“Barbieheimer” (filmes Barbie + Oppenheimer) virou a irresistível dobradinha da temporada. Fenômeno simultâneo, tanto cultural quanto de marketing: de um lado uma bem elaborada estratégia mercadológica da empresa de brinquedos Mattel para reposicionar o produto “Barbie” para uma nova geração através de um mix de Toy Story e Show de Truman – anteriormente, o grupo Lego já havia tentado algo parecido como a franquia Lego Movie (2014) – videogames + spinoffs no cinema.
Afinal, a boneca Barbie foi por muito tempo criticada como um instrumento de reforço das normas tóxicas de gênero e ideais consumistas de feminilidade. Mas agora os tempos são outros, com o chamado discurso “woke” do neoliberalismo progressista – identitarismo, empoderamento de gêneros, raça e diversidade etc.
O filme Barbie (2023), dirigido por Greta Gerwig, tenta situar o histórico produto da Mattel nessa encruzilhada existencial da boneca. Não é por menos que o filme começa com uma alusão à cena “A Aurora do Homem” do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço de Kubrick – vemos meninas brincando com bonecas antigas que nada representavam do que preparar as mulheres para a maternidade e o cuidado do lar como futuras esposas. Até que surge a “Barbie Estereotipada” gigante (Margot Robbie) no lugar do monolito negro. As meninas descobrem a nova boneca e, revoltadas, destroem as antigas.
Certa vez Einstein disse que o século XX criou três bombas: a da informação, a populacional e a atômica. Oppenheimer teve a ver com a terceira. E a boneca Barbie com as outras duas. Como bomba da informação, Barbie foi uma revolução cultural: mostrou que as mulheres não devem aspirar a apenas um papel. Podem ser a Barbie Astronauta, a Barbie Tenista, a Barbie Médica, a Barbie Jóquei etc. Enfim, qualquer coisa... desde que sejam carreiras previstas pelos criadores da Mattel.
E como bomba populacional, fez parte de uma operação psicológica em larga escala do capitalismo para desmontar a bomba do crescimento populacional – ter filhos e constituir família é menos importante do que outros ideais. No pós-guerra, o crescimento da sociedade de consumo e o capitalismo financeiro exigiram uma nova reconfiguração populacional: nada de círculos econômicos virtuosos (crescimento populacional + crescimento econômico) do mundo real, mas no lugar a virtualidade econômica da financeirização.
A boneca Barbie representava que as mulheres poderiam ser qualquer coisa – desde que seus ideais estivessem atrelados a itens de consumo e estilos de vida programados pela indústria de entretenimento.
“Por causa da Barbie, todos os problemas do feminismo e da igualdade de direitos foram silenciados”, acusa uma menina diante da Barbie Estereotipada em linha de diálogo do filme. Barbie faz a mea culpa e tenta espiar toda a responsabilidade por décadas de alienação e consumismo.
O curioso é que em Barbie, assim como em Uma Aventura Lego, os roteiristas vão desconstruir a Barbie clássica utilizando-se da mitologia gnóstica: a diretoria da Mattel como os demiurgos, a idealizadora da boneca Barbie como uma espécie de Sofia que viu sua criação decair num mundo corrompido de demiurgos masculinos e a gnose final de Barbie: o reencontro com sua criadora.
O Filme
Escrito por Greta Gerwig e seu parceiro, Noah Baumbach, o filme apresenta a Barbie em mais um dia perfeito na Barbie Land, no qual bonecas interpretadas por humanos existem no que se assemelha a um condomínio fechado de brinquedos.
Lá, emoldurado por colinas pintadas ao estilo das de Hollywood, a Barbie e um grupo diversificado de outras Barbies governam, vivendo em casas com poucas paredes externas. Com seus telhados planos, linhas limpas e decoração rosa - uma TV esférica, mesa e cadeiras de tulipa - o visual abrangente evoca a era em que a Barbie chegou ao mercado pela primeira vez. É muito Palm Springs por volta de 1960, uma estética que poderia ser chamada atualmente de retro futurista.
O espectador é levado para um giro em um típico dia em Barbie Land: temos músicas, alguns números musicais ao estilo de Hollywood da velha escola e traz aqueles companheiros eternos, os Kens (Ryan Gosling que roubou a cena entre eles). O design de produção e os figurinos são paródicos, ressaltando a artificialidade deste lugar.
Porém, de repente, Barbie, no meio daquele paraíso plástico, começa a ter pensamentos e experiências não-Barbie: ela pensa na morte, e então seus pés, que são moldados para caber nos saltos altos, ficam inesperadamente planos.
Essa mudança no corpo da Barbie — diante do horror das outras Barbies — é crucial para o enredo e para as intenções de Gerwig. Uma vez que os pés da Barbie tocam o chão, ela procura conselhos de uma versão desajustada da boneca, a Barbie Estranha (Kate McKinnon), que prescreve uma viagem ao mundo real. Logo, Barbie viaja para o mundo real no seu carro pink — com Ken clandestino... afinal, ele não vive sem Barbie.
Eles pousam em Los Angeles. Lá, Barbie fica surpresa ao descobrir o sexismo, e Ken tem o prazer de descobrir o patriarcado: por todos os lados os homens estão no poder – ao contrário de Barbie Land onde os Kens são meros apêndices, condenados ao amor platônico. Nem mesmo sexo há: todas as noites são festa do pijama só para Barbies.
