sexta-feira, fevereiro 09, 2024

A filosofia e geopolítica da inteligência artificial em 'Resistência'


Narrativas sobre inteligência artificial, robôs e replicantes nunca terminam bem no cinema. Principalmente com o discurso do Capitalismo High Tech Distópico de Elon Musk que inspira nove em cada dez roteiros sci-fi atuais. Mas “Resistência” (The Creator, 2023) é essa exceção, indo para além do maniqueísmo homem X máquina. O olhar do filme é tanto filosófico quanto geopolítico. Um soldado é recrutado para localizar e matar o Criador - misterioso arquiteto responsável por desenvolver uma arma capaz de acabar com um confronto mundial em que o Ocidente declarou guerra a toda forma de IA. Principalmente a IA da “Nova Ásia”: diferente do pensamento dualista ocidental, a nova IA oriental quer ser livre ao lado dos humanos. Entrando num embate militar com os EUA, um império decadente em 2070. “Resistência” ecoa o atual conflito EUA vs. China.

Desde o supercomputador HAL 9000, do clássico 2001: Uma Odisseia no Espaço de Kubrick (aquele que decidiu matar toda a tripulação porque considerou o ser humano dispensável na missão da nave alcançar uma das luas de Júpiter), parece que nada de bom no cinema pode vir de uma Inteligência Artificial.

No século XXI a coisa só piorou com o paradigma do pós-humanismo em filmes como The Machine (2013), Transcendence (2014), Lucy (2014) ou Upgrade (2018). Essa onda recente de filmes pareceu apenas repercutir o recente discurso “Capitalismo High Tech Distópico” de membros da elite virtual como Elon Musk – de que, embora os algoritimos e a arquitetura software e hardware seja um projeto da própria elite, temem que a IA saia do controle e decida arbitrariamente destruir a humanidade.

Só nos restaria duas alternativas à humanidade: passar para o lado dos vitoriosos eletrônicos, fazendo um upload da consciência para a nuvem; ou fugindo para alguma colônia lunar ou marciana – claro, dentro dos foguetes da SpaceX de Musk.

Talvez por isso, a tendência atual dos filmes sci-fi é se inspirar em vídeo games, uma história em quadrinhos ou num filme que o espectador já assistiu. Mas o filme Resistência (The Creator, 2023) é um épico de ficção científica fora da curva, embora haja ecos de O Exterminador do Futuro, Blade Runner ou mesmo Star Wars

Concebido e dirigido pelo britânico Gareth Edwards (Monsters, Godzilla, Star Wars – Rogue One), é uma concepção totalmente original dentro do gênero: para começar, o clássico conflito entre homem/máquina é substituído pela “resistência” – Inteligência Artificial e humanos se unem para resistir não a qualquer invasão alienígena ou inteligência extraterrestre. Mas resistir a um inimigo bem terreno: as forças do império militar norte-americano, que reagem a sua própria decadência geopolítica com uma guerra mundial. 

Uma guerra contra o mundo oriental, cujo pensamento milenar fluido e holístico (diferente dos dualismos do pensamento ocidental) concebeu uma IA que se integra organicamente aos seres humanos. Para os EUA não é mais uma guerra ao terror islâmico, mas contra a IA. Cujo ponto de partida foi uma espécie de ponto zero de um novo 11/9, o apocalipse de Los Angeles supostamente perpetrado por uma IA.




Resistência um filme tão distinto em sua construção do mundo, sua estética e sua abordagem inesperada dos tropos comuns que se torna um exemplo definitivo do gênero. Filmes como o Distrito 9 de Neill Blomkamp ou a obra-prima distópica de Alfonso Cuarón, Filhos da Esperança são referências desse filme, ou mesmo parâmetros através dos quais a ficção científica subsequente foi julgada.

Num cenário imersivo e elaboradamente detalhado com sua própria paleta visual e conceitual únicas, Resistência deliberadamente induz o espectador ao erro no primeiro ato, com uma história aparentemente familiar. Para depois distorcer nossas percepções, fazendo com que o público questione seus próprios clichês sobre o tema. 

O que está sendo colocado em xeque em Resistência é o pensamento dualista ocidental cuja trajetória na Filosofia foi a reconstrução da metafísica grega a partir de uma sintaxe mais rigorosa e forte investimento em lógica, separando o pensamento e o indivíduo do Ente, da realidade. Os termos do pensamento e da linguagem se tornam puros símbolos intransitivos que apenas se relacionam entre si, sem se preocupar com a realidade subjacente. 

O código binário da cultura digital e os algoritmos que rotinizam o cotidiano são o ápice dessa jornada filosófica ocidental. Porém, uma outra lógica evolutiva da lógica e linguagem é possível. Não mais baseada na metafísica aristotélica. Mas num paradigma baseado na fluidez, movimento, onde o dualismo ocidental se perde.

Mas um império em decadência como o dos EUA em 2070 não pode conceber um modelo maquínico fora do dualismo homem vs. máquina.



