Quando falamos em ditaduras, logo imaginamos um governo totalitário que suspende as liberdades individuais e o Estado de Direito mantendo uma nação subjugada por um forte aparato repressivo policial e militar. Essa é uma ditadura clássica, mas não perfeita, porque ainda necessita do terror, violência e censura e a mídia é o seu maior inimigo. No filme mexicano “A Ditadura Perfeita” (“La Dictadura Perfecta”, 2014, disponível na Netflix) encontramos o estado da arte de uma ditadura híbrida e perfeita, sob o véu da democracia formal, fundada na relação promíscua entre grande mídia, políticos, narcotráfico e Forças Armadas. Uma sátira mordaz da política do México na qual a gestão dos meios de comunicação e dos escândalos de corrupção fazem eleger qualquer presidente que a aliança narco-militar-midiática queira. Ser o leitor encontrar no filme qualquer semelhança com a realidade política brasileira NÃO é mera coincidência.
William Bonner, âncora do Jornal Nacional da Globo, liga para o ministro do STF Gilmar Mendes, no celular, e pergunta: “Vai decidir alguma coisa importante hoje? Mando ou não mando um repórter?” E o ministro responde: “Depende... Se você mandar o repórter, eu decido alguma coisa importante”. Quem fez esse relato é o professor da USP Clóvis de Barros, no livro “Devaneios Sobre a Atualidade do Capital”.
Começo da noite do domingo. Sai o resultado final das eleições municipais de São Paulo de 2020: ganha Bruno Covas, do PSDB, que naquele momento se dirigia ao diretório do partido para uma coletiva com a imprensa. O apresentador Cesar Tralli está ao vivo na Globo e num link conversa com o repórter que está no local onde ocorrerá a coletiva. Todos estão ansiosos à espera do novo prefeito. Dos estúdios, Tralli tranquiliza: “ele me mandou um whatsapp para mim dizendo que já está chegando...”.
Dois pequenos flagrantes das relações promíscuas entre a grande mídia e os acontecimentos políticos, aquilo que este humilde blogueiro (acompanhando Neil Gabler) chama de Efeito Heisenberg: a mídia não cobre mais a realidade, mas o efeito que a cobertura extensiva cria na realidade – o cálculo de Gilmar Mendes atrair as lentes das câmeras e a preocupação de Bruno Covas cumprir o timing da grade horária da Globo – sobre esse conceito, clique aqui.
Esse seria, por assim dizer, o pecado original da chamada sociedade do espetáculo: a realidade foi seduzida pela onipresença das mídias, resultando numa negação consciente do real – os agentes sociais começam a colocar a realidade em suspensão ao agirem pragmaticamente: do lado dos agentes, a busca por visibilidade midiática ao produzir acontecimentos (ou pseudo-eventos) para fins propagandísticos, estratégicos, timing etc.; e do lado das mídias, a busca por conteúdos noticiosos e altos índices de audiência.
É sobre essa promiscuidade e a sedução da realidade (política, econômica etc.) como forma de manipulação política que trata o tragicômico filme mexicano A Ditadura Perfeita (La Dictadura Perfecta, 2014), dirigida por Luis Estrada. O diretor já era conhecido por criticar o sistema político do país através da sátira com seu filme anterior El Infierno sobre a guerra das autoridades mexicanas com os cartéis de drogas.
Apenas que dessa vez Estrada não deixa espaço para redenções: o título já informa o conceito central do filme – no passado, as ditaduras eram regimes totalitários que ocultavam a tortura e violência sob o véu da censura e da invisibilidade. Jornalistas e mídias eram seus inimigos. Hoje, elas são perfeitas porque, ao contrário buscam visibilidade através da aliança com a grande mídia. Agora, o véu da ocultação é a Democracia liberal no seu aspecto mais formal: eleições, partidos, propaganda política, governos eleitos etc.
Formalmente tudo parece democrático porque é visível midiaticamente. Apenas que o véu oculta uma outra realidade: a promiscuidade entre jornalistas, repórteres, produtores, diretores e executivos da grande mídia com essa democracia formal. Em síntese, a guerra híbrida de informações: conjunto de operações psicológicas baseadas em estratégias de distração, sentimentalismo, medo e discurso infantilizado.
A Ditadura Perfeita parece uma versão estendida (2h e 23min) de dois filmes clássicos dos anos 1990 que de forma seminal trataram dessas relações híbridas da grande mídia com a política: O Quarto Poder, de Costa-Gavras (a forma como um repórter manipula os acontecimentos de um sequestro num museu para elevar a audiência da emissora no horário nobre) e Mera Coincidência, de Barry Levinson (para distrair a opinião pública do escândalo sexual do presidente, um RP do governo e a grande mídia inventam uma guerra).
Crianças sequestradas, prostitutas e narcotraficantes proliferam no filme, construindo uma teia de relações cínicas (e com muito humor negro) envolvendo militares, políticos e os agentes do conglomerado de comunicações mexicano.
O Filme
Logo na primeira sequência acompanhamos uma gigantesca gafe diplomática cometida pelo presidente (Sergio Mayer) que é uma impagável mix do narcisismo de Collor de Mello (vitorioso nas eleições brasileiras de 1989) com a personalidade limítrofe de Bolsonaro: diante do embaixador dos EUA ele defende que os EUA deveriam relaxar as fronteiras com o México porque os mexicanos fazem qualquer trabalho melhor do que os negros americanos. Detalhe: o presidente dos EUA naquele momento é Obama...
O “El Presidente” que ocupa o Palácio de Los Pinos foi o resultado de uma aliança da TV MX (emulando a Televisa, o maior conglomerado de comunicação do país) e as Forças Armadas. Agora, vive às turras com as constantes gafes do presidente em rede nacional.
Diante dessa última, a mais grave (com enorme repercussão nas redes sociais), o diretor da TV decide criar um acontecimento para desviar a atenção do povo. Um general entrega à TV um vídeo comprometedor de corrupção envolvendo o governador Carmelo Vargas (Damián Alcázar) – um escroque envolvido até a medula com milícias e cartéis de narcotráfico. O vídeo e a denúncia explodem a audiência da emissora e, junto, a imagem do governador.
Desesperado para salvar seu futuro político, Vargas decide fechar um acordo secreto com a própria emissora que o denunciou para mudar sua imagem e torná-lo a nova estrela política presidenciável do país. São encarregados para a missão Carlitos (Alfonso Herrera), um ambicioso produtor de televisão e Ricardo Diaz (Osvaldo Benavides), o principal repórter da emissora. No entanto, para lançar esse possível novo candidato à presidência a qualquer custo, a situação pode acabar fugindo do controle.
Principalmente quando no calcanhar de Carmelo Vagas está um idealista líder da oposição, o deputado Agustín Morales (Dagoberto Gama) que pedirá renúncia no Congresso pelas graves provas que comprometem o governador.
Só que as ações organizadas para modificar a percepção do público do político corrupto enfrentam um sério problema: a cada momento ele apronta uma grande besteira como, por exemplo, assassinar desafetos políticos. O que só dificulta a vida do produtor Carlitos.
Tamanho acúmulo de problemas exige a criação de um grande pseudo-evento para distrair a opinião pública.
Duas pequenas gêmeas são sequestradas, aproveitando-se do descuido da babá. A informação chega à Procuradoria de Justiça do Estado, onde a equipe da TV MX decide aproveitar-se da situação para manter a notícia no ar em contínuos segmentos no horário nobre durante vários dias. Fingindo interesse e sempre roubando o foco das câmeras, Carmelo Vargas finge interesse no drama do sequestro e pessoalmente organiza buscas, sempre roteirizadas pelo produtor Carlitos, dando dicas para os melhores ângulos e falas ao governador.
Enquanto isso, a TV MX firma um acordo de exclusividade com os pais das gêmeas sequestradas. Chegando ao limite de contraírem uma alta dívida com o próprio banco do conglomerado de comunicação para complementar o pagamento do resgate exigido pelos sequestradores.
Enquanto isso, uma série de arbitrariedades ocorrem nos bastidores: o deputado da oposição é assassinado, Carlito manipula o sequestro para ser estendido, garantindo audiência e a operação psicológica de distração – o que eles denominam como estratégia da “Caixa Chinesa”.
O sequestro conquista o noticiário nacional, junto com uma telenovela estelar da emissora chamada “Os Pobres Também Amam”, criando uma curiosa dobradinha: o sequestro é sistematicamente roteirizado pelo produtor Carlitos seguindo a linguagem e timing melodramático da telenovela canastrona.
É flagrante a centralidade da TV MX nos acontecimentos políticos acompanhados pelo filme.
