sexta-feira, junho 30, 2023

Na série 'Mrs. Davis' a vida com algoritmos é um gigantesco "McGuffin"


Durante séculos os seres humanos permitiram que aspectos vitais da sua vida fossem impulsionados e organizados pela religião. Mas o que aconteceria se algoritmos e a inteligência artificial passassem a ter esse mesmo tipo de poder de moldar o mundo? A vida se tornaria um gigantesco “McGuffin” - dispositivo narrativo na forma de algum objetivo ou objeto desejado que o protagonista persegue sem nenhuma explicação narrativa ou importância. Essa é a série cômica “Mrs. Davis” (2023- ): uma IA torna-se o tecido da vida cotidiana. Mas uma freira acha que há algo errado com algo tão onisciente e onipresente – seria como adorar um falso Deus. E planeja desligá-la, após encontrar o Santo Graal. “Mrs. Davis” é a série mais comicamente niilista da temporada: e se religião e tecnologia forem a mesma coisa?

Tecnologia e fé são os pilares da civilização. Com a primeira, a humanidade transcendeu a Natureza e a transformou em objeto na rede simbólica da cultura; e com a segunda, a humanidade quer transcender a si mesma: que ela não está só e que tudo nesse cosmos deve servir para algum propósito.

Desde que a tecnologia deixou o seu estágio antropocêntrico (como ferramentas que funcionam como extensões do corpo humano) e passou a se desenvolver dentro do paradigma do pós-humano (prometendo a superação das âncora do real – finitude, temporalidade e senso de fragilidade corporal), progressivamente a tecnociência começou a substituir a fé. Virando quase uma religião institucionalizada cuja sede seria o Vale do Silício. 

A crença na singularidade seria o estágio final tecnognóstico da humanidade: alcançar a imortalidade através de um upload final da consciência, não para o céu divino, mas para o paraíso de silício dos bites de informação. 

Começou com a realidade virtual nos anos 1990. Hoje, através da panaceia dos algoritmos da inteligência artificial.

Claro que essa promessa de imortalidade sempre foi para minorias – por exemplo, como os corpos embalsamados para elite ou múmias depositadas em pirâmides apenas para faraós e sua corte. Para as massas, a imortalidade via religião, por meio da obediência e medo.

Porém, a série Mrs. Davis (2023- ) coloca o tema do pós-humano, em particular algoritmos e IA, em outros termos. Durante séculos, os seres humanos permitiram que aspectos vitais da sua vida fossem impulsionados e organizados pela religião. Mas o que aconteceria se a tecnologia passasse a ter esse mesmo tipo de poder de moldar o mundo?

Para a série Mrs. Davis, criada por Damon Lindelof (Lost) e Tara Hernandez (Big Bang Theory), seria como se a tecnociência se vingasse a religião depois de todo o boicote que Deus impingiu contra as pretensões humanas de tornar-se um deus em seu próprio território.

E uma IA onipresente e onisciente transformou a humanidade em cidadãos digitais, enquanto Deus virou uma espécie de chefe de cozinha atrás de uma porta de cozinha, e Jesus um balconista que serve clientes em um pequeno restaurante. Esquecidos em um mundo onde todos estão on line com a IA chamada “Mrs. Davis” (ou também, “Mum”, “Madonna” e “Mamá”) através de celulares ou ponto eletrônico colocado no ouvido.



A "Sra. Davis" no centro do show é uma inteligência artificial semelhante à Siri ou Alexa que conquista o mundo e que aparentemente resolveu todos os problemas humanos em troca de apenas um pouco de fidelidade eterna. Assim como era com Deus no passado. A antagonista da Sra. Davis é uma freira! Interpretada por Betty Gilpi, a irmã Simone tem um passado misterioso, um presente ainda mais misterioso e, presumivelmente, um futuro ainda muito misterioso.

Como se uma freira lutando contra uma I.A. todo-poderosa não fosse suficiente, Mrs. Davis também mistura mais alguns ingredientes estranhos em um mix cósmico, como um tom inesperadamente de humor slapstick, com perseguições alucinadas, cenas satíricas e uma enxurrada de alusões a mitos e arquétipos da cultura pop – como, por exemplo, shows de mágica ao estilo de Las Vegas e até mesmo uma busca antiquada pelo próprio Santo Graal.

A curiosidade nessa série é que a IA protagonista contradiz a tese do agente Smith na trilogia Matrix – como os leitores devem estar lembrados, segundo o agente Smith, a primeira versão da Matrix colocava os humanos em um mundo idílico sem quaisquer problemas do mundo real anterior. Mas não deu certo – apenas com a dor e sofrimento a humanidade produzia a energia necessária para as máquinas.

Talvez pelo fato da IA “Senhora Davis” ser uma machine learning, ela quer satisfazer 100% os usuários. A pegadinha é que ela passa a conhecer tanto as pessoas, mais do que elas mesmas, que acaba antecipando seus desejos. E transforma a vida num acúmulo de clichês e “mcguffins” – dispositivo narrativo na forma de algum objetivo ou objeto desejado que o protagonista persegue sem nenhuma explicação narrativa ou importância na trama geral.



