Ao limitar a crítica sobre os motivos da crise global de 2008 à denúncia sobre homens poderosos motivados pela ganância, cobiça e luxúria, deixa de colocar em questão as próprias bases do funcionamento do sistema financeiro. A financeirização, a liquidez do capital e a volatilidade do valor no capitalismo global não são colocadas em discussão. Tudo é apresentado como uma questão de regulamentação para evitar que raposas astutas tomem conta do galinheiro do mercado.
“Trabalho Interno” de Charles Ferguson segue uma tendência pós-atentados de 11 de setembro de filmes críticos em relação aos fatos políticos e econômicos ocorridos nos EUA desde então. "Syriana" (2005), "O Senhor das Armas" (2005) e "Fahrenheit 11 de Setembro" (2004) de Michel Moore são alguns exemplos. Ao ganhar o Oscar de melhor documentário, Hollywood premia essa tendência que, ao longo dos anos finais do governo Bush, serviu para a preparação de terreno para os novos tempos de governo democrata que estava por vir, agora iniciado com a eleição de Barack Obama.
Mas, como o próprio documentário denuncia, até agora o governo Obama nada fez para reverter a política de desregulamentação dos mercados financeiros, política esta que foi a origem da grande crise global de 2008.
“Trabalho Interno” analisa de forma pormenorizada (e em alguns momentos de forma árida) a gênese do desenvolvimento da crise financeira em escala global e que custou ao mundo um prejuízo de 20 trilhões de dólares. O documentário não se limita a fazer críticas conjunturais: dá os nomes de diretores, executivos e empresas (de seguros, bancos de investimentos etc.). Descreve a ficha completa de cada nome e a engenharia financeira irresponsável que torrou dinheiro público e fez poucos ficarem milionários com a explosão da “bolha” financeira.
Mas uma questão incomoda: como explicar que filmes tão ácidos e críticos em relação às mazelas do modelo neo-liberal sejam indicados ao Oscar e até premiados pelo mainstream hollywoodiano? Se historicamente a indústria hollywoodiana sempre esteve sintonizada com a agenda política da Casa Branca, como interpretar esses prêmios a documentaristas como Michael Moore e Charles Ferguson? Uma ruptura dos produtores e executivos dos estúdios de Hollywood (a maioria deles nas mãos de grupos transnacionais como a Sony e a News Corporation) com o Estado norte-americano?
Se há uma coisa que a metodologia de análise gnóstica nos ensina é saber diferenciar entre a crítica moralista e uma crítica ontológica de uma dada realidade. O documentário “Trabalho Interno” é soberbo em apresentar de forma didática um tema tão espinhoso como a complexa engenharia financeira por trás da irracionalidade de homens e instituições. Porém, o seu problema está na angulação, no enfoque: a crítica moralista que reduz a crise global de 2008 à ação de “bad guys”, homens seduzidos pela ganância, cobiça e luxúria.
A financeirização, a liquidez do capital e a volatilidade do valor no capitalismo global não são colocadas em discussão. Tudo é apresentado como uma questão de regulamentação do governo para evitar que raposas astutas tomem conta do galinheiro do mercado. Isso fica mais evidente na aproximação dos nomes dos culpados com a rede de prostituição e drogas existentes nos grandes centros financeiros. Um psicólogo é entrevistado para o documentário sugerir a relação entre a compulsão por drogas e prostitutas com as ações irresponsáveis no mercado de valores.
“Trabalho Interno” faz uma personalização e psicologização da crise global de 2008. Ao dar os nomes dos culpados e detalhar as suas ações impulsivas, deixa o sistema livre de qualquer questionamento crítico: afinal, será que pecados como cobiça, ganância, soberba e luxúria explicam a derrocada financeira global? Atos irresponsáveis e imorais de um grupo de diretores e executivos com relações promíscuas com o Estado elucidam tudo? Apenas uma política de regulamentação que elimine as laranjas podres manterá a saúde financeira do sistema?
Se acreditarmos que a economia é o esforço humano em racionalizar a produção, distribuição e consumo de bens e serviços, então ficaremos satisfeitos com a crítica apresentada pelo documentário. Porém, há algo mais no sistema econômico, uma natureza simbólica e metafísica que vai além de qualquer limitação moral ou ética que tente se impor a ele: uma natureza mágica, feitiço, fetiche. Uma natureza intrínseca à produção de riqueza e valor na história humana que reverte qualquer racionalidade ou valor de uso.
Podemos citar dois nomes que foram a fundo nessa crítica ontológica dos processos econômicos: o filósofo alemão do século XIX Karl Marx e o contemporâneo pensador francês Jean Baudrillard.
Capitalismo como Fetiche
A teoria do fetichismo foi a descoberta de Marx que o levou para além dos postulados da economia política clássica. Em um sistema econômico (o capitalismo) onde a mercadoria e o mercado adquirem hegemonia como medida e visão de mundo, Marx pressentiu algo mágico nos processos econômicos: mercadoria, dinheiro, capital e mercado passam a adquirir as características de um ídolo, um amuleto ou de alguma coisa enfeitiçada que tem origens misteriosas e poderes inexplicáveis.
