sábado, setembro 17, 2011

Somos Todos Viajantes, Detetives e Estrangeiros


Las Vegas, Área 51 e a Bomba Atômica foram eventos inaugurais da cultura pop irradiada pela indústria do entretenimento para todo o mundo. Emoldurados pela mítica paisagem desolada do deserto de Nevada, foram fatos simbólicos que se transformaram no centro espiritual da cultura contemporânea por representtarem os três protagonistas que melhor expressam a condição humana: o viajante, o detetive e o estrangeiro. 


Esta semana comecei a desenvolver com os alunos em Comunicação Visual da Universidade Anhembi Morumbi o que chamo de “repertório visual por décadas”, procurando resgatar a identidade visual de cada década através do levantamento dos principais ícones que formam a cara de cada período em moda, comportamento, design, capas de discos, filmes, ou seja, a própria cultura pop.

O ponto de partida foi a década de 1950. Resgatando com os alunos a paisagem icônica desse período, começamos a perceber três características recorrentes: a paranoia da guerra fria e o medo da conspiração comunista; a contaminação radioativa geradora de monstros (Godzila, espumas assassinas e formigas gigantes) ao lado da ficção científica mesclada com utopias futuristas; e o sonho da classe média americana em torno da figura do homem bem sucedido não tanto pelo seu talento, mas pelo charme, magnetismo e sex appeal.

Essas três características claramente são expressões visuais de três eventos que, acredito, foram acontecimentos inaugurais da atual cultura pop irradiada pelos EUA para todo o mundo: a institucionalização dos grandes cassinos-hotéis em Las Vegas, o incidente de Rosswell envolvendo um suposto OVNI que foi levado secretamente à Área 51 e as experiências com a bomba atômica.

Mais do que coincidência: todos esses eventos emoldurados pelas desoladas paisagens do Deserto de Nevada. Las Vegas e os hotéis-cassinos, OVNIs e as teorias conspiratórias em torno da Área 51 (mítica área de testes da força aérea dos EUA onde supostamente estão escondidos desde tecnologia alienígena até cadáveres extraterrestres), a bomba atômica e, finalmente, o deserto. Esse conjunto forma a matriz da imagerie pop, o centro espiritual da civilização norte-americana, os novos arquétipos irradiados pela indústria do entretenimento.


Como arquétipos modernos, são, na verdade, atualizações ou novas recorrências de antigos mitos partilhados pelo inconsciente coletivo da espécie. Certa vez o psicanalista Carl G. Jung interpretou a onda de avistamentos de discos voadores a partir do final da Segunda Guerra Mundial como uma tentativa da psique do inconsciente coletivo em encontrar nos céus uma salvação para a época apocalíptica em que vivemos. Para Jung as pessoas sempre olharam para o céu em busca da salvação do perigo. Em tais momentos no passado as pessoas tinham visões de deuses, santos, anjos, etc., que supostamente iriam resgatá-los do desastre. (veja JUNG, Carl G. Discos Voadores: Mito Moderno Sobre Coisas Vistas no Céu, Petrópolis: Vozes).

OVNIs: arquétipos partilhados pelo inconsciente
coletivo da espécie
Mas Jung diz que a ciência moderna tornou as pessoas muito céticas para crer em seres sobrenaturais ou imagens mitológicas tradicionais. Como vivemos em uma era de ciência e tecnologia, nós interpretamos os novos sinais no céu como máquinas de alienígenas provenientes de um mundo com tecnologia mais avançada que a nossa.

Em Jung os arquétipos são símbolos do inconsciente coletivo, símbolos atualizados por diversos meios (misticismo, religião, lendas, mitos até chegar à forma mais mística da publicidade contemporânea) onde são aglutinadas aspirações, desejos e grandes questões metafísicas e existenciais da espécie humana. Vivenciar um arquétipo é se sintonizar nessa rede inconsciente de nem que seja por breves flashs, como num déjà-vu.

Essa é o centro espiritual e verdadeiro do arquétipo que, ao ser instrumentalizado pela indústria do entretenimento, transforma-se em clichê, isto é, numa estrutura repetitiva que fascina pelo seu componente espiritual, mas se dilui na linguagem midiática.

E qual o centro espiritual desses eventos inaugurais que criaram a matriz arquetípica de toda a cultura pop atual?

Viajantes, Detetives e Estrangeiros

Brissac Peixoto em seu livro “Cenários em Ruínas” (São Paulo: Brasiliense, 1987) faz um verdadeiro inventário da imagerie arquetípica cinematográfica de filmes derivados de antigas novelas policias, filme noir, western e literatura de best-seller. Seu objetivo é o de descrever “os três modos de constituição da subjetividade e do mundo na cultura contemporânea” a partir das estórias míticas dos três tipos de protagonistas: o Detetive, o Viajante e o Estrangeiro.

Peixoto observa que esses três personagens são os protagonistas da pós-modernidade. Em suas narrativas aparecem, em geral, como prisioneiros em um universo hostil, estrangeiros dentro do seu próprio país, uma estranha sensação de deslocamento, de não fazer parte de um mundo decadente e corrompido.