A série

Entre a tecnologia e a religião, a série coloca mais um elemento: a mágica. Logo no início, Simone aparece impedindo que um grupo de mágicos dê um golpe em uma vítima que cai na velha isca de uma mulher atraente. Cena simbólica e definidora do papel de Simone nesse mundo: pessoas que usam artifícios e truques que diminuem a importância da fé neste mundo.

A ironia é que seus pais eram mágicos em shows de Las Vegas, até se “casar” com Jesus – sim! Aquele balconista cujo Pai permanece invisível atrás da porta da cozinha. Ela vira freira, com a missão de desmascarar o maior truque de todos: a IA “Senhora Davis” que moldou definitivamente a vida das pessoas – e todos parecem estar plenamente satisfeitos com isso.

Porém, Sra. Davis tem planos para a freira Simone: encontrar o “Cálice Sagrado”. A IA a convence a aceitar a missão de uma forma violenta – com a ajuda de seus capangas, destrói o convento da irmandade e mata suas companheiras.

Simone aceita a missão com uma condição, prontamente aceita pela IA (afinal, ela é uma machine learning que tem como escopo a satisfação total do usuário): se ela encontrar o Santo Graal, Simone puxará o fio da tomada da “Sra. Davis”, livrando o mundo dos seus algoritmos. 



Isso é apenas a ponta de um iceberg narrativo que é quase impossível de ser resumido. Ainda nem cheguamos ao cowboy chamado Wiley (Jake McDorman), o ex-namorado da infância de Simone que lidera um grupo de homens musculosos que emula filmes de ação e que formam uma resistência contra a IA “Sra. Davis”. Ou ainda os pais da Simone. Seu pai (David Arquette) era um mágico que morreu fazendo um truque impossível, e a sua mãe (Elizabeth Marvel), é uma especialista em segurança que acredita que seu marido não morreu verdadeiramente – afinal, é um mágico! E a maior parte da trama é impulsionada por Simone tentando colocar as mãos no Santo Graal.

A vida é um “McGuffin” - alerta de spoilers à frente

O que mais impressiona e no que os usuários foram transformados pela “Sra. Davis”. Como os algoritmos antecipam tudo o que os usuários desejam, as pessoas e o cotidiano se transformam num acúmulo gigantesco de clichês. Todos parecem personagens estereotipados e seus propósitos existenciais verdadeiros “McGuffins”.

Para começar o maior clichê McGuffin de todos: a busca do cálice sagrado. Por isso a narrativa é propositalmente um conjunto exaustivo de ideias mal amarradas. Um conjunto aleatório de “deus ex-machina” - termo para designar soluções arbitrárias, improváveis, sem nexo ou plausibilidade na narrativa, para solucionar becos sem saídas em roteiros malconduzidos.

A “Sra. Davis” parece ser uma força para o bem, especialmente em como o algoritmo incentiva atos de bondade para dar aos usuários “asas” (visíveis em realidade aumentada por meio dos celulares) que os identifiquem como pessoas decentes. Mas Simone sabe que há algo errado com um IA tão poderosa, não só porque é como adorar um falso Deus.



O algoritmo que conquistou o mundo começou como um aplicativo em potencial para o restaurante da cadeia de frango frito Buffalo Wild Wings. Um aplicativo que alcançou sua singularidade, escapou para o mundo. Mas ainda mantém em seu código o manual do funcionário da cadeia de frango frito: “100% de satisfação do nosso cliente é o nosso Santo Graal”.

Tanto a “Sra. Davis” quanto Simone interpretam literalmente uma metáfora publicitária.

Por isso, a série Mrs. Davis é o show mais niilista da temporada: e se a fé e a religião estiverem fazendo a mesma coisa, interpretando na literalidade todas as alegorias e metáforas dos textos bíblicos.

E se tanto a religião quanto a IA “Senhora Davis” transformarem a vida de seus “usuários” em gigantescos McGuffins, isto é, a busca de objetivos ou objetos no fundo sem nenhuma explicação narrativa ou importância?

A virtude da série é olhar o tema da IA sob um novo ângulo: não pelo ponto de vista da crítica do pós-humano como a transcendência do real através da virtualidade. Mas como algoritmos e inteligência artificial tornam-se tão pervasivos no cotidiano que começam secretamente a moldar nossos propósitos. 

Será que da mesma forma como teria sido a religião no passado? 


 

Ficha Técnica

 

Título: Mrs. Davis (série)

Criadores: Damon Lindelof, Tara Hernandez

Roteiro: Damon Lindelof, Tara Hernandez, Jonny Sun

Elenco:  Betty Gilpin, Jake McDorman, Andy McQueen, David Arquette, Elizabeth Marvel

Produção: Warner Bros Television

Distribuição: Peacock

Ano: 2023-

País: EUA

 

 

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