Karl Marx: Economia como Fetiche |
Marx descreve o crescente processo de fetichização no processo de metamorfose da mercadoria em dinheiro, até chegar ao “capital portador de juros”:
“O capital aparece como fonte misteriosa, autocriadora de juro, de seu próprio incremento. A coisa (dinheiro, mercadoria, valor) já é capital como mera coisa, e o capital aparece como simples coisa; o resultado do processo global de reprodução aparece como propriedade que cabe por si a uma coisa” (MARX, Karl. O Capital, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 293.)
Embora criações humanas, capital, mercadoria, dinheiro e mercado aparentam ter vontade própria. Essa espiral de abstrações que vai do capital industrial ao capital “portador de juros” (o capital financeiro) perverte a própria racionalidade econômica: em nome das regras de oferta e procura mercadorias e valores são destruídos em guerras, recessões ou na destruição física de lotes de produções para os preços serem estabilizados.
O mercado vira uma entidade divina com seus humores: às vezes o mercado fica “nervoso”; em outras, “calmo”. Rituais de imolação e sacrifício são implicavelmente impostos para aplacar a ira divina: elevação de juros, destruição de riquezas e de seres humanos etc.
Baudrillard e a economia Potlatch
O radical ceticismo do pensamento de Baudrillard talvez seja aquele que empreendeu uma radical crítica ontológica aos sistemas econômicos.
O ceticismo radical de Baudrillard: a racionalidade econômica produz o contrário - destruição |
- Dádiva de bens
- É obrigatório retribuir de forma que supere a dádiva recebida
- Quanto maior a sua oferta de bens e destruição, mais rico e poderoso o indivíduo
Seguindo o raciocínio de Baudrillard, rituais de destruição e sacrifício como a crise global de 2008 assumem todas as características de um potlatch: é impossível não aceitar as “dádivas” ou “presentes” (títulos, papéis ou ações que especulativamente circulam); retribuir esses papéis ao mercado com um valor especulativo ainda maior; e, no final, a realização do lucro na destruição como forma de ostentação de poder.
Para ele a racionalidade econômica produz o seu contrário, a destruição e o desperdício: isso vai desde o consumidor final que compra inutilidades e futilidades para, no desperdício, ostentar a sua fração de poder, até o grande especulador que destrói nações inteiras.
O discurso econômico racionalista ocidental concebe o fenômeno econômico com uma dinâmica que, tendencialmente, evolui para o Bem: a satisfação de todos os valores de uso, o combate à escassez, a racionalização dos recursos da sociedade. Mas o Econômico foi seduzido pelo Mal.
Assim como no potlach, todo o valor de uso é volatizado na circulação das trocas. Para o valor se realizar no mercado é necessário produzir-se além do necessário para que o excedente seja queimado, destruído ou convertido em objetos descartáveis. A sedução pelo espetáculo e pela ilusão (guerras, publicidade, embalagens, design, etc.) conduz ao fascínio pela inutilidade.
O escândalo moral que o discurso ecológico mobiliza contra esse sistema é a contraparte reversível de um todo. A possibilidade de reciclagem dos restos (lixo, gás carbônico, árvores arrancadas e assim por diante, igualmente transformados em mercadoria) de um sistema obeso, simula a existência de um referencial, de um valor de uso que ainda possa ser resgatado.
Da mesma maneira, a existência da fome e da pobreza não é a denúncia, mas outra contraparte reversível da produção, o seu espelho: sem desigualdade social é impossível atribuir valores no mercado. Status e luxo somente podem existir em uma escassez simulada, por exemplo, na destruição de gigantescos estoques de alimentos em guerras e crises econômicas cíclicas.
A Crítica Moralista de “Trabalho Interno”
Não são os homens que são imorais, é o sistema que é irracional devido a sua natureza simbólica e metafísica. Talvez aqui passemos a compreender o Oscar ofertado por Hollywood ao “Trabalho Interno”. Afinal o documentário cumpre as duas funções primordiais da indústria do entretenimento: primeiro, a personalização da realidade ao reduzir os processos a conflitos entre “bons” e “maus”; e, segundo, a oferta da solução tranquilizadora, a “regulamentação dos mercados de derivativos” para que a imoral natureza humana seja acorrentada. Afinal, a “situação faz o ladrão”.
Talvez o diretor Charles Ferguson não perceba que, com o Oscar, o seu ótimo trabalho acabe se transformando numa peça ideologicamente ambígua. A crítica moral do documentário sobre os fatores que desencadearam riqueza e miséria em 2008 acaba, no final, se transformando numa peça de justificativa de toda uma narrativa ficcional hollywoodiana sobre heróis sempre vigilantes, prontos para derrotar os “bad guys”. E a natureza irracional do sistema econômico e do próprio objeto da Economia acaba ficando em suspenso, longe da crítica.
Ficha Técnica
Ficha Técnica
- Título: Trabalho Interno (Inside Job)
- Direção: Charles Ferguson
- Narração: Matt Damon
- Produção: Sonny Pictures Classics, Representational Pictures
- Distribuição: Columbia TriStar Warner Films e Sonny Pictures Classics
- Ano: 2010
- País: EUA