodo para encobrir a existência humana
contraditória em um mundo sem Deus.
Já Freud cria um movimento de
des-transcendentalização com a Psicanálise ao afirmar que a realização humana
já se encontrava consigo mesmo através da superação de traumas e neuroses, e
não no destino final da espécie.
Escatologia na Necrospectiva
O declínio simbólico das religiões tradicionais ao lado do renascimento do misticismo no pós-guerra |
Isso
sem falar das motivações místicas por trás das tecnologias computacionais do
Vale do Silício na Califórnia, como apontou o pesquisador Theodor Roszak: uma utopia mística tecnológica onde as tecnologias
computacionais são os instrumentos pelos quais alcançaremos a iluminação
espiritual e a imortalidade. Máquinas da “Graça Amorosa”, divino canal pelo
qual o homem entraria em contato com a espiritualidade. Uma “religião
das máquinas” onde a terra prometida seria uma estranha mistura da alta tecnologia
com a vida rústica, alta tecnologia industrial com “democracia tribal com
cidadão vestidos de camurça indo para a colheita” (ROSZAK, Theodor. “From
Satori to Sillicon Valley”).
O auge da expansão desse misticismo pós-guerra é o
reaparecimento da escatologia, dessa vez por meio de uma espécie de “neoapocalíptica
secularizada”: o crescimento do misticismo New Age numa estranha associação com
a consciência ecológica que questiona o desenvolvimento científico e tecnológico
como mitos que esconderiam a profecia fatal da destruição por meio de
catástrofes climáticas, bélicas ou pelo esgotamento dos recursos do planeta.
A seta para o futuro é revertida através da
necrospectiva que consumirá o presente em uma contagem regressiva por meio da
bomba do desenvolvimento tecnológico, populacional etc.
Escatologia para uma nova religião global
History Channel: a escatologia New Age diária |
Só faltaria
construir uma nova Escatologia, dessa vez por meio de apocalipses sem a
presença divina, mas igualmente moralista, um juízo final que puna os maus e redima os bons. É
precisamente nesse componente moral da escatologia que está a questão
ideológica: no final é justificada a ordem existente (seja política, econômica,
social etc.) como condição necessária para chegarmos à redenção.