Qual a relação entre as ideias do pré-socrático Tales de Mileto e o filme “Redemoinho” (“Maelström”, 2000) do diretor canadense Denis Villeneuve? Está em uma narrativa que certamente é a que melhor explorou o simbolismo místico da água no cinema: um peixe prestes a ser sacrificado para se transformar em fruto do mar em um restaurante narra a “bonita história de uma mulher na longa descida à realidade”. O pai da filosofia ocidental achava que todas as coisas estão “cheias de deuses”. Pode parecer uma ideia poética, mas não para a protagonista de “Redemoinho” que da pior maneira conhecerá essa verdade filosófica – de que suas decisões estão imersas em um mar de sincronismos, tendo o peixe como elemento simbólico central. E de que uma vida inteira pode se transformar no fluxo da mecânica dos fluidos que dá nome ao filme.
O filósofo pré-socrático Tales de Mileto, considerado o pai da filosofia ocidental, acreditava que por trás de todas as coisas haveria um princípio físico, material, chamado “arché”. E esse princípio só poderia ser a água – tudo seria água: a natureza é úmida, os alimentos contém seiva, e os mortos ressecam.
Além disso, partilhava de um, por assim dizer, encantamento do mundo ao acreditar que “todas as coisas estão cheias de deuses”. Tales não tratava da natureza somente, como os atuais discursos ecológicos desenvolvem. Procurava toda a amplitude e profundidade dos significados, indo além do que podermos capturar com nossos sentidos – uma secreta conexão no Todo que faz o mundo existir e se mover.
O filme Redemoinho (Maelström, 2000), dirigido pelo canadense Denis Villeneuve (A Chegada), então com 35 anos, poderia facilmente ser visto como as teses de Tales de Mileto poderiam parecer se ganhassem a tela do cinema. Água é o elemento onipresente: para começar, o narrador, que contará “uma história bonita de uma mulher numa longa viagem em direção da realidade”, é um peixe prestes a ser cortado para ser transformado em fruto do mar em um restaurante.
Água, mar, oceano nas suas mais diversas formas e representações estão onipresentes na narrativa de Redemoinho, numa sucessão de equívocos de uma protagonista que nos faz lembrar da sucessão de azares e equívocos de algum filme dos irmãos Coen, como em Fargo, 1996.
O peixe ao mesmo tempo moribundo e reflexivo não tem muito tempo para contar a história antes de ser eviscerado. Uma história que parece partilhar desse encantamento de um mundo “cheio de deuses” no sentido pretendido por Tales de Mileto – não no sentido mitológico, mas na crença de que há conexões secretas entre todos os acontecimentos e que todos nós estamos imersos num oceano de sincronismos - no sentido dado pelo psicanalista Carl G. Jung: "coincidências significativas", isto é, acontecimentos que se relacionam não por relação causal, mas por relação de significado.
Redemoinho não parece querer apenas partilhar esse maravilhamento pré-socrático, mas chamar atenção à responsabilidade ética e moral de nossos atos: a crença no livre-arbítrio individual nos torna cegos para esses sincronismos, perdendo de vista as consequências das nossas ações, capaz de criar a dinâmica catastrófica cujo nome dá título ao filme, tão estudada pela mecânica dos fluídos.
O Filme
Entre golpes de faca desferidos em seu corpo, um ofegante peixe nos conta sobre uma “bonita história” que está por começar, sobre a “descida à realidade” de uma mulher. Ela é Bibi (Mari-Josée Croze), filha de uma famosa estilista francesa que está passando por uma crise existencial.
Após o último golpe de faca contra o pobre peixe, o filme pula para uma arrepiante cena de aborto em uma clínica médica legalizada. A atraente e até então bem-sucedida Bibi está deprimida e cheia de culpa, que começa a interferir nos negócios que sua família herdou: uma boutique de moda em Quebec. Sem foco, dispersa e com maus resultados, Bibi é afastada da empresa pelo próprio irmão.
Começa antão a descida à realidade anunciada pelo peixe narrador: a teia de conexões e sincronismos, cujo elemento água é onipresente – a rede de imagens oceânicas.
