segunda-feira, fevereiro 20, 2012

As Nuvens Atônitas: Temas Gnósticos no Cinema Popular

As sequências em "bullet time" do filme "Matrix" ("The Matrix", 1999) teriam se inspirado em trechos dos Evangelhos Apócrifos Gnósticos do início da Era Cristã? As narrativas do cinema hollywoodiano atual parecem se estruturar em dois mitos: o "monomito" da jornada do herói (Queda,Martírio, Morte e Ressurreição) e o "insight"  místico de que a realidade é uma ilusão.

Em minhas pesquisas iniciais sobre Cinema e Gnosticismo no Mestrado, o texto “The Clouds Astonished – Gnostic Themes in Popular Cinema” (As Nuvens Atônitas – Temas Gnósticos no Cinema Popular) foi um dos primeiros subsídios encontrados na Internet. O problema é que o texto parece ser apócrifo, apenas assinado por iniciais ou pseudônimo. Há tempos esse texto circula por fóruns de discussão sobre cinema, sem se saber exatamente a fonte.

A despeito da sua natureza não-científica, o texto oferece um interessante paralelismo entre as visões criadas em trechos dos evangelhos apócrifos gnósticos e sequências de filmes, como no filme “Matrix”: os efeitos em “bullet time” e o congelamento de ações e objetos enquanto a câmera gira comparado com a imagem descrita no Evangelho “Atos de João” que descreve o momento do nascimento de Cristo onde as “nuvens ficaram atônitas” e os “pássaros pararam” em pleno voo.

Além disso, o texto sugere uma estrutura mítica a partir da qual os filmes gnósticos são construídos: em primeiro lugar esses filmes partilhariam de um “monomito” comum a todos os filmes, a narrativa do “herói de mil faces” tal como descrita pelo historiador e mitólogo Joseph Campel (veja CAMPBEL, Joseph. “O Herói de Mil Faces”, Pensamento, 1995) – o drama da jornada de queda, martírio, morte e ressurreição do herói. Sobre essa narrativa comum o filme gnóstico construiria outra narrativa arquetípica: o súbito “insight” do herói de que a realidade seria uma ilusão.

O texto ainda lança uma hipótese para o súbito aparecimento de temas míticos gnósticos no cinema popular contemporâneo: esses filmes expressariam uma nova sensibilidade a partir do surgimento das interfaces virtuais e os efeitos com imagens geradas em computador: o crescimento dessas tecnologias no horizonte cultural que sugere uma noção plástica da realidade, como uma estrutura ilusória que poderia ser construída e manipulada.

Confira abaixo esse texto:

AS NUVENS ATÔNITAS – TEMAS GNÓSTICOS NO CINEMA POPULAR
Por FP

Quando, no filme "Show de Truman" (The Truman Show, 1998), o herói é questionado sobre porque ele não percebia que era a única pessoa real em uma cidade fictícia povoada por atores, o diretor do espetáculo (Cristoff) responde: "Nós aceitamos a realidade tal como nos é apresentada." Este é o tema comum dos sistemas de crenças heréticas agrupados como Gnosticismo, que floresceu pouco antes do advento do Cristianismo. Em linhas gerais, os Gnósticos também acreditavam que vivemos prisioneiros em uma obra de ficção, dentro da qual somente o conhecimento pode nos libertar. 

Qual a diferença entre o mundo
onírico e o real?
No filme "Matrix" (The Matrix, 1999), o protagonista é indagado: "Alguma vez você já teve um sonho, Neo, onde você tinha tanta certeza que era real? E se você fosse incapaz de acordar desse sonho, Neo? Como saberia a diferença entre o mundo onírico e o mundo real? "

O escritor Philip K Dick, que foi grandemente influenciado por seus estudos sobre o Gnosticismo e por suas próprias experiências místicas, em "The Adjustment Team " (a adaptação cinematográfica é “Os Agentes do Destino” – 2011) descreve o trabalho de um grupo de seres que, enquanto os humanos dormiam, reorganizavam a realidade que rodeava. Embora haja uma linha tênue entre paranoia e questionamento, essas visões apontam para uma estrutura mais profunda por trás das aparências. E cada vez mais esse questionamento tem sido expresso através do cinema. Certamente tal questionamento gnóstico de nossa experiência provou ser um terreno fértil para o cinema elaborar narrativas que constroem realidades alternativas – fato que torna muito desses filmes verdadeiras peças de ironia e auto-referência.


