quinta-feira, agosto 25, 2022

A masculinidade tóxica e líquida no filme 'Men'


Tradicionalmente inspirada na matriz freudiana do Édipo (inocência, culpa etc.), o gênero do terror nesse século está mexendo em um novo lugar nos porões do inconsciente: a má consciência. Como mostra, por exemplo, o terror racial de Jordan Peele. “Men” (2022), de Alex Garland, dessa vez ingressa no terror de gênero: um conto de fadas sombrio no qual a masculinidade tóxica assume uma forma mutante, informe, amoral numa ordem patriarcal que se tornou “líquida”, na acepção de Zygmunt Baumann. Uma jovem viaja para uma idílica vila rural para se recuperar do trauma da morte do seu marido. Não demora muito para ela descobrir que se colocou no centro de um tipo diferente de trauma. Há algo de errado com este lugar, com essas pessoas, que por acaso são em sua maioria... homens.

A matriz do gênero terror é essencialmente edipiana: dramas envolvendo culpa, incesto, a sedução da inocência, sexo culpado (sadomasoquista), a percepção do corpo fragmentada do corpo pelo infante pré-formação do ego (daí o porquê do fascínio pelos corpos despedaçados, vísceras e sangue no cinema de terror) etc. E, principalmente, o Mal e o Estranho como os nossos próprios impulsos aos quais deveremos renunciar na resolução do Édipo e na entrada ao mundo da Cultura.

Em síntese, os porões do inconsciente da ordem patriarcal no qual se assenta a sociedade judaico-cristã.

Porém, esse século está trazendo uma nova vertente do terror que parece remexer em uma outra parte desse porão do inconsciente: a má consciência coletiva envolvendo o racismo, relacionamentos tóxicos ou abusivos, desigualdades de gêneros etc. Aqui e ali no gênero terror podemos encontrar filmes que já exploraram essa má consciência como, por exemplo, o seminal A Noite dos Mortos Vivos (1968), de George Romero, no qual um protagonista negro tem que lidar com uma horda de zumbis – um forte comentário social numa década de conflitos raciais e a luta pelos direitos civis nos EUA.

Mas nada parecido como nesse século no qual o identitarismo (ou mais genericamente, a “cultura woke”) ganhou hegemonia no mainstream da cultura e indústria do entretenimento. O terror racial de filmes de Jordan Peele como Corra e Nós, a série Them, de Little Marvin, ou o terror de gênero como She Will, de Charlote Colbert, apontam para essa nova vertente do terror que parece abandonar a velha matriz edipiana para focar naquilo que criou essa própria configuração psíquica: a ordem patriarcal.

O filme Men (2022), de Alex Garland (Ex Machina, Aniquilação), é mais uma produção na linha do terror de gênero. Em seus trabalhos anteriores, Garland já tangenciava o tema com ficções científicas de gênero: em Ex Machina, uma andróide chamada Ava que paira como um fantasma entre dois homens em um bunker tecnológico; e em Aniquilação, um sci fi de ação emulando o clássico Stalker com um elenco totalmente feminino.



Dessa vez, Alex Garland volta-se ao terror, porém mantendo os traços das produções anteriores: o artesanato das imagens indeléveis, o ritmo metódico, cinematografia misteriosa e um design de som que criam desde o início uma atmosfera tensa. E. como sempre, com um clímax selvagem quando as coisas finalmente desmoronam.

A princípio Men parece uma poderosa exploração do luto e o árduo caminho de Harper (Jessie Buckley) em sua luta interior para tentar superar o trauma da morte do marido em terríveis circunstâncias que acompanhamos logo na abertura do filme. Ela vai buscar fugir dos fantasmas do passado em um antigo casarão em uma remota vila idílica rural no interior da Inglaterra que faz lembrar o verde luxuriante e florido com estranhas tonalidades azuis do filme Aniquilação.



Mas tudo começa a mudar quando Harper chega àquele casarão cercado de jardins e árvores frutíferas, e pega uma maçã de uma delas e dá uma mordida. O senhorio que a aguarda a repreende em tom ambíguo: “roubando o fruto proibido!”. Para depois dizer que era brincadeira. Uma imagem bíblica que que prepara o espectador para o que está por vir: 

Uma sugestão de que em 2.000 anos de relações homem-mulher nada mudou.

O Filme

Alex Garland cria um conto de fadas sombrio com uma ideia central que será desenvolvida ao pé-da-letra: todos os homens são realmente os mesmos.

