segunda-feira, outubro 02, 2017

A capilaridade do Poder em um boteco no filme "O Bar"


Por meio da violência, excesso e humor negro, “O Bar” (“El Bar”, 2017) do diretor espanhol Álex de la Iglesia (conhecido como o “Tarantino espanhol”), é o reflexo dos tempos atuais onde temos a sensação de que a qualquer hora tudo pode vir abaixo. O que poderia acontecer em mais uma manhã rotineira e aborrecida em um bar de Madrid? Repentinamente, um grupo fica preso em um boteco, olhando pela vitrine um cenário semi-apocalíptico. Aos poucos, as pessoas aparentemente normais desse grupo vão se tornando cruéis, misóginas, violentas e fascistoides. Mas o filme evita cair no clichê de uma suposta fatalidade da “natureza humana” – na verdade o bar é um microcosmo no qual os indivíduos, quando confrontados com uma situação de crise com seus medos e reações, simplesmente replicam o discurso que o Estado e a mídia descrevem a própria sociedade. Foucault chamava isso de "capilaridade" ou "microfísica do Poder". Filme disponível no Netflix.  
  
“Pessoas normais me aterrorizam”, diz o diretor espanhol Álex de la Iglesia no Festival de Málaga para discorrer sobre seu último filme O Bar (El Bar, 2017), uma comédia de claustrofóbico humor negro. Por assim dizer, uma “comédia” cuja narrativa, na medida que avança, torna o nosso riso cada vez mais amarelo e petrificado.

Conhecido com um “Tarantino espanhol” com filmes que exploram violência, o excesso e humor corrosivo com forte acento social (Las Brujas de Zugarramudi, Balado do Amor e do Ódio, Crime Ferpeito), nesse filme Álex de la Iglesia quer mostrar como pessoas normais, quando submetidas ao medo e proximidade da morte, transformam-se em algo bem diferente do que imaginam ser. Isto é, seu eu verdadeiro escondido por trás da capa cotidiana de normalidade.

O Bar começa com um grupo de personagens diversos em mais uma manhã de uma dia que se inicia no Centro de Madrid, no bairro hipster de Malasaña. O diretor consegue construir um microcosmo da sociedade espanhola atual, submetido a alguma ameaça exterior desconhecida que os mantém prisioneiros em um pequeno boteco.

O Bar, o símbolo da cotidianidade, normalidade e das relações cordiais da esfera pública.

Mas também das atuais relações sociais cercadas pelo medo que domina a todos de que qualquer coisa pode ocorrer a qualquer hora – um clima de insegurança e temor de que a qualquer momento tudo pode vir abaixo, diante das notícias diárias sobre atentados, ameaças terroristas e catástrofes climáticas e sísmicas. 


Seria lugar-comum abordar esse tema pelo ponto de vista da natureza humana: a besta-fera que supostamente existiria dentro de cada um de nós, à espera do momento certo para pular para fora. De Hobbes a Freud, essa visão pessimista da natureza humana acompanhou a civilização racionalista Ocidental – a natureza humana como essencialmente egoísta que se deixada livre, sem um contrato social e um Estado soberano punitivo, levaria os homens a autodestruição e a violência de todos contra todos.

Mas O Bar evita entrar nesse lugar comum da interioridade humana: Sim! Os homens podem matar uns aos outros, mas não porque exista uma essência maligna que acompanharia a humanidade desde a sua criação. De resto, reminiscência judaico-cristã que vê homem como pecador em busca da salvação de si mesmo.

Ao transformar aquele pequeno bar em um microcosmo, Álex de Iglesia mostra como o comportamento humano (seus medos e reações) simplesmente replicam o discurso que o Estado e a mídia descrevem a própria sociedade. Aquele boteco no Centro de Madrid é mais um nódulo da capilaridade do Poder – como pessoas normais introjetam esse discurso jogando-se umas contra as outras.

O Filme


Um grupo por distintos motivos e circunstâncias acaba se encontrando em um bar: uma mulher que marcou um encontro com um jovem em um site de relacionamentos, um policial aposentado, uma senhora viciada na máquina caça-níqueis do bar, um morador de rua que gosta de recitar em voz alta trechos bíblicos e sempre em busca de restos de lanches dos clientes, um publicitário hipster alheio a tudo concentrado no seu laptop sentado junto ao balcão... e um homem corpulento que entra às pressas em direção ao banheiro, tossindo e tropeçando.

  Todos observados pela proprietária (uma idosa de cabelos desgrenhados) e o garçom que há anos trabalha ali. O que poderia acontecer em um dia tão rotineiro e aborrecido?


De repente ouve-se um forte estampido e um pedestre cai na calçada em frente da vitrine do bar, diante dos fregueses atônitos. Correria e gritos nas ruas que rapidamente se esvaziam. Alguém sai do bar para ajudar o homem caído ensanguentado para também ser alvejado com um tiro na cabeça. Algum sniper? Um atentado terrorista?

