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Eddie Morra (Bradley Cooper) quer ser um escritor, mas nunca consegue começar seu livro. Vive maltrapilho em um pequeno apartamento sujo e empilhado de lixo. Enquanto isso, sua ex-esposa (Lindy, Abbie Cornish) é bem sucedida e recentemente promovida ao cargo de editora. Seu cotidiano se arrasta entre bares, ruas e a tela de seu laptop para a qual olha sem conseguir iniciar a primeira linha de seu livro. Um “looser”. Até que um dia encontra nas ruas Vernon (Johnny Whitworth), seu ex-cunhado, que lhe apresenta uma nova droga chamada NZT, capaz de fazer seu usuário ter acesso a 100% das informações do cérebro, indo além dos 20% da média das pessoas.
Após experimentar a droga e ter uma experiência extra-corpórea, tudo na sua mente fica claro e limpo. A matiz da fotografia do filme adquire um tom avermelhado, o ritmo de Eddie fica frenético e é capaz de escreve um livro em quatro dias e aprender línguas em poucas horas. Acessando qualquer fragmento de informação no seu cérebro, é capaz de aprender qualquer coisa e adquirir habilidades que antes ignorava que pudesse ter. Por exemplo, é capaz de em poucos segundos aprender golpes de luta marcial apenas em relembrar imagens fragmentadas dos filmes de Bruce Lee dos anos 70.
Torna-se um mega-cérebro anabolizado, um super-homem da era da informação. Se no livro no qual se baseia o filme (“Dark Fields” de Allan Glyn) temos uma irônica reflexão de uma mudança cultural americana em um país onde figuras como Bill Gates e Steve Jobs são celebradas como novos heróis, o mesmo não acontece na adaptação de “Sem Limites”: o tom torna-se apologético, um elogio às “smart pills” e a toda cultura terapêutica onde o aprimoramento pessoal se baseia na fármaco dependência (prozacs, valiums etc.).
No livro “Dark Fields” o mito do “self mad man” (o homem bem sucedido pelos seu próprios méritos) é desconstruido quando o protagonista reconhece no olhar do presidente dos EUA que ele, também, é consumidor de “smart pills”. Ao contrário, no filme “Sem Limites” vemos a construção de um “neuro-yuppie” onde a droga é um recurso para superar as limitações de uma mente brilhante confinada a um corpo. Essa é, de resto, a grande utopia das neurociências e ciências cognitivas atuais: superar as limitações criadas pelo orgânico através de atalhos eletro-neuro-bio-químicos que libertem o espírito da condição existencial limitante da matéria. A Tecnognose. Voltaremos a esse ponto mais adiante.
O grande problema de “Sem Limites” é que não conseguimos entender o tom da narrativa. O filme começa com imagens recursivas (a câmera avança em linha reta por calçadas de Nova York onde planos interpenetram-se com outros planos num interminável plano-sequência) lembrando o filme “A Origem”. Será que teremos outro complexo filme sobre os labirintos da mente? Depois, ao acessar 100% da capacidade do cérebro, as “smart pills” transformam-se em pílulas de ambição: deixa repentinamente de ser escritor e torna-se um brilhante especulador de Wall Street que descobriu um algoritmo capaz de prever todas as tendências do mercado financeiro. De repente, temos uma espécie de “Wall Street 3: onde o dinheiro nunca dorme”. E, não mais que de repente, o filme transforma-se em thriller de ação e perseguição, quando Eddie descobre que por trás das pílulas de NZT estão narco-traficantes e outros homens poderosos que também são usuários da droga e não aceitam competidores.
De qualquer forma, o tom irônico e reflexivo sugerido no início é superado pela apologia da superação do protagonista e o elogio ao atalho neuro-bio-químico da pílula: de perdedor auto-indulgente transforma-se num vencedor (reconquista sua esposa, torna-se milionário e poderoso e ainda tem a pretensão de se tornar senador e, mais tarde, presidente – o que, como sugere a lógica da narrativa – facilmente conseguirá).
Dos Yuppies da Geração X ao Neuro-yuppies da Geração Y)
A chamada geração X (os filhos da geração “baby boomer” pós-guerra) produziu, nos anos 80 e 90, a sua autoimagem mais bem acabada: o Yuppie. Derivação da sigla YUP (jovem profissional urbano), esses jovens executivos do setor financeiro e de serviços se beneficiaram do crescimento econômico conduzida por políticas neoliberais de desregulamentação e diminuição de impostos nos EUA e Inglaterra. Ao contrário dos hippies do passado, sua ideologia é focada no indivíduo, materialismo (o sonho de juntar seu primeiro milhão de dólares antes dos 30 anos) e na flexibilidade ética e amoralidade.
