Animações para o publico infantil apontam para uma característica recorrente: o desaparecimento dos pais no imaginário infantil. Dos "Flintstones" dos anos 1960 aos atuais "Backyardigans" ou "Charlie e Lola" encontramos o progresssivo desparecimento simbólico e literal dos pais nas narrativas. É o sintoma do anacronismo da família como agência sociaizadora, suplantada pela indústria cultural das celebridades e entretenimento que oferecem modelos mais atraentes de "superpais".
Nessa semana discutia com os alunos do curso de Comunicação
da Universidade Anhembi Morumbi algumas ideias da Escola de Frankfurt. Mais
precisamente, discutia a atualidade dos famosos “Estudos sobe a Autoridade e a
Família” que Theodor Adorno e Max Horkheimer empreenderam na década de 1950.
Nesses estudos os autores encontraram uma tensão dialética no interior da
família no capitalismo tardio: de um lado, a família podia ser vista como a
terrível matriz dos mecanismos de internalização da submissão (agência
psicológica da sociedade), mas, do outro, a possibilidade de se tornar uma oposição
crítica ao Estado Totalitário.
Principalmente no momento atual em que a chamada Indústria
Cultural esvazia a autoridade e competência da família, tornando-a um
suplemento supérfluo já que toda a indústria das celebridades e entretenimento
suplantaram a figura paterna ao oferecer novas figuras de “super-pais” como
modelos de internalização da autoridade.
Exatamente nesse momento em que a função de socialização da
família desaparece para transformar-se em meras imagens paródicas em filmes
publicitários de cereais matinais e margarinas (imagens congeladas de
felicidade), a instituição familiar pode tornar-se uma instância “negativa”:
libertar a inteira estrutura familiar da sua tradicional função repressiva e
“realizar o princípio do amor”, como afirmava Adorno.
Família na Publicidade: imagens congeladas de felicidade |
Nas discussões em aula alguns alunos associaram essa
discussão da Escola de Frankfurt a um fenômeno recorrente em animações infantis
atuais em canais de TV especializados como Discovery
Kids ou Cartoon Network: o
desaparecimento dos pais no imaginário infantil. Em animações como “Charlie e
Lola” ou “Pink Dink Doo”, por exemplo, vemos irmãos que se ajudam mutuamente e vivem
aventuras materializadas pelo poder da imaginação, solitários em seus quartos
sem nunca os pais aparecerem, nem como agentes repressores ou punitivos.
Quando aparecem (e muitos vezes são tios ou avós), são
mostrados da cintura para baixo pelo ponto de vista da altura da criança.
O sumiço dos pais em desenhos animados e HQs não é novidade,
mas com motivos diferentes. Por exemplo, se não me falha a memória na cidade de
Patópolis (onde habitam os personagens de Walt Disney), não há pais, mas
sobrinhos e tios. Patos nascem de ovos sem pais por um motivo simples: encobrir
a sexualidade na moralista sociedade norte-americana pós-guerra.
A partir dos desenhos animados da Hanna-Barbera na década de
1960, famílias do passado e do futuro são apresentadas com pais anacrônicos e
incapazes de criar um sentido para a vida conjugal e familiar. Em “Os
Flintstones” Fred é desajeitado, corrompível e com uma moralidade regida pela
lei do menor esforço enquanto a esposa Wilma é incapaz de por ordem no caos. Os
filhos são mais inteligentes. E no futurista “Os Jetsons” a incapacidade
paterna é potencializada pelas armadilhas tecnológicas (levar um cachorro robô
para passear em uma esteira rolante transforma-se em uma aventura de dimensões
épicas).
Se em Hanna-Barbera pelos menos os pais ainda apareciam como
protagonistas das tramas, nas animações atuais exibidas em canais
especializados os pais simplesmente desaparecem ou apenas é um elemento a mais do
pano de fundo da imaginação infantil.
A Família Anacrônica
Os “Estudos sobre Autoridade e Família” de Adorno e
Horkheimer detectaram o momento em que a tradicional família burguesa (a
patriarcal) tornava-se anacrônica, esvaziada em suas funções de agência de
socialização pela Indústria Cultural.
Os Flintstones: pais anacrônicos |
No início do capitalismo a família burguesa cumpriu muito
bem o seu papel de adestramento para a adequação social dos indivíduos. Nos
tempos da ética protestante do trabalho, o princípio luterano de “temer e amar”
era eficientemente aplicado como processo de legitimação da autoridade do pai
pois, diante do filho, ele sempre tinha razão pois nele se concretizavam as
imagens do poder e do sucesso.
