Pais tautistas e crianças autistas e paranormais. De um lado, pais tão absorvidos pelos seus problemas cotidianos que abdicaram do papel de transmissores de sabedoria e conhecimento. E do outro, filhos entre o autismo e poderes paranormais – na verdade, a metáfora do hiato geracional: sem conseguirem entender o mundo adulto, estendem a visão mágica e animista da primeira infância, numa espécie de infância estendida. O filme nórdico “The Innocents” (“De Uskyldige”, 2021) é um terror atmosférico e silencioso no qual deixa para trás toda a visão nostálgica adulta de uma suposta inocência infantil. Em um conjunto de apartamentos popular, crianças passam suas férias de verão descobrindo seus poderes telepáticos e telecinéticos, enquanto os pais estão alheios a tudo. Paradoxalmente a filha de espectro autista é a única que interage nessa rede psíquica, pressentindo uma ameaça entre as crianças.
The Innocents (De Uskyldige, 2021) é mais uma amostra de como o cinema nórdico aborda o mundo das crianças e adolescentes numa perspectiva bem distinta das produções hollywoodianas. Enquanto a indústria do entretenimento norte-americana sempre mostra as questões infanto-juvenis a partir do olhar adulto (bom vs. mau; inocência vs corrupção etc.), o cinema e audiovisual nórdico sempre tenta descrever como as próprias crianças e adolescentes concebem o mundo ao seu redor – os adultos e os grandes espaços em que vivem.
Para o grande público, acostumado com as narrativas de vilões e heróis, crianças e jovens com habilidades paranormais nascentes só podem ser levadas para a escola do Professor Xavier para educar X-Men a combaterem o Mal que vem de fora, e ameaça o nosso estilo de vida livre e democrático.
Mas as coisas não funcionam bem assim no filme do diretor norueguês Eskil Vogt. Em The Innocents, crianças com poderes telepáticos e telecinéticos se transformam em metáfora para um fantasma que ronda a nossa sociabilidade: a quebra do elo geracional na qual os pais se tornam cada vez mais tautistas (tautologia + autismo), enquanto as crianças (solitárias e isoladas em seu próprio mundo que olham o incompreensível universo adulto) vivem na fronteira entre o autismo e paranormalidade.
Enquanto os adultos estão absorvidos pelos seus afazeres e problemas, sem perceberem, as crianças estão criando o seu próprio mundo: um mundo solitário, estranho e às vezes violento, que Eskil Vogt explora com uma franqueza arrepiante e com habilidade excepcional para criar um terror atmosférico e silencioso.
Vogt aceitou o desafio de fazer um filme decididamente desconfortável para o espectador, lentamente revelando a capacidade das crianças para a crueldade, assim como a lealdade e o auto-sacrifício. Porém, passando longe das categorias morais do bem e do mal, da inocência e da corrupção. Vogt revela a pura transparência do Mal, com pitadas do clássico “Senhor das Moscas” – aqui, no caso, um grupo de crianças que aos poucos descobrem poderes telecinéticos e telepáticos entre eles próprias. Fechadas em seu próprio mundo, como elas lidariam com esse poder?
Crianças que foram deixadas à suas próprias contas em um complexo de apartamentos populares norueguês com enormes torres de concretos banhado pelo sol frio e interminável do verão nórdico – crianças que foram deixadas para trás durante as férias de verão pelas dificuldades financeiras dos pais que, absorvidos pelos seus próprios problemas, se desconectaram dos filhos. Deixados em enormes playgrounds, rodeado de florestas profundas e uma perigosa ponte que passa sobre uma rodovia.
O curioso em The Innocents é que toda a narrativa é tomada pela perspectiva dos olhares infantis: a forma como elaboram o distanciamento dos pais, a lenta descoberta de seus poderes paranormais e a consequente amoralidade ao lidar com as habilidades únicas.
Nunca entendemos completamente como as crianças controlam suas habilidades, compartilhando apenas a natureza inquisitiva e, eventualmente, o medo arrepiante da protagonista. Também nunca vemos esse drama da perspectiva dos pais – para o mundo mais amplo, tudo o que pode ser visto são crianças passando seus dias de verão brincando.
Ampliando ainda mais a metáfora central do filme, uma das protagonistas é uma adolescente com espectro autista regressivo. Tão fechada em seu próprio mundo que aos poucos começa a se conectar psiquicamente com aquela nascente e arrepiante rede paranormal que está lentamente sendo criada pelas crianças.
Porém, mais assustador do que qualquer um dos elementos sobrenaturais, é a dúvida que assombra o espectador após o final dos créditos, quando é hora de tentar se acalmar e relaxar novamente: quem são os inocentes? São as crianças? Os pais? Ou o público?
O Filme
The Innocents começa acompanhando uma família que se muda para um conjunto habitacional próximo a uma floresta para passar o verão com suas duas filhas, a mais velha, Anna (Alva Brynsmo Ramstad), está num espectro autista regressivo – agora ela não consegue sequer falar.
