domingo, outubro 29, 2017

Curta da Semana: "Dive" - o espelho muito além de Narciso


Em todas as culturas, o espelho inspira tanto o medo (o duplo como prenúncio da morte) como o reflexo da verdade e sinceridade. Porém, na nossa cultura de selfies e redes sociais, ressuscitamos o mito de Narciso, apaixonando-nos apenas pela superfície dos reflexos e imagens. Mas, e se os nossos reflexos se rebelaram contra nós e, simplesmente, darem as costas, assim como naquele famoso quadro do pintor surrealista Rene Magritte? Esse é o tema do curta australiano “Dive” (2014): um homem que perdeu tudo, a tal ponto que o próprio reflexo está lhe abandonando. Mas ele descobrirá algo mais, para além da superfície do espelho: o abismo submarino do seu próprio inconsciente.

Há uma lenda sufista sobre o aspecto numinoso do espelho, isto é, o terror que o conhecimento de si inspira. Segundo essa lenda, Deus criou o Espírito sob a forma de pavão e mostrou sua própria imagem no espelho da Essência Divina. O pavão foi tomado pelo temor e deixou cair alguma gotas de suor, do qual todos os outros seres foram criados – o desdobramento cósmico do espírito.

Por isso em todas as culturas o espelho pode tanto inspirar o medo (ver-se a si mesmo, o duplo, como prenúncio da própria morte), como o reflexo da verdade, da alma, a sinceridade. Espelho vem de “speculum”, especulação, atividade intelectual de busca da Verdade.

Em uma cultura atual de selfies e redes sociais repletas com fotos de nós mesmos, fica difícil imaginarmos um tempo no qual as pessoas podiam ficar com medo das própria imagens.

Porém, com o passar dos tempos, do espelho à fotografia, a contemplação de uma réplica de si mesmo deixou de ser um evento misterioso quando entrou no campo dos simulacros: a possibilidade de retocagem dos negativos fotográficos e a maquiagem e cosmética ajudando a produzir uma máscara com a qual nos defrontamos com os espelhos.

O curta Dive, do australiano Matthew Saville, se baseia em toda essa mitologia sobre espelhos, alma e o duplo. Mas se inspira principalmente na famosa pintura surrealista de Rene Magritte chamada “A Reprodução Proibida” – o quadro mostra um homem olhando para o espelho, mas ao invés do seu rosto vemos refletida a parte de trás de sua própria cabeça.


“Enquanto eu estava sentado olhando para esse quadro pensei: por que de repente o seu reflexo se voltaria contra você? Este curta-metragem é a minha resposta para essa pergunta”, explicou Saville.

Assim como na pintura de Magritte, Dive vai explorar essa constelação de simbolismo em torno do espelho. A sociedade e a cultura podem ter transformado esse misterioso objeto em símbolo narcísico e de simulação do eu. Mas por trás da superfície e artifício encontramos a verdade do “speculum”: nós mesmos.

O Curta


Encontramos George, um homem que perdeu tudo, até a capacidade de acabar com a própria vida. Mas é quando o próprio reflexo no espelho se volta contra ele, é que realmente as coisas começam a ficar muito estranhas.

Depois de um suicídio mal sucedido no banheiro, George olha para o espelho para descobrir que o seu próprio reflexo está lhe abandonando.

Apavorado com essa bizarra experiência metafísica, George quebra o espelho. Para descobrir por trás dele uma espécie de abismo submarino do seu próprio inconsciente.  

   Autorreflexão, medo, suicídio e tristeza são temas trazidos à tona em um ritmo de humor físico, assim como nas comédias antigas.

Com roupa de mergulho, snorkel, cilindros de ar e máscara, George irá se aventurar nessa verdadeira metáfora do inconsciente, para enfrentar a si mesmo.

O curta joga com uma atmosfera claustrofóbica de um pequeno banheiro com um espelho que paradoxalmente se abre para a profundeza submarina.


Simbologia da Água no cinema


A água é o elemento arquetípico que completa essa complexa constelação de simbolismo em torno do espelho.

Em todas as culturas as representações simbólicas da água giram em torno de três temas centrais: fonte da vida, meio de purificação e meio de regenerescência. A água é a infinidade dos possíveis. Mergulhar nas águas é retornar às origens, carregar-se de novo num imenso reservatório de energia.

No cinema é bem evidente como essas representações da água participam nas viradas narrativas e nos momentos decisivos dos protagonistas. Momentos decisivos sobre a ponte que atravessa um rio, o protagonista que mergulha no oceano para retornar transformado interiormente – a jornada de autodescoberta do protagonista no oceano Pacífico em As Aventuras de Pi (2012). Ou o casal sobre um lago congelado para representar um relacionamento que “esfriou” em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004). O papel simbólico representado pela chuva no cinema noir.

O elemento água (ou a sua ausência em estado líquido) é recorrente no cinema como símbolo que pontua as narrativas e determina suas viradas.

Em Dive não poderia ser diferente, principalmente associado ao espelho como objeto central da narrativa. Água e reflexo geralmente estão associados ao mito de Narciso – herói famoso pela sua beleza e orgulho e condenado pelos deuses a apaixonar-se pelo próprio reflexo na superfície de um lago, até definhar e morrer.

Para George se autoconhecer, teve que ir além do simulacro da superfície narcísica do reflexo: mergulhou no mar do psiquismo para viver o terceiro tema do arquétipo da água: regeneração, renascimento – conhecer a si mesmo, nem que seja ao custo de lutar fisicamente com seu próprio duplo.

A grande virtude de Dive é condensar em poucos minutos um complexo simbolismo, de forma leve e com muito humor negro.

E uma condensação pelo viés tipicamente gnóstico da autodivinização e autoconhecimento: a busca pelo Sagrado não passa por um Salvador que veio morrer pelos nossos pecados como na religião, mas pela busca do Sagrado dentro de nós mesmos – o mergulho no próprio psiquismo.



Ficha Técnica 

Título: Dive (curta)
Diretor: Matheu Saville
Roteiro: Matheu Saville
Elenco:  Byron Coll
Produção: 
Distribuição: Vimeo
Ano: 2014
País: Austrália

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