A cada ano desenvolve-se uma nova
ciência do consumo que turbina um mercado cujos ganhos se equivalem a soma das
economias de 115 países pobres: é a ciência do consumo infantil, uma verdadeira
“blitzkrieg” contra as crianças através da mobilização de especialistas que vão
de antropólogos e sociólogos a neurologistas e cientistas comportamentais. É o
tema do documentário “Crianças Consumidoras – A Comercialização da Infância”
(2008) que alerta: profundas mudanças no psiquismo infantil estão sendo feitas
nesse momento com o desaparecimento da infância por meio do novo perfil
etnográfico dos “tweens” (a fusão da infância na adolescência) e o reforço
subliminar da “cultura da reclamação” (chiliques, birras etc.) para que
crianças insistentes influenciem cada vez mais a decisão de consumo dos pais. E por trás de
tudo isso, a manipulação da percepção infantil para que vejam seus pais como
seres inseguros, indecisos e frágeis.
Uma
indústria de 15 bilhões de dólares que trabalha dia e noite para minar a
autoridade dos pais se exime de qualquer consequência social do consumismo infantil
alegando que a única responsabilidade sobre o que as crianças comem e compram é
a dos próprios pais. “Seria como se de repente o dono de uma grande frota de
caminhões anunciasse que de agora em diante fosse trafegar por uma estrada
cheia de crianças a 250 km/hora e dissesse: ‘pais, cuidado! É tarefa de vocês
cuidarem para que seus filhos não se machuquem!’”, responde Enola Aird, fundadora
e diretora do Motherhood Project.
Essa
é uma das contundentes declarações de ativistas, pesquisadores e profissionais
no documentário Crianças Consumidoras – A
Comercialização da Infância (Consuming Kids – The Commercialization of Childhood,
2008), um olhar profundo na forma como as crianças são manipuladas e exploradas
em cada detalhe dos seus cotidianos, para não só se tornarem futuras
consumidoras mas, inclusive, influenciar nas próprias escolhas de consumo dos
pais.
Desde
o chamado baby boom após a Segunda
Guerra Mundial, o Marketing e a Publicidade logo perceberam que essa nova faixa
etária deveria ser capturada a todo custo: “O embrião do consumidor começa a se
desenvolver no primeiro ano de existência. Crianças começam sua jornada de
consumo na infância. E certamente merecem consideração como consumidores nesse
período”, declarou profeticamente o pioneiro do marketing infantil James U.
McNeal.
Dirigido
por Adriana Barbaro e Jeremy Earp, o documentário apresenta números que
demonstram que o consumo infantil é hoje a principal meta das empresas: crianças
consumindo 40 bilhões de dólares todo ano e, o que faz brilhar os olhos dos
marqueteiros, 700 bilhões de dólares por ano de compras dos adultos por influência
direta das crianças – tipo de carro, computador, celular ou viagens, por
exemplo. Isso equivale a soma da economia de 115 países pobres no mundo.
Pais miseráveis e a “cultura da reclamação”
O
documentário mostra com detalhes como psicólogos, antropólogos, sociólogos e
cientistas cognitivos e comportamentais estão colocando as crianças no foco de
um poderoso microscópio para moldar a preferências pelas marcas das crianças:
discussões em grupo acompanhadas por especialistas por trás de vidros
espelhados, marketing invisível onde até festas infantis são pretextos para
estudos etnográficos, filmagem do comportamento das crianças diante de gôndolas
de supermercados (olhar, como elas pegam os produtos e devolvem, quantas vezes
reclamam e insistem com os pais etc.), play grounds e salas de aula. São
capazes até de registrar imagens das crianças no banheiro, vaso sanitário e
chuveiro para saber como interagem com shampoo, sabonetes e produtos de higiene.
Para
o documentário, essa é a nova ciência do consumo baseada no estudo neurocomportamental
da infância. Seu mais recente avanço é o neuromarketing onde crianças são
colocadas em dispositivos MRI com elétrodos em volta da cabeça para criar um
mapeamento cerebral das regiões mais estimuladas diante de estímulos visuais publicitários
– com que frequência a criança pisca ou vira os olhos, por exemplo. Dessa
maneira os anúncios são corrigidos para torná-los mais hipnóticos, reduzindo a
frequência de movimento dos olhos.
O
que impressiona é o nível de agressividade dessa verdadeira blitzkrieg: o marketing e a publicidade
se esforçam em transformar a percepção infantil dos pais como uns “infelizes
miseráveis” através do reforço da “cultura da reclamação”. Psicólogos se
mobilizaram para estudar o fenômeno da reclamação (chiliques, manhas, birras
etc.). Eles tentam saber que tipo de reclamação infantil funciona melhor com os
pais. Por exemplo, as crianças dizem “Posso? Posso?...” em média até nove
vezes. O “poder da reclamação” é maximizado por diversas táticas neurocomportamentais
para que a criança ultrapasse essa média e continue pedindo e pedindo...
A
“cultura da reclamação” seria maximizada com a percepção da criança de que os
pais são frágeis, inseguros, indecisos e imaturos. Em uma passagem, o
documentário faz uma tragicômica analogia com o personagem Homer da série de
animação Os Simpsons: infernizado
pelos pedidos insistentes dos filhos Bart e Lisa, o desesperado Homer cede aos
pedidos como única alternativa para poder dormir.