Muitos desses modernos filmes que descrevem mundos pós-apocalípticos têm, certamente, suas raízes nos ensinamentos cristãos e gnósticos. Se nos filmes catástrofe o mundo acaba em inundações, fome, bombardeio de meteoros, peste ou guerra nuclear, podemos ver em larga escala tais descrições em antigos textos gnósticos:

"E isso deve vir no dia do juízo sobre aqueles que se afastaram da fé em Deus e que cometeram o pecado: Inundações (cataratas) de fogo serão liberadas, e as trevas e obscuridade deverão vestir como um véu todo o mundo e as águas transformar-se-ão em brasas e tudo o que há nelas se acenderá, e o mar se tornará fogo. Sob o céu haverá um forte incêndio que não poderá ser apagado para se cumprir a sentença da ira. E as estrelas devem voar em pedaços através de chamas de fogo, como se não tivessem sido criadas e os poderes (firmamentos) dos céus desaparecerão como se nunca tivessem existido. E os relâmpagos do céu e seus assustadores encantos cessarão.

E tão logo toda a criação se dissolva, os homens que estão no leste fugirão para o ocidente, e os que estão no sul fugirão para o norte. E em todos os lugares a ira do fogo terrível os alcançará e uma chama inextinguível os guiará para o julgamento da ira, até o rio do fogo que emana chamas, então, haverá um grande ranger de dentes entre os filhos dos homens." (Evangelho Apócrifo “O Apocalipse de Pedro” – Biblioteca de Nag Hammadi)
Cidade das Sombras (Dark City, 1998)
Um filme abertamente gnóstico é "Cidade das Sombras" (Dark City, 1998), uma história chocante e estilizada sobre um herói que lentamente descobre que seu mundo é uma construção de seres alienígenas e que, novamente, enquanto os seres humanos dormem o mundo é reconstruído. Isso inclui até mesmo a fabricação de personalidades e memórias para manter os seres humanos presos nessa armadilha. A cena em que todo mundo de repente cai no sono e o herói desce uma rua escura repleta de corpos dormindo, gritando: "Acorde! Acorde!" é uma situação familiar a todos aqueles que estão envolvidos no trabalho de investigação. Os gnósticos acreditavam que o nosso estado humano era o da sonolência, e que a experiência direta e o questionamento iriam nos despertar para a nossa verdadeira condição.


O advento das interfaces de realidade virtual em nossa própria percepção e a possibilidade criadas pelos mundos gerados por computador deram outros meios de expressar a preocupação gnóstica. "Matrix" narra como seres humanos presos em uma realidade construída por computadores conseguem despertar e escapar. Da mesma forma que há o mito comum do "herói de mil faces" empenhado em uma jornada para matar o monstro e voltar para sua casa triunfante, há um outro tema arquetípico místico: o súbito “insight” forçando descoberta da verdade que possibilita a fuga da ilusão.


No filme, os efeitos especiais dão uma sensação de “comic-book” para a ação, congelam os movimentos e alteram a velocidade de objetos em uma mesma cena, o que também reforça a noção plástica de uma realidade construída que os personagens aprendem a manipular como fossem poderes super-humanos ou mágicos.

Compare as cenas do filme com essa descrição típica da iluminação gnóstica:
"Na hora da Natividade, como José olhou para o ar, 'Eu vi', diz ele," as nuvens atônitas, e as aves do céu parando no meio do seu voo.... E vi as ovelhas dispersas e ainda... a ovelha parou e eu vi um rio, e vi as crianças com a boca perto da água, tocando-a, mas não a bebiam. " (Evangelho Apócrifo de Tiago ou “Proto-Evangelho” – Biblioteca de Nag Hammadi)

A “Matrix” dentro da qual a nossa realidade virtual é construída também pode ser vista como semelhante ao cérebro humano, uma representação plástica da realidade, mesmo que não havendo “feedback” do ambiente. Um exemplo podem ser os chamados “membros fantasmas” que são sentidos, embora o membro físico já não esteja presente. Que o ambiente é uma construção mental já foi há muito tempo percebida por gnósticos e xamãs a partir da alteração das suas percepções e mapas mentais com o uso de técnicas místicas como a meditação, oração e estímulos físicos, tais como o jejum e dança.