O autismo de Anna é uma pequena pista de que este filme abordará sobre como a mente funciona e o fato de que os humanos ainda não entendem bem a neurologia. Isso faz com que os elementos sobrenaturais da história pareçam plausíveis mesmo sem uma explicação elaborada. A pequena irmãzinha de Anna, Ida (Rakel Lenora Fløttum), de nove anos, tem que assumir a responsabilidade mais cedo do que se esperaria de uma criança da idade dela – ela terá que cuidar da irmã, levando-a para eventuais passeios pelo playground. Ida está desesperadamente procurando contato humano com outras pessoas de sua idade.
Ida leva Anna para brincar no balanço, onde conhece seu novo amigo Ben (Sam Ashraf), que convence Ida a deixar sua irmã enquanto eles saem para brincar juntos. Ao fazer isso, o diretor Vogt brinca habilmente com nosso desejo humano de proteger as crianças e os medos que isso induz para aumentar a tensão.
Mas esta é apenas uma introdução a um mundo onde o verdadeiro horror só começa a ser revelado quando Ben e Ida seguem um gato até um depósito abaixo do prédio, onde cometem um ato de pura maldade com o animal.
Logo depois conhecem Aisha (Mina Yasmin Asheim), e as quatro crianças descobrem que podem se comunicar e controlar as coisas com suas mentes. A partir deste momento, o espectador está tentando descobrir quem é bom e quem é mau.
Há um elemento do “Senhor das Moscas” de William Golding em ver as terríveis consequências do que acontece quando as crianças ganham poder, sobre o qual elas têm autonomia. Os questionam a natureza do bem e do mal, ponderando se é herdado, algo aprendido ou produto das circunstâncias do distanciamento dos seus pais. A narrativa ambígua de Vogt torna todas essas conclusões possíveis.
Logo percebemos a crueza do mundo em que aquelas crianças vivem: o jovem Bem apresenta hematomas no corpo, o que estabeleceremos uma relação causal ao conhecermos sua mãe solteira – que passa o tempo ao celular enquanto cozinha salsichas para o almoço; a mãe da pequena Aisha, abre a torneira para abafar o seu choro solitário; enquanto os pais de Ida padecem entre a luta do pai para manter o emprego e da mãe sem compreender as questões que cercam o autismo Anna.
Aisha revela seus poderes: gosta de “ouvir” os pensamentos de outras pessoas ao seu redor, uma habilidade finamente expressa através do design de som. Aisha pode até “ouvir” o que está acontecendo dentro da mente de Anna, conseguindo conversar telepaticamente com ela. Ao ponto que, lentamente, começa a recuperar a capacidade linguística e a expressão oral.
Em estilo slow burning acompanhamos essa rede telepática ficando cada vez mais forte, enquanto os pais estão alheios a tudo o que está acontecendo. Paradoxalmente será a autista Anna a única mais velha a interagir nessa espécie de linguagem crepuscular criada pelas crianças, pressentindo a ameaça crescente do menino Ben – aparentemente ele é o psiquicamente mais poderoso, começando a exercitar seus poderes telecinéticos de forma amoral: primeiro, quebrando a perna de uma das crianças que jogam bola na quadra (e que o proibiram de participar do jogo). Depois, vingando-se da mãe negligente.
Logo Ben será uma ameaça mortal para todos. E Anna terá que agir.
A quebra do elo geracional
The Innocents figura um drama espinhoso dos nossos tempos: a abdicação dos pais de seu papel de elo geracional: a de transmissores de uma sabedoria e conhecimento acumulados. De ambos os lados há uma desconexão do mundo real. Tanto no tautismo dos pais (auto-absorvidos em seus próprios problemas cotidianos), quanto no espectro autista e paranormal das crianças: perdidas naqueles amplos espaços de playground, floresta e quadras de jogos, entregam-se a um mundo mágico no qual a inerente crueldade infantil de uns com os outros encontra uma inusitada ferramenta na paranormalidade.
Esse jogo criado Eskil Vogt é metafórico: numa geração sem pais, na qual os mais velhos criaram um hiato geracional na transmissão da cultura, as crianças estendem ainda mais o mundo mágico e animista da primeira infância.
Parece em The Innocents que os poderes paranormais são a metáfora dessa extensão da infância em crianças que não querem crescer diante de pais que, por sua vez, não querem envelhecer. Por isso, é um filme duro, sem sentimentalismos a respeito da visão da criança no mundo. Demonstrando o quão selvagem isso pode ser.
Onde estão os inocentes? O título prece ser irônico, uma cínica alusão a uma suposta pureza infantil presente no olhar nostálgico do adulto para a infância. Porém, a mensagem do filme é essa: a amoralidade infanto-juvenil está na relação direta do tautismo adulto.
Ficha Técnica |
Título: The Innocents |
Diretores: Eskil Vogt |
Roteiro: Eskil Vogt |
Elenco: Rakel Leonora Fløttum, Sam Ashraf, Mina Yasmin Asheim, Alva Brynsmo Ramstad |
Produção: Mer Film, Zentropa International Sweden, Snowglobe Films |
Distribuição: IFC Midnight |
Ano: 2021 |
País: Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia |