Em todas as culturas, o espelho inspira
tanto o medo (o duplo como prenúncio da morte) como o reflexo da verdade e
sinceridade. Porém, na nossa cultura de selfies e redes sociais, ressuscitamos
o mito de Narciso, apaixonando-nos apenas pela superfície dos reflexos e imagens. Mas,
e se os nossos reflexos se rebelaram contra nós e, simplesmente, darem as
costas, assim como naquele famoso quadro do pintor surrealista Rene Magritte?
Esse é o tema do curta australiano “Dive” (2014): um homem que perdeu tudo, a
tal ponto que o próprio reflexo está lhe abandonando. Mas ele descobrirá algo
mais, para além da superfície do espelho: o abismo submarino do seu próprio
inconsciente.
Há uma lenda sufista sobre o aspecto
numinoso do espelho, isto é, o terror que o conhecimento de si inspira. Segundo
essa lenda, Deus criou o Espírito sob a forma de pavão e mostrou sua própria
imagem no espelho da Essência Divina. O pavão foi tomado pelo temor e deixou
cair alguma gotas de suor, do qual todos os outros seres foram criados – o desdobramento
cósmico do espírito.
Por isso em todas as culturas o espelho
pode tanto inspirar o medo (ver-se a si mesmo, o duplo, como prenúncio da
própria morte), como o reflexo da verdade, da alma, a sinceridade. Espelho vem
de “speculum”, especulação, atividade intelectual de busca da Verdade.
Em uma cultura atual de selfies e redes
sociais repletas com fotos de nós mesmos, fica difícil imaginarmos um tempo no
qual as pessoas podiam ficar com medo das própria imagens.
Porém, com o passar dos tempos, do espelho
à fotografia, a contemplação de uma réplica de si mesmo deixou de ser um evento
misterioso quando entrou no campo dos simulacros: a possibilidade de retocagem
dos negativos fotográficos e a maquiagem e cosmética ajudando a produzir uma
máscara com a qual nos defrontamos com os espelhos.
O curta Dive, do australiano Matthew Saville, se baseia em toda essa
mitologia sobre espelhos, alma e o duplo. Mas se inspira principalmente na
famosa pintura surrealista de Rene Magritte chamada “A Reprodução Proibida” – o
quadro mostra um homem olhando para o espelho, mas ao invés do seu rosto vemos
refletida a parte de trás de sua própria cabeça.
“Enquanto eu estava sentado olhando para
esse quadro pensei: por que de repente o seu reflexo se voltaria contra você?
Este curta-metragem é a minha resposta para essa pergunta”, explicou Saville.
Assim como na pintura de Magritte, Dive
vai explorar essa constelação de simbolismo em torno do espelho. A sociedade e
a cultura podem ter transformado esse misterioso objeto em símbolo narcísico e
de simulação do eu. Mas por trás da superfície e artifício encontramos a
verdade do “speculum”: nós mesmos.
O Curta
Encontramos George, um homem que perdeu
tudo, até a capacidade de acabar com a própria vida. Mas é quando o próprio
reflexo no espelho se volta contra ele, é que realmente as coisas começam a
ficar muito estranhas.
Depois de um suicídio mal sucedido no
banheiro, George olha para o espelho para descobrir que o seu próprio reflexo
está lhe abandonando.
Apavorado com essa bizarra experiência
metafísica, George quebra o espelho. Para descobrir por trás dele uma espécie
de abismo submarino do seu próprio inconsciente.
Autorreflexão,
medo, suicídio e tristeza são temas trazidos à tona em um ritmo de humor
físico, assim como nas comédias antigas.
Com roupa de mergulho, snorkel, cilindros
de ar e máscara, George irá se aventurar nessa verdadeira metáfora do
inconsciente, para enfrentar a si mesmo.
O curta joga com uma atmosfera
claustrofóbica de um pequeno banheiro com um espelho que paradoxalmente se abre
para a profundeza submarina.
Simbologia da Água no cinema
A água é o elemento arquetípico que
completa essa complexa constelação de simbolismo em torno do espelho.
Em todas as culturas as representações
simbólicas da água giram em torno de três temas centrais: fonte da vida, meio
de purificação e meio de regenerescência. A água é a infinidade dos possíveis.
Mergulhar nas águas é retornar às origens, carregar-se de novo num imenso
reservatório de energia.
No cinema é bem evidente como essas
representações da água participam nas viradas narrativas e nos momentos
decisivos dos protagonistas. Momentos decisivos sobre a ponte que atravessa um
rio, o protagonista que mergulha no oceano para retornar transformado
interiormente – a jornada de autodescoberta do protagonista no oceano Pacífico
em As Aventuras de Pi (2012). Ou o
casal sobre um lago congelado para representar um relacionamento que “esfriou”
em Brilho Eterno de Uma Mente Sem
Lembranças (2004). O papel simbólico representado pela chuva no cinema
noir.
O elemento água (ou a sua ausência em
estado líquido) é recorrente no cinema como símbolo que pontua as narrativas e
determina suas viradas.
Em Dive
não poderia ser diferente, principalmente associado ao espelho como objeto
central da narrativa. Água e reflexo geralmente estão associados ao mito de
Narciso – herói famoso pela sua beleza e orgulho e condenado pelos deuses a
apaixonar-se pelo próprio reflexo na superfície de um lago, até definhar e
morrer.
Para George se autoconhecer, teve que ir
além do simulacro da superfície narcísica do reflexo: mergulhou no mar do
psiquismo para viver o terceiro tema do arquétipo da água: regeneração,
renascimento – conhecer a si mesmo, nem que seja ao custo de lutar fisicamente
com seu próprio duplo.
A grande virtude de Dive é condensar em poucos minutos um complexo simbolismo, de forma
leve e com muito humor negro.
E uma condensação pelo viés tipicamente
gnóstico da autodivinização e autoconhecimento: a busca pelo Sagrado não passa
por um Salvador que veio morrer pelos nossos pecados como na religião, mas pela
busca do Sagrado dentro de nós mesmos – o mergulho no próprio psiquismo.
Ficha Técnica
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Título: Dive (curta)
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Diretor: Matheu Saville
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Roteiro: Matheu Saville
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Elenco: Byron Coll
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Produção:
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Distribuição: Vimeo
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Ano: 2014
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País: Austrália
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