Os sinais dos celulares desaparecem. Ligam a TV em busca de informação e nada veem nos telejornais. Para em seguida, alguém perceber que os corpos ensanguentados na calçada misteriosamente sumiram. Todos estão presos naquele bar sem saber o que ocorre, olhando para as ruas vazias.

Esse enigma inicial (que infelizmente Álex de Iglesias entrega a solução muito rápido) é o melhor elemento do filme, lembrando bastante o conto O Nevoeiro de Sthephen King. A primeira impressão é de algum cenário semi-apocalíptico.

Porém, elementos da crítica social aos poucos vão surgindo na narrativa: pilhas de pneus levados por policiais são queimados com lança-chamas na rua em frente ao bar. Mas os telejornais, relatam incêndio no Centro de Madrid, motivo da evacuação. Está claro que todos estão imersos em uma imensa farsa acobertada ao vivo pela grande mídia.

Uma farsa do Governo? Algum tipo de experiência secreta em larga escala? Guerra?

O microcosmo e a capilaridade do Poder – alerta de spoilers à frente


 O Bar também vai lembrar de outra produção de terror espanhola: o filme REC (2008) e o tema do Mal como ameaça viral e exponencial que irrompe no cotidiano – o inesperado e o incontrolável que explode diante de um grupo de pessoas normais imersas em suas rotinas. A propósito, esse tema parece ser recorrente na atual cinematografia espanhola como Viral (2013), Infectados (2009), La Hora Fria (2006), entre outras.

O filme entrega rápido demais o enigma que dá o charme inicial: está em andamento algum protocolo drástico para conter algum tipo de infecção viral – simplesmente o bairro está sendo isolado e os cidadãos pura e simplesmente eliminados numa ação combinada entre exército e polícia. E toda ação encoberta pelas informações falsas da grande mídia.


 De forma lenta e fragmentada, o grupo escondido no bar vai aos poucos tomando pé da situação, fazendo vir à tona tudo de mais obscuro da personalidade de cada um: crueldade, misoginia, egoísmo, autoritarismo e fascismo – o policial aposentado, e de pavio curto (o único armado e avesso a qualquer conversa ou opiniões contrárias) decide confinar, metade do grupo suspeito de estar contaminado, no porão do estabelecimento.

Começamos a perceber como Álex de Iglesias figura o bar como um microcosmo: as mesmas medidas radicais e desumanas do Exército e Estado são replicadas por parte do grupo.

A mesma crueldade dos policiais que queimam corpos (mortos por snipers) e pneus como tática para esconder tudo da opinião pública, é repetida de forma violenta entre os membros do grupo preso no bar.

“Há gente boa no mundo, mas está em vias de extinção”, disse o diretor na entrevista promocional do filme no Festival de Málaga. Mas a virtude de O Bar é de fazer um paralelo entre a ação violenta e impiedosa nas ruas em frente ao bar. Enquanto lá dentro vemos a repetição de tudo em pequena escala. Dessa forma a narrativa evita de cair no clichê da “natureza humana”, para dar um forte enfoque político e social.


Se o pesquisador alemão Jürguen Habermas (o último remanescente vivo da Escola de Frankfurt) via nos bares, café e clubes do século XIX como a origem da moderna esfera pública (literatura, imprensa, opinião pública), Álexis de Iglesias desconstrói tudo isso como uma espécie de falsa cordialidade: os interesses privados acabam tomando de assalto a aparente esfera pública de contrato social – leia HABERMAS, Jürguen, Mudança Estrutural da Esfera Pública, Editora Unesp, 2014.

A grande ironia do filme é fazer essa desconstrução no interior de um bar, o lócus da cordialidade e do convívio social.

“Sua puta louca. Por que tenho que salvar você e não eu?”, grita um dos protagonistas a certa altura no filme quando todos lutam pelas seringas de uma suposta vacina para a cura da infecção.

Mas esse egoísmo nada tem a ver com algum destino inevitável da “natureza humana”. Assim como os interesses privados da elite e do poderes usam a esfera pública como um véu de ilusões (construídas principalmente pela mídia), da mesma forma os interesses egoístas se ocultam na aparência pública da cordialidade.

Foucault chamava isso de “capilaridade” ou “microfísica do poder”.


Ficha Técnica

Título: O Bar
Diretor: Álex de Iglesias
Roteiro: Jorge Guerricaecheverria, Álex de Iglesia
Elenco:  Blanca Suarez, Mario Casas, Carmen Nachi, Jaime Ordóñez, Secun de la Rosa, Terele Pávez, Joaquim Climent
Produção: Nadie es Perfecto, Atrasmedia Cine
Distribuição: Sony Pictures Releasing
Ano: 2017
País: Espanha

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