O Filme

Resistência abre com uma introdução elegante sobre as origens do cenário das hostilidades humanas contra a IA - uma jornada que começa com anúncios ensolarados e falsos dos anos 1950 para ajudantes robôs e um futuro ao estilo “Os Jetsons”. E termina com imagens da radiação resultante de um ataque nuclear desencadeado pela IA em Los Angeles.  

Até aqui nada de novo, dentro dos parâmetros do Capitalismo High Tech de Elon Musk: as máquinas se revoltaram, fazendo os EUA declarar guerra a todas as formas de IA, com tons de sistema de casta homem-robô ao estilo Blade Runner, só que levado ao extremo destrutivo.

As coisas começam a mudar quando encontramos o ex-soldado Joshua (John David Washington) pela primeira vez. Ele parece afastado de tudo isso. É um marido amoroso com uma esposa em gravidez avançada, Maya (Gemma Chan). 

No entanto, sua casa, uma cabana rústica à beira-mar em um canto isolado da “Nova Ásia” (as cenas do filme foram predominantemente filmadas na Tailândia), está iminentemente sob ameaça, presa no que parece ser o fogo cruzado de um ataque americano. Mísseis são explodidos de uma nave orbital de batalha genocida sinistra conhecida como USS Nomad, uma verdadeira “Estrela da Morte” de Darth Vader – a equipe de design de som conseguiu criar um estrondo apocalíptico mais arrepiante desde a invasão alienígena dos Tripods em Guerra dos Mundos de Steven Spielberg.

Mas quando Joshua implora através do dispositivo de comunicação de um fuzileiro naval ferido que o USS Nomad pare o ataque, ficamos sabendo que ele tem um envolvimento não declarado com uma operação secreta dos EUA: ele faz parte de uma missão de localizar Nirmata – uma misteriosa criadora de uma nova geração de IA avançada. 



Uma bomba atinge um barco no qual Maya estava tentando escapar, deixando Joshua sozinho com sua dor e culpa.

Enquanto as entidades de IA do Nirmata - variando de robôs a androides humanoides de bioengenharia - coexistem pacificamente com humanos na chamada “Nova Ásia”, os EUA declararam guerra a todas as formas de IA. Tal como o governo Bush teve a carta branca decorrente dos ataques de 2001 para declarar guerra ao terrorismo islâmico, também em Resistência a destruição nuclear de Los Angeles foi o 11/9 para os EUA declararem guerra à Nova Ásia. 

Como sempre, os EUA alegam que querem apenas destruir as IA de Nirmata. Mas, os “efeitos colaterais” dos bombardeios do ciclópico USS Nomad atingem indiscriminadamente a todos, homens e máquinas.

Os militares americanos temem na verdade a nova geração das IAs, personificado em uma menina concebida a partir do feto biológico de Maya – Alphie (Madeleine Yuna Voyles), a primeira criança robótica orgânica, que aprende e cresce como um ser humano. Uma geração poderosa, capaz de acabar com todas as guerras.

Aqui, Resistência repete um tropo do gênero: Alphie tem um rosto doce e temperamento constante. É um bebê Yoda. A criatura adorável e toda poderosa que pode salvar a humanidade. Ela é Ellie de The Last of Us; John Connor de O Exterminador do Futuro; é também a garota de Midnight Special de Jeff Nichols... e quem sabe, até o pequeno E.T. de Spielberg.



Porém, a novidade de Resistência é que a IA não é mais o vilão da humanidade. É apenas para o Ocidente que virou Anti-IA. Numa suspeita explosão de Los Angeles, envolto numa aura de false flag para os orientais – a certa altura, um dos “simulantes” (um tipo de androide que convive em paz com humanos) diz que o erro foi introduzido propositalmente nos algoritmos do sistema de defesa dos EUA, para a IA voltar-se contra a própria nação que deveria defender.

Porém, a abordagem do criador Nirmata é totalmente diferente do Ocidente: enquanto a lógica binária ocidental está fundamentada na noção de “sentido” (aquilo que é útil, aquilo que é racional dentro de um sistema fechado – e, por isso, sempre em guerra com aquilo que está fora do sistema), a IA da Nova Ásia não é um sistema lógico fechado, mas fluido e aberto ao orgânico num paradigma colaborativo.

E a pequena Alphie é a pequena bomba algorítmica que deve ser colocada dentro da “Estrela da Morte” USS Nomad para acabar com todas as guerras... ecos de Star Wars?

Mas há também uma crítica geopolítica de fundo em Resistência: a mudança das cadeias produtivas da Globalização transformou a Ásia na fábrica do planeta – em consequência, as novas linhas de montagem asiáticas conseguiram emular e transformar a tecnologia Ocidental em outra coisa mais avançada e imprevisível. 

Afinal, não seria essa a essência do conflito geopolítico entre EUA e China? 


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Resistência

Diretor: Gareth Edwards

Roteiro:  Gareth Edwards, Chris Weitz

Elenco: John David Washington, Madeleine Yuna Voyles, Gemma Chan

Produção: 20th Century Fox, New regency Productions

Distribuição: Hulu

Ano: 2023

País: EUA

 

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