Com “Mãe!” (Mother!, 2017), o diretor Darren
Aronofsky (“Pi”, “Fonte da Vida” e “Noé”) confundiu crítica e público: enquanto
os distribuidores classificavam o filme como “terror” ou “mistério” para o
público, os críticos tentam entendê-lo como alguma coisa entre Polanski e De
Palma. Mais uma vez, o diretor desafia a todos com sua hermética simbologia
herética e gnóstica com incursões pela mitologia judaica, cabalística e cristã.
A novidade é que “Mãe!” alcança o nível mais alto de abstração da carreira cinematográfica
de Aronofsky ao transformar um casarão em metáfora do centro do conflito da
Cosmologia gnóstica: a tensão entre Sophia (o
Feminino Divino) e o Demiurgo (a divindade inferior com os seus agentes, os
Arcontes). Conflito que acompanha o mundo desde a sua Queda, Criação,
Destruição e Recomeço. E o mistério que envolve os moradores daquele casarão
(um poeta e sua esposa) como a parábola de como essa tensão cósmica se reflete
no psiquismo de cada um de nós.
Darren Aronofsky pregou uma peça para o
público e a crítica. Na sua literalidade, Mãe!
(Mother!, 2017) é um dos filmes ao
mesmo tempo mais bizarros e audaciosos lançado por um grande estúdio
hollywoodianos nos últimos tempos.
Os distribuidores anunciaram
Mãe! como uma espécie de filme de
terror (“thriller”, “mistério” etc.) na falta de qualquer outra tradicional
rotulagem de gênero cinematográfico. E certamente deve ter confundido e
decepcionado muitos espectadores, como testemunhado por esse humilde blogueiro
no cinema: “que diabos será que está acontecendo?”, muitos se faziam essa
pergunta enquanto coçavam a cabeça.
Claro, os críticos sabem que
Aronofsky nunca se esquivou de um cinema controverso como nos filme A Fonte da Vida (2006) e Noé (2014), mas esse mergulho numa
espécie de horror metafórico fez muitos críticos também coçarem a cabeça à
procura de racionalizações: será que é um horror que rende homenagem aos
mestres Polanski e De Palma?
Outros viram o filme como
uma parábola ecologicamente correta, hipótese certamente partilhada pela
Paramount Pictures e distribuidores como Columbia Pictures e 20th Century Fox:
a protagonista de Mãe! como a própria
“Mãe Terra”, o planeta como a Gaia senciente que é sistematicamente destruída
pela humanidade até o ponto em que se vinga do homem com catástrofes sísmicas e
climáticas para tirá-lo da face da Terra. Um roteiro inspirado na atual fusão
entre o ambientalismo radical e antigos mitos neo-pagãos.
E também é sabido que os filmes de Aronofsky
fazem profundas incursões pela mitologia judaica, cabalística e cristã como no
seminal Pi (1998), mostrando o
confronto numerológico entre Cabala e Alquimia; ou em Noé, no qual o mito bíblico do Dilúvio Universal foi narrado
através do herético protagonismo da Serpente do Paraíso – merecendo o ataque de
fundamentalistas cristãos. Assim como certamente esse Mãe! receberá ataques
histéricos desses mesmos espectadores, principalmente pela alucinante sequência
final.
Porém, Mãe! surpreendeu mesmo esse humilde blogueiro que, claro, esperava
mais uma narrativa gnóstica sobre Queda e Ascensão. Mas Aronofsky vai mais além,
no nível mais abstrato da Cosmologia Gnóstica: a conflituosa relação entre
Sophia (o Feminino Divino) e o Demiurgo (a divindade inferior com os seus
agentes, os Arcontes). Conflito que acompanha o mundo desde a sua Queda,
Criação, Destruição e Recomeço.
Enquanto as tradicionais
narrativas gnósticas no cinema e audiovisual (Matrix, Show de Truman, Sense 8 etc.) concentram-se na figura
humana prisioneira num cosmos encoberto pelo véu da ilusão, Mãe! muda o foco – na verdade a humanidade
é o pano de fundo da tensão cosmológica fundamental, que acaba refletido no próprio
psiquismo de cada indivíduo: a mítica e conturbada relação (amor e ódio) entre
Sophia e o Demiurgo, cujo conflito é o que faz esse Universo existir, segundo a
mitologia gnóstica.
