Uma das teses do Cinegnose é que as animações
atuais cada vez mais exploram temas gnósticos de desconstrução da realidade.
Afinal, em relação aos filmes live action, as animações são meta-ilusões dos movimentos reais criadas pela ilusão do desenho e computação gráfica. “Festa da Salsicha” (“Sausage
Party”, 2016) leva essa tendência às últimas consequências. Alimentos
antropomorfizados em gôndolas de um supermercado estão imersos em uma religião
na qual acreditam que serão escolhidos por “deuses” (os clientes do
supermercado) e levados para o “Grande Além”. Lá viverão na paz e amor, em
comunhão com os “deuses”. Mas a religião esconde um destino cruel: os deuses
são monstros insaciáveis que comem alimentos para ficarem fortes. Uma comédia
politicamente incorreta e desbocada na qual o espectador cria forte
empatia com o drama das salsichas – será que vivemos também em um gigantesco
supermercado? Como elas, também partilhamos de ilusões religiosas apenas porque
nos tornam felizes e otimistas?
No início dos anos 1970 era exibido na TV
brasileira um comercial das salsichas Frigor Eder. Numa animação víamos um
porquinho pulando corda dizendo a um boi que precisava ficar forte para ser
salsicha. O porquinho e o boi levantavam alteres e malhavam para um dia virarem
salsicha.
Chegado o dia, entram felizes na esteira
rolante de uma máquina que os transformava automaticamente em salsichas da
marca Frigor Eder S.A.
O historiador pernambucano Leôncio Basbaum no
livre Alienação e Humanismo lembrava
desse comercial, e o considerava o símbolo da alienação do homem contemporâneo:
o indivíduo que alegremente se esforça a vida inteira para virar uma atraente
salsicha produzida em série para depois ser consumido pela elite do sistema e
morrer.
Um produto processado industrialmente, feito
com aparas e restos de carne bovina, suína e aves, restos “comestíveis”
resultantes dos abates, misturados com colorantes, conservantes e, depois,
pré-cozido.
De símbolo da alienação e exploração do
capitalismo, passando pelos horrores dos alimentos processados industrialmente
(cujo documentário Super Size Me,
sobre os males do fast food McDonald’s, foi o ápice da denúncia dos horrores
da indústria alimentícia), a salsicha e toda sorte de “massas de carne” agora
ganha uma novo e insuspeito simbolismo: a da crítica gnóstica sobre a condição
humana.
É a animação Festa da Salsicha (Sausage
Party, 2016) escrita por Seth Rogen (comediante famoso pelas piadas
politicamente incorretas e constantes referencias à cultura pop dos anos 1980 e
90) e dirigida por Greg Tiernan e Conrad Vernon. A princípio para um espectador
desatento tudo pode parecer um gigantesco besteirol: palavrões, cenas
maliciosas ou de sexo explícito e uma enxurrada de alusões à intolerância,
racismo e xenofobia que assola o mundo atual dentro de um mais absoluto non sense.
E tudo protagonizado por pães, tacos, donuts,
mostardas, cachaças, legumes e, claro, salsichas. Todos eles possuem uma vida
secreta nas gôndolas de supermercados, longe da percepção dos humanos que
entram nesses estabelecimentos apenas para comprar apenas produtos.
O Grande Além
Para esses ansiosos produtos nas prateleiras
eles não serão comprados, mas “escolhidos” por deuses que os levarão para o
“Grande Além”, o lado de fora das portas automáticas de vidro dos supermercados.
E têm fé que nesse Grande Além realizarão todos os seus sonhos e fantasias:
salsichas preencherão pães macios (com toda a carga erótica desse simples
desejo de uma salsicha) e os pães sírios acreditam que encontrarão no “céu”
azeites virgens que irão umedecê-los...
Essa é a base de uma religião que mantém na
linha todos os produtos nas gôndolas dos supermercados, sem questionar jamais
suas curtas vidas. Mas que esconde um terrível destino final: serão todos
mastigados, bebidos ou sorvidos por esses deuses que, na verdade, são ao mesmo
tempo cruéis e patéticos.
Ao lado de animações recentes como Uma Aventura Lego ou Jovens Titãs em Ação, acompanhamos uma
crescente tendência da sensibilidade “meta” nesse gênero fílmico – alusiva,
paródica, auto-referencial, metalinguística que descontrói a realidade da
própria animação como alusão à desconstrução da própria realidade dos
espectadores.