Harper é uma sobrevivente de um relacionamento abusivo cujo parceiro, James (Paapa Essiedu), tentou convencê-la a assumir a responsabilidade pelo seu próprio suicídio que acaba cometendo (“você terá que viver com isso em sua consciência”, diz para ela). Esse foi o desenlace de um relacionamento tóxico que deixa profundas marcas.

Depois de guiar quatro horas de Londres para o interior, Harper encontra um ambiente verdejante na “casa de campo dos sonhos”. Da paleta supersaturada da cinematografia de Rob Hardy (campos tão verdes que brilham, flores que aparecem em roxo-azul) aos interiores sangrentos como caixas de chocolate evocados pelo designer de produção Mark Digby, estamos em um mundo de contos de fadas de grandes lobos maus. 



Não demora muito para ela descobrir que se colocou no centro de um tipo diferente de trauma. Há algo de errado com este lugar, com essas pessoas, que por acaso são em sua maioria... homens.

O proprietário da casa, Geoffrey (Rory Kinnear), logo a recepciona com a advertência sobre o “fruto proibido”. Para nos aprofundarmos ainda mais na atmosfera de realismo fantástico, percebemos que estranhamente todos os homens são interpretados pelo mesmo ator: ele é o senhorio, o vigário, o barman, o policial e – em suas formas mais perturbadoras – o perseguidor nu que assombra Harper e o adolescente mal-humorado mascarado. Aliás, o CGI facial daquele garoto parece ser intencionalmente imperfeito para torná-lo ainda mais sombrio do que o resto.

Não importa quem esse homem seja, ele sempre acrescentará mais uma cena na escalada de tensão. Seja sua indiferença, um insulto sexista, um comentário passivo-agressivo ou um ataque agressivo direto, ele continua vindo, cada encarnação mais perigosa que a anterior. Como Harper lida com esses ataques se torna seu próprio inferno pessoal.



O fato de Harper nunca reconhecer as semelhanças entre esses personagens masculinos sinaliza que estamos no campo do realismo fantástico – um artifício dramático que faz todo o sentido. A uniformidade dos personagens masculinos e seus traços (egoístas, controladores, paternalistas, predatórios etc.) é apresentada tanto como uma verdade tanto universal quanto como uma reação pessoal da protagonista. Este é um mundo também visto pelos olhos de Harper, moldado por suas experiências e memórias – um mundo fantástico, mas ainda trazendo em seu conteúdo uma verdade essencial.

Masculinidade líquida – alerta de Spoilers à frente

A representação da toxicidade masculina em Men vai muito além das relações, como acompanhamos em diversos flashbacks que mostram o relacionamento abusivo que sofria com o seu companheiro em Londres. Lembra bastantes o conceito do sociólogo polonês Zygmunt Baumann, “modernidade líquida” – a ideia de “liquidez” como um paradigma mais amplo que sai do mundo hermético dos algoritmos da hiper liquidez dos mercados financeiros para se transformar em um “frame” através do qual todos os eventos podem ser moldados.

A masculinidade multiforme performada pelo ator Rory Kinnear serve de metáfora para essa transformação pós-moderna da ordem patriarcal: não vemos mais o poder propriamente em homens, mas numa masculinidade transmutada em Poder, Capital, Corporação – o policial, o senhorio, o barman etc. são nada mais do que espécimes de um machismo renitente, líquido, sem mais a consistência do velho poder em torno de patriarcas e detentores de um poder sólido ligado à terra, indústria e entesouramento.



E, como sempre em Alex Garland, o ápice será em um final selvagem – no caso, em Men, a própria representação cineteratológica da modernidade líquida de Baumann. Uma masculinidade simbolizada por monstruosidade mole, informe, instável e mutante: um final ao estilo do terror físico de Cronenberg quando vemos uma masculinidade monstruosa que simultaneamente regurgita e da a luz a si mesma em uma espécie de orgia de mutação física.

Uma monstruosidade líquida que define o próprio monstro pós-moderno em que se transformou o machismo renitente: nem bom e nem mau, trata-se de um predador que, do ponto de vista evolutivo, vira uma máquina amoral que luta pela sobrevivência.

Como fala o monstro da masculinidade ferida, tudo que ele quer é apenas ser amado.


 

Ficha Técnica

 

Título: Men

Diretor: Alex Garland

Roteiro: Alex Garland

Elenco:  Jessie Buckley, Rory Kinnear, Paapa Essiedu

Produção: DNA Films

Distribuição: Paris Filmes

Ano: 2022

País: Reino Unido

 

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