Por meio da violência, excesso e humor
negro, “O Bar” (“El Bar”, 2017) do diretor espanhol Álex de la Iglesia
(conhecido como o “Tarantino espanhol”), é o reflexo dos tempos atuais onde
temos a sensação de que a qualquer hora tudo pode vir abaixo. O que poderia
acontecer em mais uma manhã rotineira e aborrecida em um bar de Madrid?
Repentinamente, um grupo fica preso em um boteco, olhando pela vitrine um
cenário semi-apocalíptico. Aos poucos, as pessoas aparentemente normais desse grupo vão se tornando cruéis,
misóginas, violentas e fascistoides. Mas o filme evita cair no clichê de uma
suposta fatalidade da “natureza humana” – na verdade o bar é um microcosmo no
qual os indivíduos, quando confrontados com uma situação de crise com seus
medos e reações, simplesmente replicam o discurso que o Estado e a mídia
descrevem a própria sociedade. Foucault chamava isso de "capilaridade" ou "microfísica do Poder". Filme disponível no Netflix.
“Pessoas normais me aterrorizam”, diz o
diretor espanhol Álex de la Iglesia no Festival de Málaga para discorrer sobre
seu último filme O Bar (El Bar, 2017), uma comédia de
claustrofóbico humor negro. Por assim dizer, uma “comédia” cuja narrativa, na
medida que avança, torna o nosso riso cada vez mais amarelo e petrificado.
Conhecido com um “Tarantino espanhol” com
filmes que exploram violência, o excesso e humor corrosivo com forte acento
social (Las Brujas de Zugarramudi, Balado
do Amor e do Ódio, Crime Ferpeito), nesse filme Álex de la Iglesia quer
mostrar como pessoas normais, quando submetidas ao medo e proximidade da morte,
transformam-se em algo bem diferente do que imaginam ser. Isto é, seu eu verdadeiro
escondido por trás da capa cotidiana de normalidade.
O Bar começa com um grupo de personagens
diversos em mais uma manhã de uma dia que se inicia no Centro de Madrid, no
bairro hipster de Malasaña. O diretor consegue construir um microcosmo da sociedade
espanhola atual, submetido a alguma ameaça exterior desconhecida que os mantém
prisioneiros em um pequeno boteco.
O Bar, o símbolo da cotidianidade,
normalidade e das relações cordiais da esfera pública.
Mas também das atuais relações sociais cercadas
pelo medo que domina a todos de que qualquer coisa pode ocorrer a qualquer hora
– um clima de insegurança e temor de que a qualquer momento tudo pode vir
abaixo, diante das notícias diárias sobre atentados, ameaças terroristas e
catástrofes climáticas e sísmicas.
Seria lugar-comum abordar esse tema pelo
ponto de vista da natureza humana: a besta-fera que supostamente existiria
dentro de cada um de nós, à espera do momento certo para pular para fora. De
Hobbes a Freud, essa visão pessimista da natureza humana acompanhou a
civilização racionalista Ocidental – a natureza humana como essencialmente
egoísta que se deixada livre, sem um contrato social e um Estado soberano
punitivo, levaria os homens a autodestruição e a violência de todos contra
todos.
Mas O
Bar evita entrar nesse lugar comum da interioridade humana: Sim! Os homens
podem matar uns aos outros, mas não porque exista uma essência maligna que
acompanharia a humanidade desde a sua criação. De resto, reminiscência
judaico-cristã que vê homem como pecador em busca da salvação de si mesmo.
Ao transformar aquele pequeno bar em um
microcosmo, Álex de Iglesia mostra como o comportamento humano (seus medos e
reações) simplesmente replicam o discurso que o Estado e a mídia descrevem a
própria sociedade. Aquele boteco no Centro de Madrid é mais um nódulo da
capilaridade do Poder – como pessoas normais introjetam esse discurso
jogando-se umas contra as outras.
O Filme
Um grupo por distintos
motivos e circunstâncias acaba se encontrando em um bar: uma mulher que marcou
um encontro com um jovem em um site de relacionamentos, um policial aposentado,
uma senhora viciada na máquina caça-níqueis do bar, um morador de rua que gosta
de recitar em voz alta trechos bíblicos e sempre em busca de restos de lanches
dos clientes, um publicitário hipster alheio a tudo concentrado no seu laptop
sentado junto ao balcão... e um homem corpulento que entra às pressas em
direção ao banheiro, tossindo e tropeçando.
Todos observados pela proprietária (uma idosa
de cabelos desgrenhados) e o garçom que há anos trabalha ali. O que poderia
acontecer em um dia tão rotineiro e aborrecido?
De repente ouve-se um forte
estampido e um pedestre cai na calçada em frente da vitrine do bar, diante dos
fregueses atônitos. Correria e gritos nas ruas que rapidamente se esvaziam.
Alguém sai do bar para ajudar o homem caído ensanguentado para também ser
alvejado com um tiro na cabeça. Algum sniper? Um atentado terrorista?