Assim como os produtos do mercado são
iludidos pela mitologia do “Grande Além” que supostamente os espera, da mesma
forma nós acreditamos no Além como forma de libertação – “partir desta para uma
melhor”, dizemos.
Mas a realidade pode ser uma construção tão
artificial quanto a “massa de carne” que enche uma salsicha.
O Filme
Tudo gira em torno de um grupo de alimentos
que vive nas gôndolas de um supermercado qualquer nos EUA. Na primeira
sequência acompanhamos uma sequência musical na abertura das portas de mais um
dia de vendas. Todos acordam para cantarem juntos um hino para que os produtos
mostrem o quanto estão agradecidos por tudo que os deuses fazem. Uma oração que
renova diariamente a fé de que “nada de ruim acontecerá com os alimentos”.
Cada um espera ser escolhido pelos “deuses”
que entram no supermercado e os conduza ao “Grande Além” onde serão tratados
com amor e carinho, a verdadeira Terra Prometida.
Um grupo de salsichas embaladas, ao lado da
gôndola com pães de cachorro-quente, vivem um tórrido amor platônico. Tocam
suas “pontas” (os dedos) à espera da consumação desse amor em algum lugar no
Grande Além quando forem levados juntos, num mesmo carrinho de compras, por um
Deus.
Mas correm boatos de que nada disso seja
verdade. Principalmente quando aproxima-se o “Lorde das Trevas” – um
funcionário que recolhe produtos que perderam o prazo de validade e que serão
levados para a eternidade do lixo, sem chances de conhecer a Terra Prometida.
Por que os deuses permitiriam tamanha
injustiça? Como podem alimentos serem capturados pelo Lorde das Trevas se todos
seguem as orientações e cantam o hino de louvor aos deuses?
Tudo parece estar em ordem quando os
protagonistas Frank, a salsicha, e Brenda, o pão, são escolhidos por uma
“deusa” e vão felizes para o carrinho de compra. Até que uma mostarda com mel
tenta alertar a todos que tudo é uma mentira, o Grande Além não existe e os
deuses são monstros. Tenta se matar atirando-se do carrinho provocando um
acidente: o carrinho vira e Frank, Brenda e seus amigos perdem-se no
supermercado ao tentar o caminho de volta as suas gôndolas.
Uma jornada de descobertas que começa pela
sessão das bebidas alcoólicas: cachaças, tequilas e latas de cervejas vivem uma
festa que nunca termina. Até conhecerem uma misteriosa aguardente indígena.
Eles são os “imortais”, produtos que não têm data de validade.
A partir desse ponto a animação explora
inúmeros de temas explicitamente gnósticos que iriam muito além do espaço dessa
postagem. Vamos destacar os mais importantes:
(a) Religião: dividir para reinar
Os “imortais” criaram o hino que todos os
produtos cantam cada vez que o supermercado abre as portas. Antes disso, o massacre dos alimentos era
explícito. Todos sabiam a verdade e o sofrimento era terrível. Pensando nisso,
os imortais criaram uma narrativa (cosmogonia + teologia) sobre o “Grande Além”
onde deuses se preocupam com os alimentos e os sonhos se tornariam realidade.
Dessa forma, todos vão felizes para a morte.
Mas ao longo dos anos “as coisas ficaram um
pouco loucas”: cada sessão de alimentos criou uma interpretação própria da
narrativa: os chucrutes alemães importados acham que vão conquistar o Grande
Além; os pães sírios encontrarão azeites virgens; as salsichas e pães devem se
resguardar até chegar ao Grande Além, e assim por diante. Dessa forma surgiram
os alimentos nazistas, islâmicos, católicos etc. Todos divididos, racistas e
intolerantes entre si.
As religiões criam divisão e conformismo. E o
que é pior: cada uma interpretando de forma errônea uma mitologia fundadora que
criou a fusão inicial da realidade com a ilusão. Um tema clássico do
Gnosticismo: o cosmos não decaiu: a sua própria criação já foi a Queda e a
catástrofe desde o início. Nenhum pecado fez esse mundo decair – o maior pecado
foi a própria Criação.
(b) Publicidade e Marketing é a nova religião
Para além das divisões criadas por esse
religiões históricas, percebe-se na animação que há uma religião muito mais
abrangente: a Publicidade e o marketing de ponto de vendas das gôndolas,
estandes, gôndolas e embalagens dos supermercados.