Os meios de comunicação possuem duas funções bem clara dentro do sistema social: o modo reprodução (o cotidiano reforço de valores, como, p. ex., a meritocracia, empreendedorismo, o valor moral do trabalho, respeito à lei, à vida etc.) e o modo alarme (quando por algum motivo esses valores estão em risco).
Normalmente esses dois modos não se sobrepõem, funcionam de modo alternado. A virtude de A Ditadura Perfeita é mostrar que num contexto de guerra híbrida (quando um sistema político de ocupação do Estado estabelece relações promíscuas com a grande mídia para gerir operações psicológicas) esses dois modos atuam simultaneamente para criar caos de informações (guerra semiótica criptografada) e dissonância cognitiva na sociedade.
O primeiro efeito é a distração: os graves problemas econômicos nacionais como a disparada inflacionária e a queda da bolsa de valores são colocados em segundo plano pelo telejornal de rede nacional da TV MX - o “Jornal Nacional” mexicano. A telenovela e o drama do sequestro das pequenas gêmeas (sob o protagonismo heroico de Carmelo Vargas) ocupam quase toda a pauta do noticiário.
O eufemismo entra em ação para aumentar ainda mais o efeito diversionista: p. ex., a queda da bolsa é definida como “movimento estratégico para baixo”, para minimizar a gravidade econômica e fazer a atenção dos telespectadores se concentrar unicamente nos gestos heroicos do governador.
Medo e infantilização – alerta de spoilers à frente
O segundo efeito é a infantilização da audiência através da estratégia de canastrice política – os acontecimentos são reportados (ou mesmo roteirizados) dentro da mesma linguagem ficcional ou teledramatúrgica (mocinhos, vilões, plot twists, suspense, desenlace, final feliz etc.) para criar formas infantis de gratificação psíquica para a audiência. Paradoxalmente, quando mais a realidade se aproximar da ficção, mais se tornará verossímil. Por exemplo, a canastrona figura do governador Carmelo Vargas emula os galãs do melodrama “Os Pobres Também Amam”.
Pavimentando o seu caminho para a presidência da república. Não é para menos que, no final, o vemos eleito presidente e tendo como primeira-dama a estrela da telenovela da TV MX.
A infantilização da audiência não se trata apenas do emburrecimento da opinião pública pelo desvio da atenção. Para o pesquisador alemão da chamada “esquerda freudiana”, Fritz Haug, o complemento imaginário da dominação política é o medo, criado pelo sentimento de culpa – variedade tópica do medo na infância – Veja MARCONDES FILHO, Ciro, A linguagem da Sedução, Perspectiva, 1988.
A Ditadura Perfeita mostra o cotidiano miserável da população, sob o domínio de violentas milícias que prestam serviços ao narcotráfico. Seu único entretenimento está no monopólio das comunicações da TV MX que controla o imaginário da população que vê nas telas uma realidade política que reproduz a mesma lógica ficcional de “Os Pobres Também Amam”. Se a vida vai mal, a culpa só pode ser do telespectador, provavelmente por não ter se esforçado o suficiente para poupar ou conseguir o sucesso profissional para consumir tudo aquilo que é oferecido no intervalo publicitário da telenovela.
Dessa forma a introjeção infantil do sentimento de culpa cria a base imaginária perfeita para a dominação política.
O final do filme lembra a mesma conclusão de outra produção mexicana: Nuevo Orden (2020) – nos bastidores está a aliança secreta entre as Forças Armadas, o narcotráfico e o monopólio das comunicações. O próprio general que levou a prova da corrupção contra o governador Carmelo Vargas, no início do filme, liderou o sequestro das gêmeas. Parte de uma ampla operação psicológica para os eleitores apoiarem o novo candidato à presidência que mantenha o status quo. Sob a aparência de que as coisas estão mudando – a ilusão de que as instituições funcionam sob uma democracia formal.
Como declara o produtor da TV MX, Carlito, “fizemos esse presidente. E não há razão para que também não possamos fazer outro com o Carmelo Vargas”.
Ficha Técnica |
Título: A Ditadura Perfeita |
Diretor: Luis Estrada |
Roteiro: Luis Estrada, Jaime Sampietro |
Elenco: Alfonso Herrera, Osvaldo Benavides, Dagoberto Gama, Damián Alcázar, Sergio Mayer |
Produção: Bandidos Filmes, Eficine 226, Estudios Churubascos Asteca |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2014 |
País: Brasil |