Essa
nova ciência do consumo na verdade estende à infância uma tática que se
confunde com a própria história da Publicidade e sociedade de consumo: desde
1920 a Publicidade empreendeu um massivo esforço de desencorajamento das
atitudes autônomas das famílias, mas, principalmente, dos próprios pais. Para
ressocializar os indivíduos como consumidores dependentes do mercado, todos os
saberes, tradições e autoconfiança familiar foram estereotipados como “ultrapassados”
e “pouco confiáveis” e fontes de erros em um mundo moderno onde tudo
supostamente muda muito rápido.
Sem
autoconfiança, perdidos diante do bombardeio de informações propositalmente
contraditórias de um complexo corporativo-publicitário de 15 bilhões de
dólares, os pais fragilizados tornam-se prezas fáceis das chantagens emocionais
da “cultura da reclamação”. Como vimos em postagem anterior, as próprias
animações infantis ou infanto-juvenis mostram os pais como ausentes fisicamente
ou como figuras pouco confiáveis e facilmente corruptíveis. Quanto mais as
crianças veem os pais como figuras miseráveis, mais insistente tornam-se os
pedidos infantis de consumo – sobre isso clique
aqui e aqui.
O fim da infância com os "tweens"
Dentro
dessa nova ciência do consumo, o marketing acabou descobrindo o que eles chamam
de “crianças tornando-se adultos jovens”. Com diversos depoimentos de
profissionais e pesquisadores da área, o documentário detalha como o marketing
vem explorando uma natural ambição do jovem em querer ser mais velho e mais
maduro.
O
marketing tira vantagem dessa tendência natural vendendo coisas para grupos
cada vez mais jovens. Como? Revistas para jovens de 17 anos não são lidas por
leitores dessa faixa etária: são lidas por crianças de 10 ou 12 anos que querem
saber como é ter 17 anos. Crianças de 6 anos promovem festas de pedicure e
manicure para adquirirem cosméticos. Seus modelos não são mais médicos,
astronautas ou professores, mas agora são atraídos por ídolos adolescentes.
E
nada mais revelaria a paixão da indústria por esse encurtamento etário do que a
invenção do termo “tween” – contração das palavras kids e teen, “crianças” e “adolescentes”.
Até pouco tempo atrás para o marketing os limites estavam entre 8 e 12 anos.
Agora, tweens estão entre 6 e 12 anos e poderá chegar proximamente a 4 e 12
anos – ou seja, infância e adolescência submetidoas ao mesmo apelo publicitário.
E
esse apelo estaria trazendo profundas transformações psíquicas na infância:
hoje vemos bonecas com temas e roupas de forte apelo sexual que são
direcionadas para meninas de 6 anos. É comum hoje em dia vermos meninas de
quatro anos com mini-saias “virilha”, por exemplo. Como detalha o documentário,
o problema é que enquanto uma parte da criança aceita cognitivamente usar
mini-saias e maquiagens aos sete anos de idade, a outra parte do psiquismo não
está madura o suficiente para lidar com as consequências emocionais de sair em
público como uma Britney Spears em miniatura. E com os meninos, ideias de
violência, poder e dominação já em pouca idade, passam a mensagem que
quaisquer diferenças devem ser resolvidas com violência.
Por isso, numa das declarações mais contundentes
do documentário, o Dr. Michael Prody, psiquiatra infantil, disparou: “Esses
marqueteiros são muito semelhantes aos pedófilos. São especialistas em
crianças. Se você vai ser um pedófilo ou um marqueteiro de crianças, você tem
que saber sobre as crianças e o que elas vão querer”.
A cilada dos vídeos educativos
A
última fronteira para essa nova ciência do consumo seria a primeira infância,
quando ainda o bebê não consegue entender a sintaxe da manipulação
publicitária e mercadológica. Nesse ponto, o documentário entra no universo dos
vídeos, animações e softwares supostamente educacionais e pedagógicos. Se o
mais importante nos dois primeiros anos de desenvolvimento cerebral para a criança é a relação direta com outras crianças e a interação
com o espaço físico, para quê a mediação de uma tela?
O
espaço e as interações estariam sendo sabotados: telas atrás de mini-vans,
computadores, celulares, telas de TV com Nickelodeon e DVDs portáteis para
bebês. Sem chance de procurarem se acalmar sozinhas ou inventarem brincadeiras
por conta própria, viciam-se em telas. E, como aponta o documentário, é exatamente
isso que quer a indústria do marketing: crianças de tenra idade sendo treinadas
a compreender as imagens bidimensionais de uma tela.
Em
termos diretos: ver TV só treina o cérebro a ver mais TV – e tornar a criança
menos crítica e vulnerável às manipulações neurocomportamentais do marketing e
publicidade.
Ficha Técnica |
Título: Crianças Conumidoras – a comercialização da infância
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Diretor: Adriana Barbaro e Jeremy Earp
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Roteiro: Adriana Barbaro e Jeremy Earp
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Entrevistados: Enola Aird, Daniel Acuff, Michael Brody, Josh Golin entre
outros
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Podução: Media Education Foundation
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Distribuição: Media Education Foundation
Ano: 2008
País: EUA
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