Os executivos da Mattel, liderados pelo CEO (Will Ferrel), entram em pânico ao descobrirem que Barbie atravessou a membrana que separa o mundo real de Barbie Land. Enquanto tentam colocar Barbie de volta para a caixa para enviá-la de volta, Ken furtivamente retorna para casa, radiante depois de sua epifania: ele descobriu o poder do patriarcado e pretende levar a novidade para Barbie Land.
As situações serão cômicas, principalmente quando o paraíso das Barbies vira “Kendom”, os reinos dos Kens, com um estilo de vida machista concentrado em cerveja, caratê, fotos de cavalos e roupas de MCs ostentação – além dos Kens fazerem uma espécie de lavagem cerebral nas Barbies que viram obedientes objetos-fetiches.
Barbie Estereotipada e os executivos da Mattel terão que consertar tudo. Em outras palavras, em um plano metalinguístico sobre o filme, também reposicionar o produto Barbie no século XXI.
Barbie Normal? – Alerta de Spoilers à frente
Ao retornar, Barbie descobre que não está mais em seu mundo aconchegante. O patriarcado e o sexismo do mundo real foram instaurados na agora renomeada “Kendom”: Barbies não são mais vencedoras do Nobel, juízas da Suprema Corte ou presidentas. Viraram objetos.
Barbie terá que planejar um contragolpe, para começar desfazendo a lavagem cerebral nas bonecas. Enquanto os executivos pensam em uma nova Barbie reposicionada no mercado para os novos tempos. Por muito tempo uma empresa gerenciada unicamente por homens lucrou com padrões corporais femininos inatingíveis – descontinuaram a produção de uma boneca grávida chamada Midge e o ambíguo Earring Magic Ken ou qualquer outra coisa que fosse ruído em uma visão de mundo perfeita.
Surge a ideia da “Barbie Normal” – uma personagem desimpedida pela expectativa de ser uma beleza imaculadamente cuidada ou de ter uma carreira de sucesso.
A princípio, o CEO Ferrell e os executivos riem disso, até que um deles olha para sua calculadora e avisa que isso lhes dará muito dinheiro – e tudo termina com a ordem do CEO para colocá-la em produção imediata.
Final feliz para a Mattel! Essa é a feliz combinação entre o drama existencial e a crítica de gênero da Barbie com o Capitalismo que a concebeu.
Tal como o replicante Roy em Blade Runner (1982), que retornou à Terra para encontrar o seu criador Tyrrel para pedir por mais tempo de vida, Barbie encontra seus criadores para ser ressignificada e ganhar um novo sentido. Tudo muito diferente do final trágico de Ridley Scott – uma crítica a exploração genética corporativa.
Ao contrário, em Barbie todos terminam felizes: Barbie e sua iluminação espiritual e o CEO da Mattel tem uma nova boneca lucrativa.
Mas esse parece ser o primeiro final, conciliador entre a rebelião de Barbie e os interesses corporativos da Mattel. Mas os roteiristas Noah Baumbach e Greta Gerwig criaram uma espécie de extensão, um segundo final, por assim dizer, gnóstico.
Mitologia Gnóstica – mais spoilers à frente!
O curioso é o recurso dos roteiristas à mitologia gnóstica. Assim como Uma Aventura Lego fez uma espécie de evangelho gnóstico pop (clique aqui), Barbie procura uma saída redentora para a protagonista, depois do final conciliador entre Barbie Land salva por Barbie e os lucros do novo produto da Mattel. Ecos também do gnosticismo pop de filmes como Show de Truman e Matrix.
No final, Barbie Estereotipada salva as outras Barbies do machismo da Kendom. Porém, ela continua interiormente insatisfeita. Anseia por algo mais transcendente: evoluir para além da ficção em tons pastéis e plástico.
Para isso, encontra-se com a própria fundadora da Mattel, Ruth Handler (Rhea Perlman) – ela queria fazer uma boneca para meninas como sua filha, Barbara. Handler encontrou sua inspiração na Europa com uma boneca alemã de aparência adulta chamada Bild Lilli que a Mattel reconfigurou. Antes do sucesso, alguns compradores recuaram: "A ideia de uma boneca com seios não foi bem recebida", disse Handler em uma entrevista à revista Lilith em 1994.
A configuração gnóstica está dada: o CEO é a cúpula executiva são os demiurgos masculinos que mantém as bonecas na prisão cósmica de Barbie Land para extrair delas a fagulha de luz criativa que alimenta a máquina corporativa e os lucros.
Ruth é Sophia (o aspecto feminino de Deus para o Gnosticismo, aquela que se apaixonou pela humanidade que decaiu na prisão cósmica do Demiurgo) que desperta a fagulha de luz interior em Barbie para ela descobrir a si mesma – ela não será mais “Barbie Estereotipada”. Será o que quiser, no mundo real.
Depois do final conciliador mainstream, Greta Gerwig cria um segundo final: a gnose de Barbie. Ela deixa de ser uma boneca plástica – transcende os tons pastéis para adquirir a textura da pele humana.
Ficha Técnica |
Título: Barbie |
Diretor: Greta Gerwig |
Roteiro: Greta Gerwig e Noah Baumbach |
Elenco: Margot Robbie, Ryan Gosling, Issa Rae, Kate McKinnon, Will Ferrell, Rhea Perlman |
Produção: Warner Bros. |
Distribuição: Warner Bros. |
Ano: 2023 |
País: EUA |