"Os mercados estão derretendo", "fim", "abismo". A lógica midiática da “presunção da catástrofe” é a nova aliada do chamado “capitalismo cassino” para deliberadamente acelerar as oscilações dos mercados como instrumento de criação de novas oportunidades de ganhos especulativos. Até o velho Marx é chamado para decretar o apocalipse. Mas esquecem que ele tem um conceito muito mais radical para denunciar essa ilusão midiática do fim: o "Fetichismo da Mercadoria".
Nesta semana encontrei com um amigo que trabalha no mercado financeiro com títulos de agronegócios. Aproveitando a pauta atual da crise financeira global, não poderia deixar de lhe perguntar sobre como estava convivendo com a perspectiva do “derretimento” dos mercados. “Para mim, nunca esteve melhor”, respondeu para a minha surpresa. Segundo ele, quanto mais o mercado está oscilante, nervoso e tenso, melhor para os seus negócios: “Ganho mais com essas variações”.
“Crise global”, “tempo exausto”, “beira do abismo”, “moratória” são termos que dominam noticiários e textos de analistas, dando a entender que estamos a poucos passos do fim de uma era ou do próprio capitalismo. Karl Marx volta à cena na voz do professor de Economia da Universidade de Nova York, Nouriel Roubini, que há quatro anos teria previsto a crise financeira: “Marx estava certo”, diz ao confirmar o diagnóstico de que contradições internas levariam o capitalismo a crises cíclicas.
Os tumultos urbanos na Inglaterra ainda reforçam esse clima generalizado de catástrofe como o preço final a ser pago pelo neoliberalismo e o capitalismo financeiro desenfreado. Será o fim mesmo? Será que realmente estamos diante de uma “crise”? Ou de uma forma perversa de realização de lucros (ganhos por variações nas cotações) onde a lógica da “presunção da catástrofe” midiática ajuda a criar o clima especulativo ideal para a onda moralista de caça aos “especuladores malvados” que gastariam o bom dinheiro que deveria ser investido na economia real que geraria empregos?
Pois a “presunção da catástrofe” (que é a própria lógica informativa da mídia atual) é a nova aliada do chamado “capitalismo cassino” da financeirização generalizada da sociedade. Forma deliberada de aceleração das oscilações dos mercados como instrumento de criação de novas oportunidades de ganhos especulativos, ao mesmo tempo em que o discurso moralista da ilusão do fim salvaguarda a lógica perversa do jogo ao se buscar os “culpados malvados” de sempre.
Antes de invocarmos apressadamente Karl Marx como faz o “Dr. Catástrofe” Nouriel Roubini, devemos, isso sim, usar Marx para entendermos essa lógica da ilusão do fim através das teses de Robert Kurz e do chamado grupo Krisis na Alemanha: grupo de intelectuais formado em 1986 influenciados pelas ideias de Guy Debord e Theodor Adorno em torno do jornal “Krisis – contribuições para uma crítica à sociedade da mercadoria”.
O conceito mais obscurso de Karl Marx: o Fetichismo da Mercadoria |
As teses apresentada pelo coletivo Krisis formam a visão crítica mais radical da atualidade ao utilizar de Marx o seu conceito mais obscuro e menos explorado pela Teoria Econômica: o Fetichismo da Mercadoria. Obscuro por ter sido mal compreendido ao identificá-lo como mero fenômeno ideológico que se sobrepõe à racionalidade da atividade econômica. Mas, como sugere o coletivo Krisis, e se o fetichismo (feitiço, magia, religião) for o cerne da própria produção de valor no capitalismo? E se tanto trabalho como o capital estiver sob o feitiço da idolatria do “deus-trabalho” e do “deus-capital”, forma de simulação incessante de um sentido que não existe e que submete o homem a uma perversa forma de sociedade?
Marx hegeliano e o Marx “esotérico”
Nesses momentos de crise, Nouriel Roubini e a mídia vão resgatar o Marx hegeliano, que é o que mais se adéqua à visão escatológica do abismo global que está sendo desenhado. Esse é o Marx “exotérico” como afirma Robert Kurz. É a linha argumentativa da historicização, isto é, quando ele aplica a dialética de Hegel à história dos modos de produção como sucessivas etapas que se superam em saltos qualitativos, até o final da história onde o estado de alienação estará terminado quando o homem retomar a sua essência no trabalho dentro do Comunismo. As crises seriam a parte visível de um motor dialético de confrontos e sínteses (“a violência é a parteira da História”), contradições internas que fazem os modos de produção serem superados até o estágio final, a realização plena da Ideia na História.
Mas, a segunda linha argumentativa de Marx , a “esotérica”, é radical: a mistificação real da forma mercadoria e do dinheiro (o fetichismo) através do qual toda a modernidade se desenvolve.
“O tabu absoluto da modernidade, a forma da mercadoria/forma do valor como tais, o dinheiro e com isso a própria forma do sujeito, esta correlação presta-se tão pouco a tema de crítica e superação para a consciência constituída de modo fetichista quanto o mistério para os religiosos. O "modo de produção baseado no valor" (Marx), que traça a sua órbita como um cometa de candência afinal catastrófica, pressupõe cegamente o valor como categoria-fetiche e inflecte toda a reflexão como por si mesma para essa forma, na qual não apenas se age, mas também se pensa.” (KURZ, Robert. O Pós-Marxismo e o Fetiche do Trabalho).