O hino é um típico jingle publicitário. Os
alimentos acreditam nas promessas de felicidade nas imagens dos estandes de
venda e das suas próprias embalagens. Nelas vemos os “deuses” com seus produtos
felizes e em comunhão. A liturgia do consumo esconde a selvageria, o massacre e
a carnificina da, digamos assim, dieta dos deuses.
Assim como Truman via a cenografia de
Seaheaven no filme Show de Truman e
acreditava que tudo era real, da mesma forma os ingênuos alimentos acreditam
que o marketing do ponto de vendas é a própria realidade.
(c) Os “deuses” estão mortos
Festa da
Salsicha guarda uma grande
semelhança temática com Prometheus de
Ridley Scott. Se em Prometheus os
humanos querem conhecer seus “engenheiros” até descobrirem de forma trágica que
os deuses na verdade são cruéis e enlouquecidos (querem destruir os próprios
humanos que ajudaram a criar), na animação os pobres alimentos terão a mesma
decepção metafísica.
Porém, Festa
da Salsicha dá uma interessante colaboração a essa gnóstica desconstrução
do Demiurgo. Barry, a salsicha atrofiada e ridicularizada pelas outras do
pacote, involuntariamente chega à casa de um dos deuses: um drogado viciado em
“sais de banho” injetado.
É uma interessante sequência: chapado, o
“deus” tem a visão em quarta dimensão despertada, conseguindo perceber que o
seu alimento, a salsicha, tem consciência. E ainda mais, um saco de batas
fritas falante. Uma sequência com inesperada “metafísica transdimensional”.
A animação sugere um instigante insight: os demiurgos nos aprisionam
nesse cosmos por nos acharem tão insignificantes que nem desconfiam que somos
sencientes. Em outras palavras: os deuses seriam tão ignorantes quantos nós em
relação à nossa própria condição.
(d) Lei do menor esforço
Por que acreditar em uma narrativa religiosa
sobre deuses e Paraísos sem provas ou pistas? Festa da Salsicha dá uma reposta
dura e direta: por que é mais fácil para salsichas e pães acreditarem na
estória do Grande Além porque é apenas fé – nos torna otimistas e felizes.
A crítica, de outra forma, gera desconforto e
esforço em buscar evidências contraditórias. O que apenas remete a à dinâmica
energética do psiquismo humano descrito por Freud: a lei do menor esforço - ao
invés de acordarmos, sonhamos que estamos acordando, garantindo a o equilíbrio
energético do sono.
Por isso, salsichas e humanos acreditam que
em toda manhã acordamos para um novo dia, cheios de fé e esperança. Mas
continuamos dormindo...
(e) Meta-desconstrução – aviso de spoilers à frente
Depois de alimentos antropomorfizados que
descobrem o seu trágico verdadeiro propósito comandado por deuses cruéis,
confusos e chapados, a animação vai ainda mais além seguindo a linha criativa
de Uma Aventura Lego – não satisfeita, a cachaça indígena revela que há ainda
outra dimensão além daquela dos deuses que os consome: na verdade, tudo aquilo
não passa de um roteiro, uma produção de animadores cuja garrafa etílica
indígena revela os nomes e seus rostos entre as fumaças dos baseados que fumam
compulsivamente diante da perplexa salsicha Frank.
Novamente, um insight gnóstico: nosso deus criador acredita ser único, poderoso,
onisciente e onipresente. Mas sua Criação está inserido em um drama muito maior
– ele é um Demiurgo, um divindade que decaiu da Plenitude.
No caso de Festa da Salsicha, os
deuses-consumidores, assim como todos os personagens do drama, são animações de
diretores, produtores e desenhistas de um grande estúdio para outros
consumidores que assistem à animação.
Mundos dentro de mundos como camadas de uma
cebola. É a própria Cosmologia gnóstica
tal como intuía Basilides de Alexandria que descrevia um universo estruturado
em 365 “céus” se interpenetrando e cada um criando o próximo.
Ficha Técnica |
Título:
Festa da Salsicha
|
Direção:
Greg Tiernan, Conrad Vernon
|
Roteiro:
Seth Rogen, Kyle
Hunter, Evan Goldberg
|
Elenco:
Seth Rogen, Salma Hayek, Edward Norton,
Michael Cera
|
Produção: Annapurna
Pictures, Columbia Pictures
|
Distribuição:
Sony Pictures
|
Ano:
2016
|
País:
EUA
|
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