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"American Psycho", 2010: agressividade, obsessão, impulsividade e frieza nos yuppies dos anos 80-90 |
Diferente disso, o filme “Sem Limites” parece apontar para um novo yuppie, agora na chamada geração Y: o neuro-yuppie. Bill Gates e Steve Jobs são os símbolos para essa geração: ao contrário dos agressivos e amorais yuppies, eles são politicamente corretos (falam em sustentabilidade, criatividade e liberdade), são cientistas da informação e modelos de sucesso baseado no mérito técnico e profissional.
Seu modelo de sucesso está na maneira como processam, manipulam, filtram e classificam as informações. Sobre esse novo paradigma (a da informação computacional) cria-se todo o edifício das neurociências e ciências cognitivas atuais ao eleger o computador como a grande metáfora: cérebro, neurônios e sinapses são traduzidos a partir de um modelo computacional como processadores, memória e disco rígidos (HDs).
Agora, o cérebro é visto como limitado com sua capacidade de sinapses confinada em um corpo. A Tecnognose será o paradigma revolucionário que prometerá a libertação espiritual dos limites do corpo através do aumento da capacidade de acessar poderes ainda desconhecidos da mente. Como já vimos em postagens anteriores (veja links abaixo), esse discurso é um amálgama de ciência com misticismo tecnognóstico na busca de atalhos que permitam essa transcendência final: técnicas de auto-ajuda, modelos simulados do cérebro desenhados a partir de cartografias mentais e, finalmente, as “smart pills”.
Dessa maneira, o filme “Sem Limites” é o elogio desse novo neuro-yuppie. Um modelo de sucesso profissional através da capacidade da manipulação das informações conhecidas e desconhecidas armazenadas no cérebro.
Com isso, o filme “Sem Limites” cumpre um função ideológica: com o protagonista neuro-yuppie Eddie Morra toda a suspeita engenharia financeira de Wall Street é “naturalizada” ou “matematicizada” com a descoberta do algoritmo de sucesso que garante a fortuna de Eddie. Se o documentário “Trabalho Interno” denunciava que todas as fortunas do mercado financeiro provinham de “bolhas” criadas por falcatruas possibilitadas pela desregulamentação e relações promíscuas entre Estado e especuladores, em “Sem Limites”, ao contrário, o sucesso provém de fórmulas matemáticas e a utilização total do cérebro.
É o discurso do “self made man” e da meritocracia retornando, dessa vez, porém, como farsa: não mais originada por uma visão de mundo ético-moral protestante (tal como descrita pelo sociólogo clássico Max Weber sobre as origens do capitalismo) mas, agora, pelos atalhos oferecidos pelas neurociências.
Conhecimento reduzido a estoque aleatório de informação
É emblemático como o filme mostra Eddie Morra manipulando as informações contidas em seu cérebro. O cérebro é mostrado como um reservatório aleatório de informações fragmentadas, soltas, onde tudo é reduzido a um mínimo denominador comum: bytes. Não há diferenças qualitativas entre uma informação do mercado financeiro, a imagem de um golpe de Bruce Lee ou a fórmula estatística infalível para prever os números nas roletas.
Todas as informações se nivelam a uma única função pragmática: estar disponível às demandas de um sujeito que visa performance, poder, desempenho e eficácia. Esvaziadas de qualquer diferença qualitativa e sem qualquer hierarquia de pertinência ou de valores morais ou éticos as informações não se transformam em conhecimento ou sabedoria. Por elas estarem reduzidas a acessos pontuais de acordo com necessidades de curto prazo, Eddie Morra vive um eterno presente. Ele é niilista e hedonista, isso é, sem passado e sem futuro, Eddie é condenado a viver somente o presente.
Concluindo, o filme “Sem Limites” pode ser focado pelos pontos de vista ideológico, cultural e científico. Como ideologia, é um filme de reação de Hollywood aos documentários críticos ao neoliberalismo e as crises financeiras globais (de documentários de Michel Moore ao “Trabalho Interno” de Charles Ferguson); como cultura é um sintoma da chamada Geração Y e a ascendência do neuro-yuppie; e, cientificamente, como mais um filme que expressa esteticamente o que chamamos de “agenda tecnognóstica” do mainstream tecnocientífico atual.
Ficha Técnica
- Título: “Sem Limites” (Limitless)
- Direção: Neil Burger
- Roteiro: Leslie Dixon baseado no livro “Dark Fields” de Alan Gynn
- Elenco: Bradley Cooper, Robert De Niro, Abbie Cornish, Anna Friel, Andrew Howard
- Produtores: Leslie Dixon, Scott Knoopf, Ryan Kavanaugh
- Produção: Many Rivers Productions, Boy of the Year, Intermedia, Relativity Media, Virgin Produced
- Distribuição: Relativity Media
- País: EUA
- Ano: 2011
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