O Filme
Vamos começar pela
literalidade de Mãe!
É um filme extremamente
simples em termos do set de filmagem. Toda ação se passa no interior de uma
casarão remoto com os primeiros indícios estranhos: ela parece ter sofrido um
incêndio há tempos e está em ruínas, necessitando de reparação. Vemos a
personagem de Jennifer Lawrence (a Mãe) olhando para intermináveis pastos
vazios que rodeiam o casarão. Não vemos nenhum rua, trilha ou estrada que
conduza àquela casa. Não há caixa de correio ou fios elétricos que integrem
aquela casa com o mundo exterior. Por isso, percebe-se que estamos no início de
uma narrativa não convencional, algo entre o literal, a metáfora e a parábola.
Lawrence passa o tempo
fazendo reparos na casa, enquanto o seu marido interpretado por Javier Bardem é
um poeta que aparentemente possui obras de sucesso no passado. Mas naquele
momento vive um bloqueio criativo, enquanto Lawrence está preocupada com o
estado emocional de Bardem.
Mas logo as coisas começam a
ficar estranhas com a chegada de um casal identificado nos créditos apenas como
“Homem” (Ed Harris) e “Mulher” (Michelle Pfeiffer). Um casal intrusivo e
vulgar.
Sob os olhares desconfiados
de Lawrence, Bardem oferece hospitalidade para deixa-los passarem a noite. O
escritor revela para sua esposa que o homem é um grande fã do seu trabalho, tem
sua saúde abalada e, como último desejo, gostaria de conhecer seu ídolo.
Mas rapidamente, na medida
em que o filme avança, vão sendo quebradas todas as regras do realismo –
Lawrence coloca as mão numa parede que está para ser pintada para, numa câmera
em zoom, vermos algo que se assemelha a um coração morrendo.
Logo mais chegam os filhos
rivais daquele casal intruso, para em seguida um matar o outro num ato brutal
de ciúmes. Para em seguida ficar uma mancha de sangue no chão que transforma-se
numa ferida aberta que jamais cicatriza, embora Lawrence a cubra com um tapete.
A partir desse ponto, todas
as regras do realismo cinematográfico foram esquecidas e ingressamos no campo
do metafórico, do surreal e do bizarro. Reforçado pela sucessão de close ups
que só amplifica a sensação claustrofóbica.
Assim como no filme Noé, em Mãe! Aronofsky vai buscar no Gênesis bíblico os fundamentos da
narrativa. O Homem e a Mulher são Adão e Eva que destroem a tranquilidade de um
estranho Jardim do Éden – ele está sendo reconstruído depois de uma destruição
anterior. Pfeiffer invade o quarto proibido da casa e acaba destruindo o “fruto
proibido” – uma espécie de cristal que ao final entenderemos todo o sentido.
Caim mata Abel, representados
pelos filhos daquele casal intrusivo, para em seguida dezenas chegarem para uma
festa do funeral de Abel, bebendo e farreando, para o desespero de Lawrence que
quer a todo custo manter a integridade da casa.
Até que finalmente, apesar
das advertências de Lawrence de que a pia não estava ainda chumbada, um casal
quebra a pia provocando uma inundação que molha a todos.
Fica claro que estamos na
metáfora do terreno bíblico do Dilúvio Universal e da aliança final entre Deus
e Noé (no qual Deus se compromete a não infringir mais dor em qualquer ser
vivente), trazendo a Bardem a tão esperada inspiração – testemunhar o drama da
humanidade finalmente desbloqueia a criatividade do escritor. Ele e Ela fazem
amor que resulta numa gravidez. E tudo parece voltar à tranquilidade.
Ele finalmente publica o seu
novo livro que produz estrondoso sucesso – sugerido pela chegada de fãs e a
mídia na porta do casarão. Mas novamente Bardem os interesses de Bardem
tornam-se totalmente egoístas. Ele permite que hordas de fãs entrem na casa
para idolatrá-lo, sob o olhar mais uma vez desesperado de Lawrence, agora em
estágio avançado de gravidez.
