domingo, abril 03, 2011

Para Cada documentário como “Trabalho Interno”, Hollywood responde com vários “Sem Limites”

O filme “Sem Limites” (Limitless, 2011) a princípio representa uma reação ideológica à tendência de documentários críticos à financeirização global trazida pelo modelo neoliberal ao narrar a estória de um protagonista “neuro-yuppie” (legítimo representante da chamada “Geração Y) que vê seu cérebro turbinado por “smart pills” e enriquece no mercado financeiro. Um novo modelo de self made man, não mais legitimado por modelos éticos ou morais protestantes, mas, agora, fundamentado no paradigma neurocientífico.

Eddie Morra (Bradley Cooper) quer ser um escritor, mas nunca consegue começar seu livro. Vive maltrapilho em um pequeno apartamento sujo e empilhado de lixo. Enquanto isso, sua ex-esposa (Lindy, Abbie Cornish) é bem sucedida e recentemente promovida ao cargo de editora. Seu cotidiano se arrasta entre bares, ruas e a tela de seu laptop para a qual olha sem conseguir iniciar a primeira linha de seu livro. Um “looser”.   Até que um dia encontra nas ruas Vernon (Johnny Whitworth), seu ex-cunhado, que lhe apresenta uma nova droga chamada NZT, capaz de fazer seu usuário ter acesso a 100% das informações do cérebro, indo além dos 20% da média das pessoas.

Após experimentar a droga e ter uma experiência extra-corpórea, tudo na sua mente fica claro e limpo. A matiz da fotografia do filme adquire um tom avermelhado, o ritmo de Eddie fica frenético e é capaz de escreve um livro em quatro dias e aprender línguas em poucas horas. Acessando qualquer fragmento de informação no seu cérebro, é capaz de aprender qualquer coisa e adquirir habilidades que antes ignorava que pudesse ter. Por exemplo, é capaz de em poucos segundos aprender golpes de luta marcial apenas em relembrar imagens fragmentadas dos filmes de Bruce Lee dos anos 70.

Torna-se um mega-cérebro anabolizado, um super-homem da era da informação. Se no livro no qual se baseia o filme (“Dark Fields” de Allan Glyn) temos uma irônica reflexão de uma mudança cultural americana em um país onde figuras como Bill Gates e Steve Jobs são celebradas como novos heróis, o mesmo não acontece na adaptação de “Sem Limites”: o tom torna-se apologético, um elogio às “smart pills” e a toda cultura terapêutica onde o aprimoramento pessoal se baseia na fármaco dependência (prozacs, valiums etc.).

No livro “Dark Fields” o mito do “self mad man” (o homem bem sucedido pelos seu próprios méritos) é desconstruido quando o protagonista reconhece no olhar do presidente dos EUA  que ele, também, é consumidor de “smart pills”. Ao contrário, no filme “Sem Limites” vemos a construção de um “neuro-yuppie” onde a droga é um recurso para superar as limitações de uma mente brilhante confinada a um corpo. Essa é, de resto, a grande utopia das neurociências e ciências cognitivas atuais: superar as limitações criadas pelo orgânico através de atalhos eletro-neuro-bio-químicos que libertem o espírito da condição existencial limitante da matéria. A Tecnognose. Voltaremos a esse ponto mais adiante.

O grande problema de “Sem Limites” é que não conseguimos entender o tom da narrativa. O filme começa com imagens recursivas (a câmera avança em linha reta por calçadas de Nova York onde planos interpenetram-se com outros planos num interminável plano-sequência) lembrando o filme “A Origem”. Será que teremos outro complexo filme sobre os labirintos da mente? Depois, ao acessar 100% da capacidade do cérebro, as “smart pills” transformam-se em pílulas de ambição: deixa repentinamente de ser escritor e torna-se um brilhante especulador de Wall Street que descobriu um algoritmo capaz de prever todas as tendências do mercado financeiro. De repente, temos uma espécie de “Wall Street 3: onde o dinheiro nunca dorme”. E, não mais que de repente, o filme transforma-se em thriller de ação e perseguição, quando Eddie descobre que por trás das pílulas de NZT estão narco-traficantes e outros homens poderosos que também são usuários da droga e não aceitam competidores.

De qualquer forma, o tom irônico e reflexivo sugerido no início é superado pela apologia da superação do protagonista e o elogio ao atalho neuro-bio-químico da pílula: de perdedor auto-indulgente transforma-se num vencedor (reconquista sua esposa, torna-se milionário e poderoso e ainda tem a pretensão de se tornar senador e, mais tarde, presidente – o que, como sugere a lógica da narrativa – facilmente conseguirá).

Dos Yuppies da Geração X ao Neuro-yuppies da Geração Y)

A chamada geração X (os filhos da geração “baby boomer” pós-guerra) produziu, nos anos 80 e 90, a sua autoimagem mais bem acabada: o Yuppie. Derivação da sigla YUP (jovem profissional urbano), esses jovens executivos do setor financeiro e de serviços se beneficiaram do crescimento econômico conduzida por políticas neoliberais de desregulamentação e diminuição de impostos nos EUA e Inglaterra. Ao contrário dos hippies do passado, sua ideologia é focada no indivíduo, materialismo (o sonho de juntar seu primeiro milhão de dólares antes dos 30 anos) e na flexibilidade ética e amoralidade.

