sexta-feira, março 07, 2025

A inteligência artificial demasiado humana na minissérie 'Cassandra'


À primeira vista, parece mais do mesmo. Apenas com um toque estilístico retrô. A casa inteligente mais antiga da Alemanha desperta sua IA dos anos 1970, Cassandra, depois de décadas, quando uma nova família se muda para lá. Ela realiza todas aquelas tarefas irritantes e mesquinhas - lavar a roupa, cortar a grama, preparar o café da manhã - mas as coisas parecem sinistras quando descobrimos que Cassandra possui uma agenda secreta. Esta é a minissérie alemã Netflix “Cassandra” (2025), que parece repetir o velho clichê das máquinas na ficção: depois de esotericamente adquirirem poderes sobrenaturais, veem humanos como seres descartáveis. Mas “Cassandra” vai muito além: quem codifica inteligências artificiais são humanos, que codifica nos algoritmos suas próprias mazelas, pessoais e de classe. “Cassandra” revela uma oportuna narrativa anti-fetichismo tecnológico – a tecnologia digital nada mais seria do que o demasiado humano amplificado em dimensões perversas e disfuncionais.

No final do século passado, a grande ansiedade coletiva em relação à tecnologia era o crescimento da realidade virtual: será que substituirá a realidade atual? Ou não perceberemos quando isso ocorrer? Ou o que é pior: nem perceberemos essa substituição como um problema, jogando na lata de lixo séculos de esforço da Filosofia para entender o que é o Ser.

Hoje há uma outra ansiedade tecnológica, com o domínio da Inteligência Artificial sobre a humanidade: Os empregos desaparecerão porque a IA nos tornou redundantes? A arte como a conhecemos (por humanos) deixará de existir? Em breve nos pedirão para dobrar o joelho para nossos senhores robôs? A IA alcançará o ponto da Singularidade que acabará senciente e autônoma, tornando a humanidade dispensável?

Mas a Filosofia tem uma arma de defesa ao circunscrever esse fenômeno recorrente como um traço demasiado humano: as noções de projeção ou inversão fetichista.

Por exemplo, Ludwig Feuerbach (1804-1872) acreditava que o Deus das religiões deístas nada mais era do que uma projeção humana. Com efeito, as diferenças entre os deuses são diferenças entre os homens, diferenças entre essência e existência. 

Já Karl Marx (1818-1883) deu continuidade a essa tese, colocando em termos materialistas: a ideia de Deus não passa de uma projeção do homem, e assim a religião nada mais seria que produção e alienação do homem. O mecanismo projetivo de Deus estaria no núcleo do próprio Capitalismo – criações humanas como capital, dinheiro e mercadoria ganham uma vida fantasmática própria, fetiches diante dos quais temos uma relação alienante. Expressando a alienação do mundo de trabalho explorador e da luta de classes.

A minissérie alemã Netflix Cassandra (2025) é mais uma produção audiovisual que explora essa ansiedade coletiva. Dessa vez, uma casa inteligente governada por uma IA que dá o nome à produção - ela pode realizar todas aquelas tarefas irritantes e mesquinhas - lavar a roupa, cortar a grama, preparar o café da manhã - mas as coisas parecem sinistras quando descobrimos que Cassandra possui uma agenda secreta. Cuja família descobrirá da pior maneira.



Cassandra pode parecer mais do mesmo, e até lembrar um filme distópico dos anos 1970 chamado Geração Proteus (Demond Seed, 1977) que também mostra como não termina bem a história de IAs comandarem casas inteligentes – porque elas acabam achando que os humanos residentes não passam de passarinhos em uma gaiola tecnológica.

Não! A minissérie vai além desse aspecto mais sensacionalista do homem X máquina para discutir a própria ontologia dos códigos da IA – algoritmos não passam de opiniões codificadas. Lembrando a tese de Feuerbach, a IA projeta intenções, motivações e disposições do seu criador. Nenhuma “singularidade” ou qualquer fenômeno tecnológico esotérico criará uma “alma” tecnológica que torcerá o nariz para o seu criador considerado inferior.

É quando a minissérie Cassandra se torna um thriller psicológico. O mistério em torno da gênese de Cassandra está perdido nos anos 1960-70. Uma família inadvertidamente adquire uma casa que é um tesouro tecnológico retrô ao descobrirem uma IA há décadas desativada.

Aproximadamente metade da série se desenrola em flashbacks explicando as origens de Cassandra e o destino de seu avatar humano, uma mulher dos anos 1970 com o mesmo nome que escolhe seu estilo de vida de ficar em casa em vez de uma carreira profissional. Ela afirma que a maternidade e a domesticidade satisfazem suas próprias necessidades.  

Em seus algoritmos estão codificados seu mecanismo psíquico de defesa da negação – não importa o que aconteça (traições conjugais, indiferença paterna, sexismo, misoginia etc.), a casa tem que funcionar sob o calor maternal e o cuidado com a prole. Indiferença estoica da “rainha do lar” que, revivido décadas depois, pode se tornar em algo asfixiantemente mortal.