"Medo e Delírio em Las Vegas"
(1998): o "Viajante" no cinema
O Viajante é o “man out of nowhere”, aqueles que vêm do nada e partem para lugar nenhum. Não tem passado ou futuro, só direções e orientações. Tudo começa na estrada, no deserto, procuram a imensidão para que possa ficar longe. O imaginário de Las Vegas corresponde a este personagem: lugar de passagem, todos estranhos entre si vindo dos lugares mais distantes em busca da sorte. Cowboys pós-modernos em um mito da fronteira renovado. O filme “Medo e Delírio em Las Vegas” (Fear and Loathing in Las Vegas, 1998) é um bom exemplo de uma narrativa centrada nesse protagonista.

O Detetive é aquele que transforma a sensação de estranhamento com esse mundo em mistério que precisa ser desvendado. O mito da Área 51 e as teorias conspiratórias alimentadas pelas HQs e Hollywood crescem proporcionalmente à sensação do indivíduo em perder o controle do mundo em que vive. Crenças conspiratórias sobre sociedades secretas que dominam o mundo permeiam a mentalidade de uma sociedade atomizada, passiva diante de uma complexidade tecnológica incompreensível que domina o cotidiano.

O Estrangeiro é aquele que não se sente em casa em lugar algum. Procura sempre esquecer o seu passado, sua história, o que é. Passa a maior parte do tempo em silêncio, fechado no seu drama, tenso, crispado. Quieto observa o mundo cair em pedaços. A experiência apocalíptica da bomba atômica vai incendiar esse imaginário apocalíptico de fim de um mundo que, afinal, não nos pertence. A onda de filmes-catástrofes atuais analisada na postagem anterior (veja links abaixo) é um exemplo.

O centro espiritual do arquétipo

Os eventos Las Vegas, Área 51 e Bomba Atômica correspondem, respectivamente, aos personagens Viajante, Detetive e Estrangeiro na imagerie pop pós-moderna. Mas aprendemos com Jung que todo arquétipo tem o seu momento de verdade. Nenhuma explicação unicamente política ou econômica justifica o poder da indústria norte-americana em irradiar para todo o planeta a sua cultura pop centrada nesses eventos inaugurais.

Retirando as camadas de clichês, linguagem estandartizada e repetições, encontramos o núcleo espiritual, o “momento de verdade” (como diria Theodor Adorno) da ideologia pop norte-americana.

A insistente percepção humana de
 estranhamentoe alienação em
relação à existência
A busca pela verdade por esses personagens arquetípicos tal como descrito por Brissac Peixoto corresponde aos três estados alterados de consciência (suspensão, paranóia e melancolia) que possibilitariam a busca pela iluminação (gnose) espiritual apresentados pelos três maiores pensadores do Gnosticismo na História: Basilides, Valentim e Mani. Essa conexão entre esses protagonistas da cultura pop do século XX e a filosofia gnóstica do início da era cristã pode parecer a princípio surpreendente e arbitrária. Isso apenas reflete a condição humana de estranhamento e alienação em relação à existência que permanece a mesma ao longo da História.

Cada um desses pensadores gnósticos propuseram a sua forma de gnose, isto é, formas de retirar a si mesmo das ciladas da realidade material que, simbolicamente, estão contidas na ânsia por verdade desses protagonista pós-modernos: 

  • O Viajante (suspensão): o estado mental de suspensão proposto por Basilides ( o silêncio melancólico) como forma de fugir da prisão da linguagem e do pensamento. As coisas devem ser apreendidas sem a linguagem através das estratégias do lúdico, jogo, paradoxo, ironia. Las Vegas com os seus hotéis-cassinos é a instrumentalização comercial dessa ânsia espiritual pelo jogo e o lúdico como formas de transcendência. Mas o arquétipo aprisionado pela indústria do entretenimento reverte-se em clichê, repetição, vício e auto-destruição;

  • O Detetive (paranóia): Se o iniciado começa a suspeitar de que os objetos ao redor são ilusórios, como, então, poderá discernir entre a sanidade das suas percepções e a insanidade que o mundo pretende rotulá-lo? Como separar o desejo do medo? Através da paranóia. Diferente da estrita concepção narcísica de paranóia – a idéia de que o sujeito tem de que o mundo está focado em uma perseguição contra si próprio – a concepção valentiniana está no limite entre a sanidade e a loucura, através de uma desconfiança radical em relação ao mundo ao redor que está dado.  Vivendo nesta espécie de limbo, corre o risco de cair para um lado ou para o outro: tornar-se irremediavelmente insano ou preparar-se para ocultar-se em uma lúcida loucura habitando um espaço entre a claridade e a instabilidade emocional. As teorias conspiratórias em torno de sociedades secretas, alienígenas e governos invisíveis mundiais alimentados pela indústria do entretenimento capturam esse núcleo espiritual (a paranóia como chave de iluminação espiritual) para, mais uma vez, converter em clichê;

  • O Estrangeiro (melancolia): Rebeldes sem causa, “heroin heroes”, punks gritando “no future”, ácido e música techno em “raves” associadas ao “trance” (transe) com conotações espiritualista ou “new age” são representações midiáticas dessa sensação de alienação, estranhamento e deslocamento em relação ao país, família e amigos. O pensador Mani tematizou a melancolia como a percepção que desafia as tentações conciliadoras e consoladoras como a religião e o hedonismo (a renúncia religiosa ou a busca desenfreada pelo prazer). A sensação de ser estrangeiro e perceber o estranho e o bizarro naquilo que é aparentemente normal e rotineiro é o núcleo espiritual de toda tendência midiática que explora a melancolia adolescente (dark, punk, gótico, emo etc.), talvez o momento da vida onde essa percepção é mais aguçada, até ser domada pelo princípio de realidade adulto.

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