"American Psycho", 2010: agressividade,
obsessão, impulsividade e frieza nos
yuppies dos anos 80-90
Filmes como “Wall Street – Poder e Cobiça” (“Wall Street”, 1987) e “Psicopata Americano” (“American Psycho”, 2000) constroem didaticamente o perfil dessa geração: seu sucesso é explicado menos pelas suas capacidades técnico-profissionais e muito mais por características de personalidade, motivação e atitude: agressividade,obsessão, impulsividade, amoralidade, frieza e indiferença.

Diferente disso, o filme “Sem Limites” parece apontar para um novo yuppie, agora na chamada geração Y: o neuro-yuppie. Bill Gates e Steve Jobs são os símbolos para essa geração: ao contrário dos agressivos e amorais yuppies, eles são politicamente corretos (falam em sustentabilidade, criatividade e liberdade), são cientistas da informação e modelos de sucesso baseado no mérito técnico e profissional.

Seu modelo de sucesso está na maneira como processam, manipulam, filtram e classificam as informações. Sobre esse novo paradigma (a da informação computacional) cria-se todo o edifício das neurociências e ciências cognitivas atuais ao eleger o computador como a grande metáfora: cérebro, neurônios e sinapses são traduzidos a partir de um modelo computacional como processadores, memória e disco rígidos (HDs).

Agora, o cérebro é visto como limitado com sua capacidade de sinapses confinada em um corpo. A Tecnognose será o paradigma revolucionário que prometerá a libertação espiritual dos limites do corpo através do aumento da capacidade de acessar poderes ainda desconhecidos da mente. Como já vimos em postagens anteriores (veja links abaixo), esse discurso é um amálgama de ciência com misticismo tecnognóstico na busca de atalhos que permitam essa transcendência final: técnicas de auto-ajuda, modelos simulados do cérebro desenhados a partir de cartografias mentais e, finalmente, as “smart pills”.

Dessa maneira, o filme “Sem Limites” é o elogio desse novo neuro-yuppie. Um modelo de sucesso profissional através da capacidade da manipulação das informações conhecidas e desconhecidas armazenadas no cérebro.

Com isso, o filme “Sem Limites” cumpre um função ideológica: com o protagonista neuro-yuppie Eddie Morra toda a suspeita engenharia financeira de Wall Street é “naturalizada” ou “matematicizada” com a descoberta do algoritmo de sucesso que garante a fortuna de Eddie. Se o documentário “Trabalho Interno” denunciava que todas as fortunas do mercado financeiro provinham de “bolhas” criadas por falcatruas possibilitadas pela desregulamentação e relações promíscuas entre Estado e especuladores, em “Sem Limites”, ao contrário, o sucesso provém de fórmulas matemáticas e a utilização total do cérebro.

É o discurso do “self made man” e da meritocracia retornando, dessa vez, porém, como farsa: não mais originada por uma visão de mundo ético-moral protestante (tal como descrita pelo sociólogo clássico Max Weber sobre as origens do capitalismo) mas, agora, pelos atalhos oferecidos pelas neurociências.

Conhecimento reduzido a estoque aleatório de informação

É emblemático como o filme mostra Eddie Morra manipulando as informações contidas em seu cérebro. O cérebro é mostrado como um reservatório aleatório de informações fragmentadas, soltas, onde tudo é reduzido a um mínimo denominador comum: bytes. Não há diferenças qualitativas entre uma informação do mercado financeiro, a imagem de um golpe de Bruce Lee ou a fórmula estatística infalível para prever os números nas roletas.

Todas as informações se nivelam a uma única função pragmática: estar disponível às demandas  de um sujeito que visa performance, poder, desempenho e eficácia. Esvaziadas de qualquer diferença qualitativa e sem qualquer hierarquia de pertinência ou de valores morais ou éticos as informações não se transformam em conhecimento ou sabedoria. Por elas estarem reduzidas a acessos pontuais de acordo com necessidades de curto prazo, Eddie Morra vive um eterno presente. Ele é niilista e hedonista, isso é, sem passado e sem futuro, Eddie é condenado a viver somente o presente.

Concluindo, o filme “Sem Limites” pode ser focado pelos pontos de vista ideológico, cultural e científico. Como ideologia, é um filme de reação de Hollywood aos documentários críticos ao neoliberalismo e as crises financeiras globais (de documentários de Michel Moore ao “Trabalho Interno” de Charles Ferguson); como cultura é um sintoma da chamada Geração Y e a ascendência do neuro-yuppie;  e, cientificamente, como mais um filme que expressa esteticamente o que chamamos de “agenda tecnognóstica” do mainstream tecnocientífico atual.

Ficha Técnica
  • Título: “Sem Limites” (Limitless)
  • Direção: Neil Burger
  • Roteiro: Leslie Dixon baseado no livro “Dark Fields” de Alan Gynn
  • Elenco: Bradley Cooper, Robert De Niro, Abbie Cornish, Anna Friel, Andrew Howard
  • Produtores: Leslie Dixon, Scott Knoopf, Ryan Kavanaugh
  • Produção: Many Rivers Productions, Boy of the Year, Intermedia, Relativity Media, Virgin Produced
  • Distribuição: Relativity Media
  • País: EUA
  • Ano: 2011




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