Por todo os cantos do
casarão, os fãs criam cultos de adoração que começam a rivalizar entre si, ao
mesmo tempo em que Lawrence tem seu filho. Mas logo que pode, Bardem rouba-lhe
o bebê para mostrar à multidão ensandecida que o venera como o filho de Deus –
o escritor famoso.
Uma clara metáfora de como o
Demiurgo instrumentalizou a vinda do aeon Jesus para esse planeta para
transformá-lo em ícone religioso para idolatria e alienação das massas.
E, como sabemos na narrativa
bíblica, o “filho de Deus”será logo assassinado e sua carne devorada pela
multidão numa sequência de tirar o fôlego.
Certamente nesse ponto, os
fundamentalistas católicos saltam indignados das suas poltronas no cinema: Mãe! Apresenta uma aterrorizante paródia
do ritual de comunhão cristão do vinho e da hóstia – beber o sangue e comer o
corpo de “Cristo”.
O mito do Feminino Divino
Fica claro que o drama
humano (a confusão entre religiosidade, mídia, vaidade e violência) é apenas o
pano de fundo para um conflito muito maior, de dimensões cosmológicas, que
Aronofsky quer nos apresentar: a tensão amor/ódio entre o Feminino Divino (Sophia)
e a divindade masculina do Demiurgo, o enlouquecido, vaidoso e egoísta
“escritor” desse cosmo.
Mas que, apesar de famoso e
poderoso (capaz de mobilizar as massas para adorá-lo) necessita do amor de
Sophia (representado no filme pelo cristal) para que o cosmos continue
funcionando.
Na mitologia gnóstica, Sophia (na tradição
gnóstica simboliza simultaneamente o aspecto feminino de Deus e a alma humana)
foi um “aeon” que foi a responsável pela transição do imaterial para o
material, do numenal ao sensível, causado por uma falha – uma paixão que
produziu um filho ( o Demiurgo, “Yaldabaoth”, o “filho do caos”).
Sophia decai prisioneira no mundo material
conseguindo infundir alguma fagulha espiritual no cosmos físico produzido pelo
Demiurgo. Inconsciente da existência de Sophia (no filme representado pelo
egoísmo de Bardem), o Demiurgo acredita ser a única divindade existente e que o
mundo físico existe apenas pela sua vontade. Porém, sua criação não passa de
formas etérias vazias. O dinamismo, vitalidade e sentido é dado pela luz
espiritual infundida por Sophia nesse cosmos – no filme representado pela
inspiração que Lawrence dá à obra final de Bardem.
O gnosticismo herético de Aronofsky fica
evidente na figura do cristal: ao mesmo tempo que é o “fruto proibido” do
“Jardim do Éden” representado pelo casarão, é aquilo que mais o homem necessita
buscar através da gnose: o amor e o vínculo com Sophia, constantemente roubado
dos homens pelo Demiurgo através da ilusão da idolatria por meio dos suas
principais armas: religião, mídia e a vaidade.
Mas, apesar de tudo, Sophia ama sua falha, o
Demiurgo. Em um eterno retorno, a cada Criação e Destruição (no filme, a casa
que é sempre destruída e reconstruída pela Mãe), cede a ele o “cristal” (a
fagulha da Luz, o Amor) para que tudo recomece na esperança de que um dia o
homem tome para si o cristal. O amor de Sophia é o amor pela própria humanidade
ainda ignorante e que sempre decai – carma?
A nota é a impressionante performance dos
atores Javier Bardem e, principalmente, Jennifer Lawrence: é difícil
interpretar personagens tão metafóricos e míticos como o Demiurgo e Sophia.
Ficha Técnica
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Título: Mãe!
|
Diretor: Darren Aronofsky
|
Roteiro: Darren Aronofsky
|
Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer
|
Produção: Protozoa Pictures
|
Distribuição: Paramount Pictures, 20th Century Fox,
Columbia Pictures
|
Ano: 2017
|
País: EUA
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