Assim formavam-se homens para a sociedade, através da
racionalização da autoridade e poder pelo temor/amor. David Riesman no livro “A
Multidão Solitária” chamaria essa indivíduo de “intra-dirigido”, isto é, aquele
que se orienta no mundo através de valores firmemente interiorizados pela
família.
Mas num mundo onde a propriedade burguesa desaparece para
muitos e o conceito de herdeiro é esvaziado de todo significado, esse princípio
de autoridade entra em crise. Da família burguesa, surge a “família nuclear”
com um grupo reduzido onde os pais lutam pela sobrevivência em trabalhos
assalariados onde a energia psíquica é inteiramente consumida, restando aos
filhos serem deixados diante da indústria cultural (em creches multimidiáticas
ou, simplesmente, diante da TV ou games de computadores).
A figura dos pais (sempre exaustos e cercando os filhos com
excessos de solicitude para diluir a culpa pelo “abandono” – na verdade a culpa
por não cumprir o papel idealizado pelas imagens da antiga família burguesa)
deixa de ser a de poder e sucesso. Para os filhos o modelo de autoridade passa
a ser as das celebridades midiáticas, como bem observaram Adorno e Horkheimer:
“Da sua relação com o pai, a criança extrai apenas a ideia abstrata de poder e de uma força arbitrária e sem limites, e busca um pai mais forte, mais poderoso que o pai real, o qual já não corresponde à velha imagem; em suma, uma espécie de superpai, tal como foi produzido pelas ideologias totalitárias” (ADORNO, T., HORKHEIMER, M. “Lezioni di sociologia” In: CANEVACCI, M. Dialética da Família. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.222).
Mas a relação que os filhos vão ter com esses superpais
midiáticos não será mais de temor/amor, mas, agora, de amor/frustração: dentro
de uma instituição anacrônica o indivíduo está só e procura nos superpais da
mídia o modelo de celebridade como a de uma pessoa amada, popular e famosa,
assim como ele gostaria de ser. Mas apenas encontra a frustração ao saber que
será apenas mais outro anônimo a desejar um modelo inatingível de pessoa amada
e desejada.
Em suma, o novo modelo de autoridade é baseado na frustração
e no conformismo individual que resulta numa compreensão da vida minimalista ou
sobrevivencialista, na renúncia consciente de todo ou qualquer modelo de utopia
ou superação: “substitua o desejável pelo possível”, “faça a sua parte” etc.
A Família Desencorajada
Muito do anacronismo da família vem da necessidade do
capitalismo tardio ressocializar os indivíduos, desta vez como consumidores
dependentes do mercado. Por isso, a partir da década de 1920 a Publicidade
empreendeu um vasto esforço pedagógico para desencorajar a produção doméstica
ou familiar.
Por exemplo, os saberes sobre como cuidar dos filhos, uma
das funções socializadoras da família burguesa, é desencorajada ou descartada
como superada diante da ciência das grandes corporações como a Johnson &
Johnson (veja figura ao lado). Ou ainda, de forma mais agressiva, um anúncio do
suplemento “Folha Teen” do jornal “Folha e São Paulo”, onde denuncia a
incapacidade dos pais em compreender adolescentes, se nem as funções do controle
remoto conseguem entender! (veja abaixo).
Nessa perspectiva, o desaparecimento dos pais no imaginário
infantil dos desenhos animados parece ser um sintoma da situação anacrônica da
família e da função paterna numa sociedade onde os indivíduos são socializados
para serem consumidores fascinados por superpais-celebridades.
A antiga família burguesa permanece na mídia como parodia;
Por exemplo, na animação “Backyardigans” cada aventura da turma termina com um
ronco no estômago de fome, mostrando que é hora de voltar para casa (o
idealizado lar burguês: um sobrado com um vasto quintal no fundo com
playground). “Vamos comer um bolo de chocolate”, diz um deles. Mas quem fez o
bolo de chocolate? Os pais nunca aparecem.
Por isso Adorno e Horkheimer viram no esvaziamento da função
de legitimação da autoridade da família a oportunidade dessa instituição
tornar-se um contraponto “negativo” à ordem do capitalismo tardio. A
oportunidade de finalmente libertar o gênero humano da irracionalidade da
autoridade ao instituir relações humanas baseadas no amor, opondo-se à frieza e
superficialidade das relações de consumo e da fugidia “empregabilidade” das
relações profissionais.
A família como um abrigo seguro em uma terra desalmada.
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