Conclusão do post "A necrospectiva do fim do mundo" |
Peter Cornelius, The Riders of Apocalypse (1845) |
Abrigos nucleares
são vendidos nos EUA para aqueles que acreditam que o fim do mundo se aproxima.
No interior da França uma comunidade religiosa acredita que apenas a pequena localidade onde vivem será uma das poucas que sobreviverá ao cataclismo global. E se
invertermos a linha de tempo? Em outras palavras, e se o apocalipse já tiver
ocorrido? E se, sem sabermos, já estivermos em um mundo pós-apocalíptico
vivendo as consequências de um cosmos que se legitima por meio da crença
religiosa de que tudo, um dia, terá um fim? Essa é a heresia gnóstica,
esquecida pela hegemonia de um mercado de profecias sobre o fim do mundo que
desempenha um duplo papel: como manipulação ideológica e, também, como sintoma
da condição humana alienada nesse mundo.
O Titanic já afundou. Os cavaleiros do Apocalipse já cavalgaram há muito
tempo pela Terra. O Apocalipse não foi televisionado e nem foi roteirizado por
uma produção hollywoodiana. Já ocorreu há muito tempo atrás com o “Big Bang” da
Criação.
Esse é o princípio da filosofia gnóstica. O Mal já estava na própria
Criação. Por isso o Gnosticismo sempre foi
associado a uma espécie de “escatologia realizada”. Isto significa
que qualquer realidade que vale a pena se desfez antes da Criação, com a queda
mitológica de Sophia. O Big Bang foi o Apocalipse. Os seres humanos
seriam apenas fragmentos da Divindade suprema agarrados a destroços mortos
flutuando em um oceano de matéria escura.
Stevan Davies, em sua obra “The Secret Book of John: The Gnostic Gospel
Annoted and Explained”, sintetizou esta tragédia cósmica da seguinte maneira:
" Deus enlouqueceu e se tornou como nós ".
O Gnosticismo soa como ficção científica, mas é menos bizarro que todas as escatologias religiosas e hollywoodianas juntas |
Por meio da gnose podemos encontrar o nosso caminho de volta para a
divindade suprema.
Isso soa
como uma boa ficção científica, mas essa reviravolta gnóstica na história do
Armagedom não é mais bizarra do que todas as escatologias religiosas e
hollywoodianas juntas. Ela se aproxima de algumas escolas filosóficas
orientais.
Essa ideia gnóstica da "escatologia realizada" nunca foi
bem sucedida ao longo da história da filosofia, mesmo sabendo que as religiões
continuam falhando em prever quando a Terra vai literalmente pegar
fogo. Parece que as pessoas simplesmente não querem uma história que
começa no final.
Uma escatologia realizada
Escatologia, a especulação sobre
as últimas coisas, desempenha um papel importante em praticamente todas as
religiões. O gnosticismo não é diferente neste aspecto. No entanto, o
gnosticismo é único em que a distinção entre o futuro escatológico e salvação no
presente começa a desaparecer. Isto é particularmente verdadeiro no chamado
Valentianismo – de Valentino, nascido
em Cartago em torno de 100 DC e aluno de São Paulo quase se tornou papa. Fez
uma interpretação gnóstica da mensagem de Cristo. Para ele, Cristo não foi um
“salvador”, mas um “curador” já que nada há para ser salvo, pois o mundo é
imperfeito não pelo pecado, mas pela obra falha de um deus criador inautêntico.
A posição Valentiniana no fim do mundo está intimamente ligada ao seu
ensino sobre a origem do mundo. Segundo a doutrina Valentiniana, os seres
humanos (personificados como Sophia) eram originalmente parte da coletividade
divina ou plenitude (pleroma). O mundo se origina quando os seres humanos caem
em um estado de sofrimento e de deficiência. A existência física é
explicitamente identificada com este estado de queda. Da mesma forma, a
dissolução do mundo e restauração a Plenitude ocorreria por meio da gnose.
Para o gnosticismo valentiniano, as ideias sobre fim do mundo e ressurreição eram ingênuas |
Para os valentianos, as ideias cristãs sobre o fim do mundo e uma
ressurreição física eram interpretações ingênuas. Por meio de experiências
visionárias e rituais acreditavam que a gnose restauraria a plenitude e
dissolveria a ilusão do mundo no presente. Para a pessoa que tem a gnose o fim
do mundo já teria chegado!
Fim do mundo como sintoma
Como diria o alemão Theodor Adorno, toda ideologia tem o seu momento de
verdade. Apesar do mito do fim do mundo ter se transformado em uma franquia
cinematográfica e um próspero mercado de produtos que vão desde as promessas de
salvação espiritual até a salvação física em abrigos nucleares, há um elemento
verdadeiro em tudo isso: o de ser um sintoma da condição humana alienada nesse
mundo.
Se a hipótese escatológica de um fim onde tudo será redimido foi uma
tentativa de solução para as principais tensões existentes nas religiões (a
tensão entre o indivíduo falível e mortal e o Divino imortal e perfeito) e na
filosofia (a tensão entre o destino humano e do Universo como um todo), ela
também expressou o mal estar da condição humana em um cosmos hostil: o
estranhamento e alienação em relação à existência, a desconfiança gnóstica de
que seríamos prisioneiros em um cosmos hostil, nas mãos de um Demiurgo
enlouquecido – desconfiança tão bem expressa cinematograficamente em filmes
como “Show de Truman” ou no recente “Prometheus”.
A cada blackout onde vemos as crianças vibrarem por brincarem no escuro
ou porque as aulas acabaram; a cada banco que é roubado nas telas do cinema; a
cada vítima do serial killer Jason nos filmes de terror; a cada vez que Nova
York vai pelos ares pelas mãos dos terroristas, ETs ou catástrofes climáticas
no cinema, em todos esses momentos está latente o secreto desejo humano de que
todo esse mundo hostil e sem sentido desapareça e para nos libertar definitivamente.
Por isso, toda a indústria do entretenimento
explora esse mal-estar oferecendo imagens arquetípicas de libertação e quebra
da ordem – rotinas que são quebradas por vilões, ETs, serial killers,
catástrofes variadas etc. – para no final a ordem ser restabelecida por heróis
que põem a ordem na casa nos fazendo voltar conformados ao nosso cinzento
cotidiano depois que as luzes do cinema se acendem.
Por isso o fim do mundo, o apocalipse, a
ressurreição ou a salvação sempre foram postergados para o futuro ou para o
além. Dessa forma, a heresia gnóstica da “escatologia realizada” sempre foi
esquecida. Ninguém parece gostar de histórias que começam do fim.