Matrix: "bullet time" e os Evagelhos Gnósticos
No filme "Show de Truman", estas questões são reunidas com uma reflexão sobre o consumismo, o drama, telenovelas e manipulação da mídia. O primeiro indício para o herói de que há algo errado é quando um dispositivo de iluminação cai do céu e se despedaça no chão próximo dele. Isso é um evento obviamente importante e segue a doutrina do iluminismo a qual descreve o “insight” como uma experiência acompanhada de luz brilhante ou brancura. Mais tarde, Truman prova a sua desconfiança sobre o mundo em que vive para sua atriz-esposa ao prever a ordem em “loop” com que pedestres e veículos passam em frente da sua casa. Novamente, isso nos faz lembrar de Gurdjieff, que promoveu a auto-observação para nos tornarmos cientes dos padrões habituais que existem torno de nós, em um "mundo dos robôs", e o stress desse constante reconhecimento proporcionaria um choque para despertar-nos da nossa condição do sono. A última cena do Show de Truman envolve uma escada como um símbolo de ascensão espiritual. Retornaremos mais abaixo sobre esse tema nesse texto.


Os filmes já mencionados lidam com ambientes fictícios, que dão aos personagens uma falsa noção da realidade. Muitas vezes, isso ocorre porque o verdadeiro estado do mundo é incompreensível ou assustador e por esse motivo é escondido dos personagens. É também um paralelo com o nosso crescimento desde a infância até a maturidade, onde chegamos a compreender o ambiente social e assumimos as nossas responsabilidades dentro dele. 

Na estória de Philip K. Dick chamada "Time Out of Joint" (“O Homem Mais Importante do Mundo”, 1959), temos o protagonista que vive em um mundo ficcional onde habitualmente joga palavras cruzadas. Percebemos, na medida em que a  história avança, que o mundo real está em guerra e o personagem é a única pessoa que é capaz de calcular alvos para os destinos das armas. Devido à tensão que esta responsabilidade geraria, ele sofre uma lavagem cerebral e é inserido num ambiente artificial, que se correlaciona com o mundo real, de tal modo que obtém os alvos a partir de seu jogo de palavras cruzadas. 

Muitas escolas gnósticas de pensamento certamente ensinaram que a realidade está além do medo, e que o medo deve ser enfrentado para se obter a verdade. Da mesma forma, tais sistemas iniciáticos muitas vezes têm doutrinas de correlação ou "simpatias", onde os eventos são relacionados em um mapa de um mundo para outro. "Tal como acima, assim abaixo", e da mesma forma que as palavras cruzadas tem significado em outro mundo, assim também nossas ações diárias refletem e informam o mundo real.


Outros filmes lidam com o tema de como aspectos internos da personalidade podem ser construídos por alguma forma ficcional. Na Cabala, na qual estão integrados ensinamentos gnósticos, tal ideia é transmitida pelo “Klippoth”, “cascas”, ou “camadas” de pensamentos que nos separam da realidade divina. 

O filme “O Vingador do Futuro” (Total Recall, 1990) tomou um aspecto da história de Philip K. Dick "We Can Remember It for You Wholesale", quando deu uma identidade fictícia ao seu personagem principal, cuja verdadeira identidade é descoberta no final da narrativa para, então, ser superada pela "Redenção" do personagem ficcional. As alterações feitas na personalidade são um pouco parecidas com a substituição de uma peça de um motor de um carro velho por um componente novo. Muitas vezes isso tem o efeito de adicionar mais pressão sobre os componentes ao redor para, em seguida, estes começarem também a quebrar. 

Filmes mostram isso através de personagens que experimentam “flashbacks” e visões – aqueles que trabalham com supermercado espiritual do autoconhecimento irão reconhecer isso: quando alguém trabalha para corrigir uma parte de si mesmo acaba sofrendo avarias em outras áreas de sua vida, ou tem que ir para uma outra terapia ou devoção para reparar outros problemas por questões trazidas pela primeira posição. Todo o trabalho deve ser holístico e deve ter em conta a matriz total como um sistema integrado, onde tudo está conectado.