Embriagada, Bibi atropela mortalmente um peixeiro norueguês. Seu amante é um mergulhador que ganha a vida trabalhando nos fundos dos oceanos. Após sair da clínica de aborto, seu caminho está bloqueado por um caminhão de transporte de frutos do mar que teve um acidente e derramou seu conteúdo no meio da rua. Seu carro atravessa o lodo vermelho de peixes esmagados pelos carros. Tenta aplacar sua dor e culpa em longos banhos de duchas.
Ela sonha com enguias e, quando pensamentos suicidas começam a povoar sua mente, no som do carro ouve-se a voz do cantor Tom Waits murmurando: “O oceano não me quer hoje...”. Isso sem falar que Bibi tentará se livrar do carro que atropelou o peixeiro, tentando jogá-lo no mar de uma forma totalmente desastrada.
E a última sequência do filme é a bordo de um navio, com uma linda vista oceânica.
Talvez Rodamoinho seja o filme que melhor trabalha com o simbolismo da água no cinema – de resto, de uma maneira ou de outra, sempre presente nas produções de diversos gêneros.
É um elemento simbólico porque ele sempre está presente em momentos-chave das narrativas (como rio, chuva, tempestade, lago, mar). Ou seja, não aparece como mero ornamento ou contextualização geográfica. Participa como elemento ativo de significação, fazendo parte de mudanças decisivas na ação dos protagonistas ou na interpretação da estória.
Segundo Chevalier e Gheerbrant, a água possui três simbolismos dominantes que podemos identificar em análises fílmicas.
As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte da vida, meio de purificação, centro de regenerescência. Esses três temas se encontram nas mais antigas tradições e formam as mais variadas combinações imaginárias (CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2009).
O oceano do inconsciente
Água como espelho da alma, como inundação que arrasta tudo renovando o cenário de uma história, água como agente que dissolve um mundo de ilusões, como no filme noir, por exemplo.
Mas em Redemoinho, assume também feições freudianas: o oceano, como uma pele fina, esconde a riqueza de mistérios que está abaixo – um símbolo do inconsciente turbulento de Bibi, o redemoinho de culpas.
O aborto de Bibi é o evento central na história. O atropelamento acidental do peixeiro amplifica ainda mais a culpa original, o que nos remete a outra secreta conexão entre a morte do nascituro e peixes: o velho mito biológico que em certo ponto da gestação embriões desenvolvem guelras.
Quando em São Paulo para promover Redemoinho, na Mostra BR de Cinema em 2001, o diretor Denis Villeneuve detalhou essa rede simbólica da sua produção:
"O peixe é o ancestral da raça humana, já que todos viemos da água. Eu gosto da ideia de que na minha alma ainda haja reminescências de peixes. Desiludida com os rumos de sua própria vida, uma jovem empresária (Marie-Josée Croze) vê suas escolhas desmoronarem diante de si. Um aborto lhe parece o caminho mais fácil. As tragédias se sucedem: sua firma vai à falência, ela atropela um trabalhador de uma peixaria, pensa em suicídio. O aborto é um perfeito exemplo de que não nos damos conta do significado de certos atos. Sou a favor de as pessoas terem suas responsabilidades - e responderem por elas. Mas me parece que perdemos nosso senso crítico e, com isso, as instituições acabam sendo destruídas. Estamos vivendo uma espécie de tendência patológica à mentira".
Com Redemoinho acreditamos que Tales de Mileto tinha razão: na busca da arché descobrimos que todas as coisas estão cheias de “deuses” – todos nossos gestos e ações estão conectados em um mar de sincronismos. E descer à realidade é tomar consciência da natureza ética ou moral das nossas decisões.
Ficha Técnica
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Título: Redemoinho
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Diretor: Denis Villeneuve
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Roteiro: Denis Villeneuve
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Elenco: Marie-Josée Croze, Jean-Nicolas Verreault, Stephanie Morgenstern
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Produção: Max Films Productions, Societé de Développement des Enterprises Culturrelles
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Distribuição: Alliance Vivafilm
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Ano: 2000
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País: Canadá
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