Depois do filme “Polícia Federal: a Lei é para Todos” (2017) no cinema ou a série “O Mecanismo” (2018-) na Netflix (duas produções sobre processos que ainda não foram concluídos), agora é a vez de a HBO lançar “Brexit” (“Brexit: The Uncivil War”, 2019), também sobre eventos que ainda estão em desdobramentos: o resultado do referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia ainda não foi homologado e há investigações sobre a ilegalidade da campanha. Esse evento do Reino Unido foi o laboratório para as novas armas de guerra híbrida (algoritmos, mineração de dados e psicometria) que, dois anos depois, seriam aplicados silenciosamente na campanha eleitoral brasileira. Produções audiovisuais que expõem as perigosas relações de narrativas ficcionais com fatos reais que ainda estão em andamento: no Brasil, peças de propaganda para cimentar a realidade por meio da ficção; e na produção HBO a transformação em “thriller político” da grave crítica de como os algoritmos estão minando a democracia.
Muito se fala sobre o papel das novas tecnologias como mídias de convergência e Internet no atual cenário de guerra híbrida – ofensiva de guerra semiótica que impulsionada a guinada nacionalista de direita da geopolítica norte-americana.
Não são apenas os algoritimos da Cambridge Analytica, o feiticeiro da ciência computacional, Robert Mercer, ou o gênio da psicometria e mineração de Big Data, Michal Kosinski, da universidade de Cambridge. Nomes que convergiram nos esforços para a vitória de Trump, por exemplo.
Mas há também algo mais, para além de todas essas novíssimas tecnologias. Algo ainda tradicional, do velho campo das mídias de massas: cinema, TV e audiovisual. Principalmente como a ficção é capaz de cimentar a realidade e como muitas vezes a própria realidade pode emular a ficção.
E parece que o canal de TV por assinatura norte-americano HBO e a plataforma de streaming Netflix fazem também parte disso: a intervenção ficcional em eventos que ainda estão em desdobramento e cujo desfecho ainda é incerto.
Filmes como Polícia Federal: a Lei é para Todos (2017) e a série Netflix O Mecanismo (2018-) são exemplos de produções audiovisuais lançadas em meio às sucessivas fases da Operação Lava Jato. Narrativas assertivas e que têm posicionamento político-ideológico (isto é, verdadeiras peças de propaganda), no calor de acontecimentos que ainda não tiveram conclusão.
Pesadas críticas
O mesmo caso é da produção HBO Brexit (Brexit: The Uncivil War, 2019). Desde o lançamento do trailer, o filme estrelado por Benedict Cumberbatch (O Jogo da Imitação) recebeu pesadas críticas, principalmente dos britânicos: o processo ainda está em desdobramento, a campanha do Brexit está em investigação e a produção da HBO pode interferir numa ação que está na Justiça – a campanha “Vote Leave”. Está sendo acusada de ter gasto 8,8 milhões de libras, muito mais do que a legislação permite e as estratégias nas redes sociais são alvos de discussões. Até por isso, o plebiscito ainda não foi validado.
“F*da-se HBO. Imagine se tivéssemos fazendo isso com o Trump. Vocês estão interferindo no nosso sistema judiciário”, protestou a premiada jornalista do “The Guardian”, Carole Cadwallard.
E mais: a jornalista acusa que uma das produtoras de Brexit, a House Productions, é propriedade de Len Blavatnik. O empresário foi um dos principais doadores de campanha e eventos do atual presidente dos EUA, Donald Trump.
Comparando com as intervenções ficcionais como O Mecanismo e Polícia Federal (explicitamente propagandísticas), Brexit apresenta uma narrativa ambígua. Apesar de didaticamente figurar como a campanha do “Vote Leave” abandonou as formas tradicionais de propaganda e publicidade e explorou inéditas estratégias como a mineração de dados (Cambridge Analytica) nas sombras das redes sociais, Brexit assume um tom narrativo ambíguo e, muitas vezes, tendendo a ficar do lado de Dominic Commings – o cérebro estrategista por trás da campanha vencedora.
Um retrato de Cummings como um político anarquista que queria invadir um sistema político carcomido por uma velha política na qual os britânicos se sentiriam marginalizados e sem controle de suas próprias vidas.
E nessa entrelinha que Brexit deve ser analisado: ao transformar em ficção um fato real que ainda não foi esgotado, o resultado é que a própria suposta denúncia do filme (a falta de ética de uma campanha que criou ódio e polarização) pode se transformar em ficção. E o centro da questão (a transformação da política em uma batalha de algoritmos) em um thriller político ou de ficção científica.
O Filme
Como não poderia deixar de ser, Brexit é centrado no duelo entre o estrategista político e marqueteiro Dominic Cummings (Benedict Cumberbatch) a favor da saída do Reino Unido do bloco europeu no plebiscito de 2016, e Craig Oliver (Rory Kinnear), o articulador da campanha pela permanência do Reino Unido na União Europeia.