Em "Vidas em Jogo" (The Game, 1997), com Michael Douglas é provavelmente um dos retratos mais interessantes desse trabalho de revelação e de fuga do apego ao mundo material. O personagem que sofre a ação do jogo em questão é um empresário arquetípico, impiedoso e perturbado, que é induzido a experimentar uma mudança de vida causará impacto em todas as partes da sua personalidade. Depois da sequência de morte e renascimento, ele enfrentará a raiz do problema em sua psique e literalmente saltará em um abismo, que é um tema comum em textos místicos. Um especial aspecto do autoconhecimento que é desenvolvido no filme é quando o herói recebe várias chaves ou objetos em diferentes pontos do jogo, cujo uso não é óbvio até o instante em que esteja em situações em que seja necessária a utilização dos objetos. De forma semelhante, as experiências de vida nos equipa, os livros nos informam, os professores nos ensinam, mas todas essas lições e recursos que nos capacitaram só serão usados muitos anos mais tarde.



Mitos e contos de fadas também ensinam a lição do presente indesejado e do talento desconhecido. É verdade que nada é desperdiçado, há uma grande quantidade de chumbo que é recolhido ao longo da nossa vida, pesado, maçante e cinza, que pode mais tarde a se transformar em ouro!


Como a realidade pode permear uma ficção é significativamente retratado no filme "A Vida em Preto em Branco" (Pleasantville, 1998), que usa um efeito simples, mas brilhantemente executado, para abordar outras questões como o racismo e movimentos de caça às bruxas como o McCarthismo. Os protagonistas do mundo real caem em mundo preto e branco da novela televisiva chamada “Pleasantville” e passam aos poucos a influenciar os seus habitante, fazendo aos poucos as cores se infiltrarem naquele mundo. Mais uma vez, um tema gnóstico comum é que a iluminação do mundo pela cor:
 "29. Mas, tu se tornou para mim um bom pintor, Licomedes. Tu tens as cores que Ele te dá através de mim, que pintou a todos nós, até Jesus, que conhece as formas e aparências e posturas e disposições e tipos de almas. E as cores com que eu te ordeno pintar são estas: a fé em Deus, conhecimento, temor a Deus, amizade, comunhão, humildade, bondade, amor fraterno, pureza, simplicidade, tranquilidade, destemor, sobriedade, e toda a gama de cores que se assemelham a das tuas almas. "(Evangelho Gnóstico ou Atos de João” – Biblioteca de Nag Hammadi)
Outro tema do ensino cristão, os anjos, é tratado no filme "Cidade dos Anjos" (City of Angels, 1998), onde são retratados caminhando ao lado de uma humanidade cega - só os "mortos e delirantes" podem vê-los. Eles são comoventemente retratados em uma cena onde tocam suavemente as cabeças de um lojista e de um criminoso armado, para  induzi-los através de uma situação que  foi produzida pelo próprio livre-arbítrio. Os anjos podem simplesmente agir como mensageiros que ligam entidades isoladas com um bem maior. 

O filme “Alucinações do Passado” (Jacob’s Ladder, 1990) tem o conceito gnóstico de que nosso apego ao mundo perceptivo é a coisa principal que nos impede de experimentar o mundo real. Devemos "morrer", a fim de nos libertar da prisão de um mundo ficcionalmente construído. Novamente, isso é uma coisa terrível, pois uma vez que consideramos necessário alcançar a verdade, nesse momento de busca ainda não conseguimos enxergá-la; precisamos ter fé, loucura ou esgotar todas as outras possibilidades antes de darmos o salto final. As últimas sequências do filme “Alucinações do Passado”, que envolvem uma escada, nos lembram dos fundamentos do misticismo gnóstico onde podemos alcançar a redenção e, através do sofrimento trazido pelo conhecimento, vir a compreender a verdade "depois de todas as sombras tiverem desaparecido; então verás o fogo sagrado, aquele que lança dardos e flashes das ocultas profundezas deste universo. Ouça a voz do fogo! "

ASTONISHED CLOUDS FILM LIST

  • City of Angels, 1998, dir. Brad Silberling, writer Wim Wenders.
  • Dark City, 1998, dir. Alex Proyas, writer Alex Proyas.
  • Fearless, 1993, dir. Peter Weir, writer Rafael Yglesias.
  • Jacob’s Ladder, 1990, dir. Adrian Lyne, writer Bruce Joel Rubin.
  • Pleasantville, 1998, dir. Gary Ross, writer Gary Ross.
  • The Game, 1997, dir. David Fincher, writer John D. Brancato, Michael Ferris (III).
  • The Matrix, 1990, dir. Andy & Larry Wachowski.
  • The Truman Show, 1998, dir. Peter Weir, writer Andrew Nicol.
  • Total Recall, 1990, dir. Paul Verhoeven, writer Philip K. Dick (story) Ronald Shusett.



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