Embora Marx tenha “historicizado” a dialética de Hegel, ao mostrar no livro 1 do “Capital” que a própria produção de valor e mercadoria é feitiço e magia, manteve o esquema metafísico do idealismo hegeliano: a História como apenas o desdobramento do idêntico, a dialética que não libera o diferente, mas o mantém de certa forma aprisionado. Isto é, o Capitalismo e a Modernidade como mais uma forma de religião, dessa vez secularizada. Deus baixou na Terra sob a forma de Dinheiro, Capital, Valor e Trabalho.
O Capital não quer mais a “produção real”
Há muito tempo o capital descobriu que não é mais rentável investir dinheiro na produção real. Desde o crash de 1929 demonstrou-se que o mercado concorrencial e a produção fordista em massa levariam o capitalismo para o ralo. Como Marx afirmava “o capital é uma contradição em processo”: a tecnologização da produção diminui a taxa de mais-valia ao substituir o trabalho vivo pelo morto (máquinas no lugar de operários) o que levaria o Capitalismo para a crise final, como pensava hegelianamente Marx. Mas a fascinação fetichista pelo dinheiro é mais poderosa que qualquer racionalidade econômica.
O impulso dado pelo Estado keynesiniano no New Deal prolongou artificialmente o “boom” fordista. Indo além das suas receitas fiscais, o Estado tomava crédito em enormes proporções para financiar os custos sociais e investimentos de infraestrutura criando uma demanda artificial, pois a economia real não era mais financiável. Emprestar dinheiro a juros ao Estado para ser, depois, reinjetado ao circuito econômico é o início da financeirização do capitalismo e de toda simulação de riqueza.
Quando, em 1971, Richard Nixon rasgou o acordo de Breton Woods e decidiu pelo fim do lastro ouro para o dólar, os EUA lançaram as bases para a incrível liquidez das transações financeiras globais. Por sua vez, na economia “real” as mercadorias tornam-se cada vez mais fetiches na promoção publicitária: consumidas pelo seu valor agregado (design, embalagem, estilo, atitude etc.) e não por um “valor de uso”.
Deus baixou na Terra sob a forma de Dinheiro e Capital |
Mais do que isso, são produzidas por uma força de trabalho cada vez mais reduzida para públicos alvos cada vez mais restritos (sob a égide do “status” e “exclusividade”). Por isso a economia não pode ser “aquecida” (sob o impedimento estrutural da ameaça inflacionária): o dinheiro não pode perder a liquidez dos mercados financeiros para ser injetado na produção não rentável de mercadorias.
Como Robert Kurz afirma, apesar do capitalismo cassino, o mito do pleno emprego ainda se mantém como antídoto moralizante à especulação financeira: o trabalho e os produtos reais tornaram-se dispensáveis. Nem mais consumimos “produtos”, mas agora ideias, palavras e atitudes. Em ambos os lados (na produção e na circulação financeira) já estão presentes o feitiço e a magia.
A declaração do ex-presidente do FED Alan Greespan (“Os Estados Unidos sempre poderão pagar todas as suas dividas, porque sempre poderemos imprimir dinheiro para fazê-lo”) é muito mais do que uma bravata ou piada de mal gosto: é a revelação explícita da natureza fetichista do capitalismo cassino.
Nessa perspectiva, falar em “crise” e “exaustão” do capitalismo é fazer o próprio jogo midiático da promoção de todo um sistema que necessita da adrenalina da ameaça do abismo. O sistema se perpetua através do escândalo moral diante especulação em nome de uma suposta racionalidade da produção e do emprego. No fundo aguardamos por um apocalipse que faça justiça à nossa boa consciência moral.
Como um sistema religioso, a economia fetichista vive da fé e da esperança. Enquanto se mantiverem no horizonte os referenciais moralizantes (produção, pleno emprego, trabalho etc.) como contraponto ao “mundo da especulação” o capitalismo permanece inabalável. Tire a fé e a esperança para todos correrem aos caixas dos bancos para sacarem seus ativos e descobrirem que na verdade “Deus” não existe: não há lastro por trás de tantos papéis. Aí sim, teremos a crise e o abismo reais. O terror da descoberta de que nem trabalho e nem capital jamais produziram valor e riqueza.
Como alerta Robert Kurz, essa ilusão do fim alimentada pela mídia e pela Esquerda apenas reforça os argumentos moralizantes dos “nostálgicos keynesinianos” do “trabalho honrado” e da “produção” como antídotos contra o capital-dinheiro. Para ele, “falta um pequeno passo deste ponto até a remobilização da loucura anti-semita. Apelar ao capital real ‘produtivo’ e ‘de sangue nacional’ contra o capital-dinheiro ‘judaico’, internacional e ‘usurário’”.
Parafraseando Marx, nesse momento, então, a História se repetiria como farsa.
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