quinta-feira, março 24, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Ao limitar a crítica sobre os motivos da crise global de 2008 à denúncia sobre homens poderosos motivados pela ganância, cobiça e luxúria, deixa de colocar em questão as próprias bases do funcionamento do sistema financeiro. A financeirização, a liquidez do capital e a volatilidade do valor no capitalismo global não são colocadas em discussão. Tudo é apresentado como uma questão de regulamentação para evitar que raposas astutas tomem conta do galinheiro do mercado.
“Trabalho Interno” de Charles Ferguson segue uma tendência pós-atentados de 11 de setembro de filmes críticos em relação aos fatos políticos e econômicos ocorridos nos EUA desde então. "Syriana" (2005), "O Senhor das Armas" (2005) e "Fahrenheit 11 de Setembro" (2004) de Michel Moore são alguns exemplos. Ao ganhar o Oscar de melhor documentário, Hollywood premia essa tendência que, ao longo dos anos finais do governo Bush, serviu para a preparação de terreno para os novos tempos de governo democrata que estava por vir, agora iniciado com a eleição de Barack Obama.
Mas, como o próprio documentário denuncia, até agora o governo Obama nada fez para reverter a política de desregulamentação dos mercados financeiros, política esta que foi a origem da grande crise global de 2008.
“Trabalho Interno” analisa de forma pormenorizada (e em alguns momentos de forma árida) a gênese do desenvolvimento da crise financeira em escala global e que custou ao mundo um prejuízo de 20 trilhões de dólares. O documentário não se limita a fazer críticas conjunturais: dá os nomes de diretores, executivos e empresas (de seguros, bancos de investimentos etc.). Descreve a ficha completa de cada nome e a engenharia financeira irresponsável que torrou dinheiro público e fez poucos ficarem milionários com a explosão da “bolha” financeira.
Mas uma questão incomoda: como explicar que filmes tão ácidos e críticos em relação às mazelas do modelo neo-liberal sejam indicados ao Oscar e até premiados pelo mainstream hollywoodiano? Se historicamente a indústria hollywoodiana sempre esteve sintonizada com a agenda política da Casa Branca, como interpretar esses prêmios a documentaristas como Michael Moore e Charles Ferguson? Uma ruptura dos produtores e executivos dos estúdios de Hollywood (a maioria deles nas mãos de grupos transnacionais como a Sony e a News Corporation) com o Estado norte-americano?
Se há uma coisa que a metodologia de análise gnóstica nos ensina é saber diferenciar entre a crítica moralista e uma crítica ontológica de uma dada realidade. O documentário “Trabalho Interno” é soberbo em apresentar de forma didática um tema tão espinhoso como a complexa engenharia financeira por trás da irracionalidade de homens e instituições. Porém, o seu problema está na angulação, no enfoque: a crítica moralista que reduz a crise global de 2008 à ação de “bad guys”, homens seduzidos pela ganância, cobiça e luxúria.
Os "bad guys" por trás da crise
financeira global de 2008
A financeirização, a liquidez do capital e a volatilidade do valor no capitalismo global não são colocadas em discussão. Tudo é apresentado como uma questão de regulamentação do governo para evitar que raposas astutas tomem conta do galinheiro do mercado. Isso fica mais evidente na aproximação dos nomes dos culpados com a rede de prostituição e drogas existentes nos grandes centros financeiros. Um psicólogo é entrevistado para o documentário sugerir a relação entre a compulsão por drogas e prostitutas com as ações irresponsáveis no mercado de valores.
“Trabalho Interno” faz uma personalização e psicologização da crise global de 2008. Ao dar os nomes dos culpados e detalhar as suas ações impulsivas, deixa o sistema livre de qualquer questionamento crítico: afinal, será que pecados como cobiça, ganância, soberba e luxúria explicam a derrocada financeira global? Atos irresponsáveis e imorais de um grupo de diretores e executivos com relações promíscuas com o Estado elucidam tudo? Apenas uma política de regulamentação que elimine as laranjas podres manterá a saúde financeira do sistema?
Se acreditarmos que a economia é o esforço humano em racionalizar a produção, distribuição e consumo de bens e serviços, então ficaremos satisfeitos com a crítica apresentada pelo documentário. Porém, há algo mais no sistema econômico, uma natureza simbólica e metafísica que vai além de qualquer limitação moral ou ética que tente se impor a ele: uma natureza mágica, feitiço, fetiche. Uma natureza intrínseca à produção de riqueza e valor na história humana que reverte qualquer racionalidade ou valor de uso.
Podemos citar dois nomes que foram a fundo nessa crítica ontológica dos processos econômicos: o filósofo alemão do século XIX Karl Marx e o contemporâneo pensador francês Jean Baudrillard.
Capitalismo como Fetiche
A teoria do fetichismo foi a descoberta de Marx que o levou para além dos postulados da economia política clássica. Em um sistema econômico (o capitalismo) onde a mercadoria e o mercado adquirem hegemonia como medida e visão de mundo, Marx pressentiu algo mágico nos processos econômicos: mercadoria, dinheiro, capital e mercado passam a adquirir as características de um ídolo, um amuleto ou de alguma coisa enfeitiçada que tem origens misteriosas e poderes inexplicáveis.