Mas como a personalidade de uma frustrada dona-de-casa humana se tornou imortal no interior de uma IA retrô, numa espécie de pesadelo tecnognóstico – décadas atrás, um obscuro laboratório de pesquisas tecnomédicas conseguiu fazer o upload final de uma consciência.

Esse é o mistério da minissérie em seis episódios Cassandra.



A Minissérie

Cassandra segue as experiências da família Prill, que, após uma tragédia doméstica, se muda da cidade para o campo. A nova casa deles vem equipada com Cassandra, uma relíquia doméstica 'inteligente' dos anos 70. A casa foi abandonada por anos, deixando Cassandra sozinha. Um protótipo de IA senciente, a criatura de serviço tem uma tela no lugar de uma cabeça e um corpo de robô assustador. Mas é onisciente: há uma tela em cada cômodo através da qual observa e interage. 

Ela está em êxtase com a nova companhia e, a princípio, a família gosta de ter Cassandra cozinhando o jantar e cantando para eles pela manhã. Mas logo fica claro que Cassandra está determinada a nunca mais ser deixada sozinha - a ponto de considerar eliminar a matriarca dos Prill, Samira, interpretada por Mina Tander.

A série equilibra cuidadosamente a história dos Prills com o drama por trás das origens de Cassandra. 

Cassandra viveu com seu marido e filho no início dos anos 70. Seu marido trabalhava em um laboratório misterioso (e tinha casos extraconjugais) enquanto seu filho é intimidado pelos valentões de seu time de futebol. Cassandra reconhece que seu filho não é como os outros meninos – para os anos 1970, ele seria “afeminado”. Ela faz o seu melhor para amá-lo, mas é limitada pela sensibilidade machista de seu marido. Ela fará qualquer coisa para estar lá para seu filho (literalmente qualquer coisa que descobriremos mais tarde), mas ela não necessariamente faz o que é melhor para ele. 

Lavinia Wilson, que interpreta Cassandra em sua forma robótica e humana, dá uma performance de destaque, delineando as emoções muito humanas de Cassandra, sentimentos que eventualmente a transformam em um monstro. O desempenho de Wilson dá à série um poder dramático considerável: sua Cassandra multicamadas se torna uma caricatura misógina.

Cassandra, a humana, e Cassandra, a IA, fazem escolhas egoístas e horrivelmente arrepiantes que mergulham no horror total de uma necessidade esmagadora de embotar sua tristeza penetrante e preencher um vazio emocional irreparável.



É quando chegamos à segunda metade da minissérie, que explode completamente o thriller psicológico embarcando numa história mais brutal imaginável. A série fica progressivamente mais escura, evoluindo do tecno horror psicológico para o câncer, suicídio, tiroteios, pais tóxicos, complicações no nascimento, tortura infantil, assassinato, paranoia de vigilância, situações de reféns e gaslighting manipulador. À medida que o show continua, Cassandra fica extremamente sombria e perturbadora.

O olhar alemão na Netflix

Nos últimos anos acompanhamos um aumento nos originais da Netflix em alemão - o thriller de ficção científica aclamado pela crítica Dark deu três temporadas, e The Empress foi recentemente renovado para uma próxima terceira temporada. 

Quanto aos filmes, a Netflix fez uma parceria com a Rat Pack Filmproduktion para produzir o sucesso Blood Red Sky, um thriller de ação sobre vampiros, e o subestimado épico de ação da Segunda Guerra Mundial de 2023, Blood & Gold




Esta mais nova série limitada da Netflix da Alemanha, Cassandra, também vem do Rat Pack, bem como do escritor e diretor Benjamin Gutsche.

Cassandra reflete esse traço recorrente das produções alemãs: a princípio parecem emular os temas de sucesso hollywoodianos. Num primeiro, parece mais uma reflexão batida sobre homem X máquina – como máquinas esotericamente ganham poderes autônomos e inteligência perversa. Uma inteligência maligna porque, sabemos, máquinas não têm emoções, ética e moralidade como os seres humanos.

Mas Cassandra vai além desse clichê: quem codifica inteligências artificiais são humanos, que codifica nos algoritmos suas próprias mazelas, pessoais e de classe.

Máquinas não são más por quererem descartar humanos. É o capital e a burguesia que usam algoritmos para maximizar lucro e dominação com o desemprego e o controle sobre a força de trabalho. Assim como a brutal conspiração da IA contra os Prills na minissérie é a negação psíquica e maternidade doentia da versão humana de Cassandra exponenciada pela tecnologia. 

Cassandra revela uma oportuna narrativa anti-fetichismo tecnológico – a tecnologia digital nada mais seria do que o demasiado humano amplificado em dimensões perversas e disfuncionais.


 

Ficha Técnica

Título: Cassandra

Criadores: Benjamin Gutsche, Sina Flammang

Roteiro: Benjamin Gutsche, Sina Flammang

Elenco:  Lavinia Wilson, Mina Tander, Franz Hartwig, Filip Schnack

Produção: Rat Pack Filmproduktion

Distribuição: Netflix

Ano: 2025

País: Alemanha

 

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