“Esta NÃO é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, NÃO é mera coincidência”. Com esse alerta abrasivo começa cada episódio da série da Prime Video “Enxame” (Swarm, 2023), inspirado na cultura da base de fãs da celebridade pop Beyoncé. A “Abelha Rainha” da comunidade de fãs chamada “Colmeia”. No século XX fãs se limitavam a rasgar roupas dos ídolos ou, eventualmente, assassiná-los. Agora vemos a ascensão da chamada “cultura stan” das redes sociais cujas comunidades de fãs geram haters. Que decidem fazer justiça rápida, agindo como um enxame contra qualquer um que sequer sugira ofender a “rainha”. Cada movimento na cultura pop cria seu próprio assassino. Esse é o tema da série de humor negro “Enxame”.
Todo movimento de cultura pop cria seu tipo próprio de assassino. Por exemplo, o assassino de John Lennon, Mark Chapman, foi o divisor de águas que mudou a relação das celebridades com seus fãs em 1980 – a tragédia do ex-beatles revelou que o culto da celebridade era perigosamente ambíguo: fãs não admiram, mas invejam a fama. E são capazes de fazer qualquer coisa para se destacar dos milhões de fãs anônimos. Nem que tenham que matar o próprio ídolo para virar o negativo da celebridade.
O massacre de Aurora (EUA, 2012), protagonizado por um espectador vestido de Coringa dando tiros no interior de um cinema de shopping, que exibiria Batman – O Cavaleiro das Trevas, revelou a angústia cosplay por experiências imersivas gameficadas.
E os haters são os potenciais assassinos do fenômeno pop atual das redes sociais que retorna ao tema da ambígua relação com as celebridades. Como, por exemplo, o assassinato do rapper Rollie Bands em 2022, após desafiar heaters na Internet e pouco depois ser morto a tiros no estacionamento do seu condomínio na Flórida.
A celebridade pop Beyoncé (considerada a “abelha rainha” pela sua base de fãs autodenominada “Beyhives”, união das palavras “Beyoncé” com “hive”, colmeia), por exemplo, na música “Mi Gente”, canta “eu dei luz a haters porque sou fértil”. Não por menos, os chamados “beyhives” prontamente atacam com violência nas redes sociais qualquer pessoa que sugira ameaçar sua “abelha rainha”: seja com críticas, plágios, beijos desnecessários na cantora, supostos elogios que sugiram algum tipo de racismo etc.
Redes sociais oferecem a possibilidade de fazer qualquer tipo de “justiça rápida”: do linchamento virtual ao real.
É esse limite perigoso que a série Enxame (Swarm, 2023), da Prime Video, explora através de uma comédia sombria cujo protagonista é a maior e mais assassina superfã de uma celebridade ao estilo Beyoncé. Uma provocação sangrenta à cultura pop dos co-criadores Janine Nabers e Donald Glover.
Dre (Dominique Fishback) é uma jovem negra disposta tanto a estourar os cartões de crédito para comprar ingressos para shows, quanto está pronta para assassinar trolls online para defender a honra da cantora-celebridade chamada Ni’Jah (Nirine S. Brown) – explicitamente inspirada em Beyoncé. Por isso as palavras de abertura de cada episódio são tão abrasivas: “Esta NÃO é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, NÃO é mera coincidência”.
Dre é uma fanática integrante da comunidade de fãs chamada “Colmeia” que passa a maior tempo no celular monitorando toda e qualquer postagem sobre a “Abelha Rainha”. Uma comunidade que não deixa reféns: qualquer um que ofenda ou faça críticas a Ni’Jah é prontamente atacada por um enxame de intolerância.
Ela é uma jovem que mora em Houston, Texas, vivendo de subempregos, adotada por uma família com relações problemáticas e vivendo com sua irmã. Que igualmente vive de bicos, freelancer como maquiadora de aspirantes a celebridade e com um canal nada promissor no YouTube em que ensina dicas de maquiagem e beleza.
Não demorará muito para a jovem estranha, sociopata encontrar uma expressão para a raiva silenciosa em relação à própria vida: trazer o exame virtual para o mundo real – qualquer desafeto musical de Ni’Jah correrá o risco de ser espancado até a morte com qualquer coisa pesada que esteja por perto: frigideiras de ferro fundido, marretas, kettlebell... às vezes um revólver vem a calhar.
O toque freudiano nesse mergulho na mente dos novos assassinos da cultura pop, é a irônica relação de Dre com a fome – como não poderia deixar de ser, ela é viciada em junk food e torce o nariz para qualquer legume ou alimento verde que esteja à mesa. A cada marretada de vingança, ela sente uma inacreditável fome. Assaltando a geladeira das vítimas, enquanto se lambuza com tortas, salgadinhos e sangue.
Enxame faz uma curiosa conexão entre sociedade de consumo dos shoppings, cultura pop, compulsão oral, consumismo e a cultura das celebridades. Cultuamos celebridades como se quiséssemos devorá-las. Por isso o culto a celebridades parece estar tão próximo de mortes e assassinatos.