Karl Marx: Economia como Fetiche
Objetos surgem para os agentes econômicos como dádivas, presentes que devem ser convertidos em valor que parece não mais produtos do trabalho humano explorado, mas decorrentes de características das próprias coisas. O valor de troca, preços, lucros e juros seriam como propriedades emanadas magicamente de objetos que parecem adquirir vida própria.
Marx descreve o crescente processo de fetichização no processo de metamorfose da mercadoria em dinheiro, até chegar ao “capital portador de juros”:
“O capital aparece como fonte misteriosa, autocriadora de juro, de seu próprio incremento. A coisa (dinheiro, mercadoria, valor) já é capital como mera coisa, e o capital aparece como simples coisa; o resultado do processo global de reprodução aparece como propriedade que cabe por si a uma coisa” (MARX, Karl. O Capital, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 293.)
Embora criações humanas, capital, mercadoria, dinheiro e mercado aparentam ter vontade própria. Essa espiral de abstrações que vai do capital industrial ao capital “portador de juros” (o capital financeiro) perverte a própria racionalidade econômica: em nome das regras de oferta e procura mercadorias e valores são destruídos em guerras, recessões ou na destruição física de lotes de produções para os preços serem estabilizados.
O mercado vira uma entidade divina com seus humores: às vezes o mercado fica “nervoso”; em outras, “calmo”. Rituais de imolação e sacrifício são implicavelmente impostos para aplacar a ira divina: elevação de juros, destruição de riquezas e de seres humanos etc.
Baudrillard e a economia Potlatch
O radical ceticismo do pensamento de Baudrillard talvez seja aquele que empreendeu uma radical crítica ontológica aos sistemas econômicos.
O ceticismo radical de Baudrillard:
a racionalidade econômica
produz o contrário - destruição
Para Baudrillard toda pretensa racionalidade do sistema econômico pode ser interpretada como fosse um gigantesco potlatch (instituição de tribos indígenas da América do Norte onde se distribuía e destruía a riqueza própria). Só para relembrar algumas características do potlatch, como descrito pelo antropólogo Marcel Mauss em seu “Ensaio sobre a Dádiva” de 1925:
Dádiva de bens
É obrigatório retribuir de forma que supere a dádiva recebida
Quanto maior a sua oferta de bens e destruição, mais rico e poderoso o indivíduo
Seguindo o raciocínio de Baudrillard, rituais de destruição e sacrifício como a crise global de 2008 assumem todas as características de um potlatch: é impossível não aceitar as “dádivas” ou “presentes” (títulos, papéis ou ações que especulativamente circulam); retribuir esses papéis ao mercado com um valor especulativo ainda maior; e, no final, a realização do lucro na destruição como forma de ostentação de poder.
Para ele a racionalidade econômica produz o seu contrário, a destruição e o desperdício: isso vai desde o consumidor final que compra inutilidades e futilidades para, no desperdício, ostentar a sua fração de poder, até o grande especulador que destrói nações inteiras.
O discurso econômico racionalista ocidental concebe o fenômeno econômico com uma dinâmica que, tendencialmente, evolui para o Bem: a satisfação de todos os valores de uso, o combate à escassez, a racionalização dos recursos da sociedade. Mas o Econômico foi seduzido pelo Mal.
Assim como no potlach, todo o valor de uso é volatizado na circulação das trocas. Para o valor se realizar no mercado é necessário produzir-se além do necessário para que o excedente seja queimado, destruído ou convertido em objetos descartáveis. A sedução pelo espetáculo e pela ilusão (guerras, publicidade, embalagens, design, etc.) conduz ao fascínio pela inutilidade.
O escândalo moral que o discurso ecológico mobiliza contra esse sistema é a contraparte reversível de um todo. A possibilidade de reciclagem dos restos (lixo, gás carbônico, árvores arrancadas e assim por diante, igualmente transformados em mercadoria) de um sistema obeso, simula a existência de um referencial, de um valor de uso que ainda possa ser resgatado.
Da mesma maneira, a existência da fome e da pobreza não é a denúncia, mas outra contraparte reversível da produção, o seu espelho: sem desigualdade social é impossível atribuir valores no mercado. Status e luxo somente podem existir em uma escassez simulada, por exemplo, na destruição de gigantescos estoques de alimentos em guerras e crises econômicas cíclicas.
A Crítica Moralista de “Trabalho Interno”
Não são os homens que são imorais, é o sistema que é irracional devido a sua natureza simbólica e metafísica. Talvez aqui passemos a compreender o Oscar ofertado por Hollywood ao “Trabalho Interno”. Afinal o documentário cumpre as duas funções primordiais da indústria do entretenimento: primeiro, a personalização da realidade ao reduzir os processos a conflitos entre “bons” e “maus”; e, segundo, a oferta da solução tranquilizadora, a “regulamentação dos mercados de derivativos” para que a imoral natureza humana seja acorrentada. Afinal, a “situação faz o ladrão”.
Talvez o diretor Charles Ferguson não perceba que, com o Oscar, o seu ótimo trabalho acabe se transformando numa peça ideologicamente ambígua. A crítica moral do documentário sobre os fatores que desencadearam riqueza e miséria em 2008 acaba, no final, se transformando numa peça de justificativa de toda uma narrativa ficcional hollywoodiana sobre heróis sempre vigilantes, prontos para derrotar os “bad guys”. E a natureza irracional do sistema econômico e do próprio objeto da Economia acaba ficando em suspenso, longe da crítica.
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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