Os sinais dos celulares
desaparecem. Ligam a TV em busca de informação e nada veem nos telejornais.
Para em seguida, alguém perceber que os corpos ensanguentados na calçada misteriosamente
sumiram. Todos estão presos naquele bar sem saber o que ocorre, olhando para as
ruas vazias.
Esse enigma inicial (que
infelizmente Álex de Iglesias entrega a solução muito rápido) é o melhor
elemento do filme, lembrando bastante o conto O Nevoeiro de Sthephen King. A primeira impressão é de algum
cenário semi-apocalíptico.
Porém, elementos da crítica
social aos poucos vão surgindo na narrativa: pilhas de pneus levados por
policiais são queimados com lança-chamas na rua em frente ao bar. Mas os
telejornais, relatam incêndio no Centro de Madrid, motivo da evacuação. Está
claro que todos estão imersos em uma imensa farsa acobertada ao vivo pela grande
mídia.
Uma farsa do Governo? Algum
tipo de experiência secreta em larga escala? Guerra?
O microcosmo e a capilaridade do Poder – alerta de spoilers à frente
O Bar
também vai lembrar de outra produção de terror espanhola: o filme REC (2008) e o tema do Mal como ameaça
viral e exponencial que irrompe no cotidiano – o inesperado e o incontrolável
que explode diante de um grupo de pessoas normais imersas em suas rotinas. A
propósito, esse tema parece ser recorrente na atual cinematografia espanhola
como Viral (2013), Infectados (2009), La Hora Fria (2006), entre outras.
O filme entrega rápido
demais o enigma que dá o charme inicial: está em andamento algum protocolo
drástico para conter algum tipo de infecção viral – simplesmente o bairro está
sendo isolado e os cidadãos pura e simplesmente eliminados numa ação combinada
entre exército e polícia. E toda ação encoberta pelas informações falsas da
grande mídia.
De forma lenta e fragmentada, o grupo
escondido no bar vai aos poucos tomando pé da situação, fazendo vir à tona tudo
de mais obscuro da personalidade de cada um: crueldade, misoginia, egoísmo,
autoritarismo e fascismo – o policial aposentado, e de pavio curto (o único
armado e avesso a qualquer conversa ou opiniões contrárias) decide confinar,
metade do grupo suspeito de estar contaminado, no porão do estabelecimento.
Começamos a perceber como
Álex de Iglesias figura o bar como um microcosmo: as mesmas medidas radicais e
desumanas do Exército e Estado são replicadas por parte do grupo.
A mesma crueldade dos
policiais que queimam corpos (mortos por snipers) e pneus como tática para
esconder tudo da opinião pública, é repetida de forma violenta entre os membros
do grupo preso no bar.
“Há gente boa no mundo, mas
está em vias de extinção”, disse o diretor na entrevista promocional do filme
no Festival de Málaga. Mas a virtude de O
Bar é de fazer um paralelo entre a ação violenta e impiedosa nas ruas em
frente ao bar. Enquanto lá dentro vemos a repetição de tudo em pequena escala.
Dessa forma a narrativa evita de cair no clichê da “natureza humana”, para dar
um forte enfoque político e social.
Se o pesquisador alemão Jürguen
Habermas (o último remanescente vivo da Escola de Frankfurt) via nos bares,
café e clubes do século XIX como a origem da moderna esfera pública
(literatura, imprensa, opinião pública), Álexis de Iglesias desconstrói tudo
isso como uma espécie de falsa cordialidade: os interesses privados acabam
tomando de assalto a aparente esfera pública de contrato social – leia
HABERMAS, Jürguen, Mudança Estrutural da
Esfera Pública, Editora Unesp, 2014.
A grande ironia do filme é
fazer essa desconstrução no interior de um bar, o lócus da cordialidade e do
convívio social.
“Sua puta louca. Por que
tenho que salvar você e não eu?”, grita um dos protagonistas a certa altura no
filme quando todos lutam pelas seringas de uma suposta vacina para a cura da
infecção.
Mas esse egoísmo nada tem a
ver com algum destino inevitável da “natureza humana”. Assim como os interesses
privados da elite e do poderes usam a esfera pública como um véu de ilusões
(construídas principalmente pela mídia), da mesma forma os interesses egoístas
se ocultam na aparência pública da cordialidade.
Foucault chamava isso de
“capilaridade” ou “microfísica do poder”.
Ficha Técnica
|
Título: O Bar
|
Diretor: Álex de Iglesias
|
Roteiro: Jorge
Guerricaecheverria, Álex de Iglesia
|
Elenco: Blanca Suarez, Mario Casas, Carmen Nachi, Jaime Ordóñez, Secun
de la Rosa, Terele Pávez, Joaquim Climent
|
Produção: Nadie es Perfecto, Atrasmedia Cine
|
Distribuição: Sony Pictures Releasing
|
Ano: 2017
|
País: Espanha
|
Postagens Relacionadas |