O filme inicia colocando o protagonista Cummings numa espécie de prestação de contas, em um tribunal que acontece quatro anos depois do Brexit. A narrativa começa figurando-o como uma figura fria, cerebral, obcecada e sem escrúpulos – capaz de fazer uma aliança escusa com uma companhia que opera nas profundezas das redes sociais: a Cambrige Analytica de Steve Bannon, turbinada pelos algoritmos psicométricos de Michal Kosinski.
Mas aos poucos é humanizada pela gravidez de risco da esposa, numa estressante situação que ocorre simultaneamente aos preparativos para o plebiscito.
O ritmo de Brexit é frenético, mas entremeado com verdadeiras aulas sobre mídias sociais e as diferenças com as formas tradicionais de marketing e propaganda política.
Principalmente a diferença crucial entre as estratégias tradicionais de massificação e as táticas de viralização postas em ação por Cummings – enquanto o seu adversário ainda vivia na propaganda política tradicional de panfletagem para massificar um slogan, a campanha “Vote Leave” buscava os perfis favoráveis nas redes sociais para direcionar mentiras (como, por exemplo, de que a saída da EU faria o Reino Unido economizar milhões de libras e beneficiaria a economia), deixando o trabalho de viralização para as conexões sociais do perfil-alvo.
Principalmente, acompanhamos o sofrimento de Craig Oliver em tentar compreender o elemento novo que estava irrompendo naquele processo do referendo: ainda preso às práticas mercadológicas tradicionais como pesquisas qualitativas em grupos de discussão (focus group) e inconformado com a repercussão da mídia às fake news da campanha “Vote Leave”, vê perplexo como as redes de proteção das instituições democráticas estão cada vez mais esgarçadas.
Ressentimento e polarização
A cena-chave é quando, numa das reuniões do focus group, uma mulher que apoia o Brexit é acusada de racismo para explodir em lágrimas e ressentimento ao dizer que nada tinha a perder e que se sentia sua vida marginalizada.
A ideia de que as pessoas possam apoiar qualquer coisa que prometa sacudir o sistema político foi o mote principal da retórica antissistema, galvanizada por Cummings, Trump (e aqui por Bolsonaro) usando tecnologia moderna e minerando os perfis exatos de pessoas que poderiam espalhar o ressentimento como um vírus psíquico.
A críptica fala de Craig Oliver ao ver explodindo diante de seus olhos, em um mero grupo de discussão, o ressentimento que cria a polarização para travar qualquer debate, é a conclusão de tudo:
“Não tinha percebido, agora é tarde demais... A campanha deles começou há 20 anos... um lento conta-gotas de medo e ódio, sem que ninguém quisesse se contrapor. Pior, nós também o fizemos. Quantos de nós culpamos a Europa, ou o estrangeiro quando era politicamente conveniente?”, lamenta ao ver a discussão em grupo terminar de forma abrupta.
Porém, o problema de filmes sobre fatos reais que ainda estão em desdobramento é a narrativa ficcional. Brexit estereotipa os personagens dentro do tradicional maniqueísmo hollywoodiano, inviabilizando toda a suposta crítica ética que o filme faz à campanha do Brexit.
Os políticos, e principalmente o prefeito de Londres, Boris Johnson, são figurados como ridículos, ultrapassados, limítrofes. Enquanto Cummings é antissistêmico, jovem, idealista, quase um anarquista que pretende explodir o sistema por dentro. Como declara ao final no suposto tribunal de prestação de contas: “Há uma falha de sistema nesse país e em todo Ocidente. O que faz numa falha de sistema? Reconfigura-se. Foi o que eu fiz...”.
No final, a narrativa de Brexit corrobora com a mesma retórica antissistêmica de figuras tão velhas quanto a própria política. Por isso mesmo sabem os pontos fracos da democracia representativa. Nada há de novo, a não ser o niilismo interesseiro, que explora o ressentimento para uma finalidade imediata.
Porém há uma questão final: o registro ficcional de um fato real que ainda não terminou. Enquanto peças de propaganda como a série O Mecanismo atuam como cimentos da realidade (querem legitimar fatos a partir da ficção), em Brexit observamos outro dispositivo híbrido – dentro do esquema maniqueísta, converte todo o núcleo teórico da crítica (como os algoritmos corroem a democracia) em thriller político ou “conspiratório”.
Para quê? Para minar ou neutralizar qualquer critica articulada no mundo real contra uma tecnologia que destrói a democracia. Transformar qualquer voz contrária em “teoria da conspiração”.
Ficha Técnica
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Título: Brexit
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Diretor: Toby Haynes
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Roteiro: James Graham
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Elenco: Benedict Cumberbatch, Sarah Belcher, Rory Kinnear, Lucy Russel
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Produção: Baffin Media, Channel 4 Television Corporation
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Distribuição: HBO
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Ano: 2019
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País: Reino Unido
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