A Série
Swarm conta a história de uma jovem chamada Andrea “Dre” Greene, que, como inúmeras outras pessoas no mundo, pensa no artista multiplatinada Ni'Jah como a segunda vinda de Cristo ou a mais próxima coisa disso. Para Dre e sua irmã Marissa (Chloe Bailey), Ni'Jah não é apenas uma cantora e dançarina cujas apresentações lotam estádios em todo o mundo - ela é uma fonte da arte que ajudou a moldar suas identidades quando jovens descobrindo a música.
Mas depois de anos sendo capazes de se relacionar com o amor compartilhado pela música de Ni'Jah e uma página de fãs no Twitter (a “Colmeia”) dedicada a sua cantora favorita, Enxame começa em um momento da vida das irmãs em que fica claro que sua proximidade com a base de fãs não foi exatamente saudável para elas.
Dre é errática, com tendência sociopata, subempregada em quiosques num shopping center local. Enquanto Melissa é um pouco mai ajustada, que explode ao ver a irmã gastar o que não tem para comprar os caros ingressos de um show de Ni’Jah. Atrasando o aluguel. É a gota d’água para Melissa sair de casa, fazendo Dre entrar numa espiral descendente.
É quando Enxame cai na realidade e mostra Dre com uma pessoa perigosa e que precisa desesperadamente de aconselhamento profissional.
Até certo ponto, a primeira vez que Dre mata alguém por desrespeitar Ni'Jah somos pegos de surpresa pela gratuidade de tudo: o quão objetivamente é desequilibrado matar uma pessoa por causa de uma estrela pop. Mas conforme a história de Enxame se desenrola nos sete episódios da temporada, o programa tenta deixar claro que a escuridão dentro de Dre é muito mais complicada do que ela ser uma assassina em série que por acaso gosta de uma das cantoras mais populares do mundo.
Em primeiro lugar a série claramente é inspirado na cultura fandom dos seguidores de Beyoncé organizados em torno do “Beyhive”. Uma crítica social de como as mulheres negras, ao invés de desconstruírem a “cultura stan” (fãs obsessivos dos meios digitais, bem diferentes dos tempos em que eles se limitavam a rasgar a roupa dos ídolos) criada pela indústria do entretenimento, a replicam de forma acrítica.
Enxame faz uma interessante conexão freudiana entre a sociopatia de Dre, sua compulsão oral por junk food e o desejo profundo de “comer” Ni’Jah.
Na metade da temporada, a série faz referência direta a um episódio em que Beyoncé teria sido mordida em uma festa descolada com artistas do mundo musical. Depois de uma série de causalidades, Dre acaba dentro de uma festa em que está presente a “Abelha Rainha”. Seu impulso será a de conseguir a comunhão definitiva com o ídolo: mordendo sua carne.
A fome por junk food ronda a protagonista, a cada assassinato. É explícito o mecanismo arquetípico presente na cultura das celebridades, um mecanismo religioso secularizado.
“Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne. Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como pode este dar-nos a comer a sua própria carne? Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos”, diz os versículos 51-71 do Evangelho Segundo João.
Assim como a Igreja Católica instrumentalizou as imagens para fins de propaganda, transformando o ritual da missa num evento icônico, também a cultura das celebridades coloca a imagem como o centro: a imagem do objeto desejado (a fama como a vida eterna) e a aspiração em deixar o anonimato, de também tornar-se imortal numa comunhão final com a celebridade, a figura secularizada de Jesus.
Apesar da pós-modernidade da cultura stan dissecada pela série, Enxame ecoa as teses sociológicas clássicas de David Riesman (“A Multidão Solitária”) e Theodor Adorno (“Educação após Auschwitz”). Do insight de Adorno de que na massa “todos se sentem mal-amados” à tese de Riesman de que na massa solitária todos querem ser amados, tornando-se “alter-dirigidos” (resignados à suposta maioria para ser amado por elas), a personagem Dre revela todos esses traços: Ni’jah é o único vínculo que tem para tentar ser amada por todos – leia ADORNO, Theodor. “Educação após Auschwitz” In: COHN, Gabriel (org.) Theodor Adorno, Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo, Ática, 1988 e RIESMAN, David. A Multidão Solitária, Perspectiva, 1995.
Mas na série essa questão é potencializada: os protagonistas são negros e, portanto, duplamente condenados a exponenciar esse problema intrínseco à sociedade de massas – negros são condenados ao racismo e à invisibilidade... condições que, ao final, só colaboram com a invisibilidade dos crimes seriais de Dre.
Ficha Técnica |
Título: Enxame (série) |
Direção: Donald Glover e Janine Nabers |
Roteiro: Donald Glover |
Elenco: Dominique Fishback, Chloe Bailey, Nirine S. Brown, Karen Rodriguez |
Produção: Amazon Studios, Big Indie Pictures |
Distribuição: Amazon Prime Video |
Ano: 2023 |
País: EUA |