O que nos torna humanos?
Personalidade? Memória? A existência da Alma? “Anti Matter” (2016) é mais um
filme de ficção científica que busca essa especificidade humana, ao lado de uma
tradição que vai da série de TV clássica Jornada nas Estrelas (o episódio
“Mirror, Mirror” de 1967), passando pelo drama dos replicantes mais humanistas
do que os humanos em “Blade Runner” (1982) até chegarmos ao gnóstico "Cidade das
Sombras" (Dark City, 1998) no qual aliens tentam encontrar a alma humana. Poderá um dia a Ciência,
através da mecânica quântica, encontrar a alma em algum ponto
entre a matéria e a luz numa dobra do contínuo tempo-espaço? Esse é o tema de
“Anti Matter”, uma narrativa minimalista, cerebral e com baixíssimo orçamento
sobre jovens doutorandos em Química, Física e Computação se deparam com um
estranho efeito colateral em um experimento com eletrólitos para baterias: a
existência da alma. Mais uma sugestão do nosso ativista leitor Felipe Resende.
Qual a essência humana? O que define a
“humanidade” do animal chamado homem. O que nos torna animais distintos dos
outros sobre a face da Terra? Individualidade? Personalidade? Memória? Alma? Emoções,
Sentimentos? Inteligência?
Embora a Ciência seja um produto direto
da inteligência humana, ironicamente esvaziou sua “humanidade” ao defini-la
como a capacidade de um ser vivo se adaptar ao meio ambiente – de
microrganismos até o “colaborador” em uma corporação que usa sua “inteligência
emocional” para se adaptar aos cenários profissionais mutantes para ser eficaz
e eficiente.
Ao mesmo tempo, o projeto das cartografias
e topografias da mente (levado a cabo pelas neurociências, Inteligência Artificial
e ciências computacionais) resume a memória, emoções e sentimentos a sinapses
neuronais quantificáveis e localizáveis em regiões do cérebro. Processos
bioquímicos quantificáveis através do código binário.
Enquanto a individualidade e a
personalidade são diluídas e niveladas por outro produto da inteligência
humana: os meios de comunicação.
Resta a alma, elemento irredutível,
impossível de ser medido ou pesado. Por isso, a Ciência despacha a alma para o
campo da fé e da religião. Nem a Filosofia lida bem com ela, preferindo
trabalhar com a noção dúbia de “espírito”.
Mas na medida em que a Ciência se
aventura nos paradoxos quânticos do universo subatômico, os mistérios dos
interstícios da matéria são cada vez maiores. Talvez aí se encontre o fenômeno
da alma e da própria humanidade.
Esse é o tema do filme Anti Matter (2016), uma ficção
científica cerebral, minimalista, com baixíssimo orçamento e ritmo lento,
seguindo a trilha de filmes como Primer,
Ex Machina e Cube.
Três jovens doutorandos em Física, Química
e Computação na Universidade de Oxford, envolvidos em uma pesquisa sobre eletrólitos
para baterias, descobrem um estranho comportamento de elétrons: negando o
princípio de Lavoiser de que na natureza nada se perde, tudo se transforma,
atônitos os pesquisadores descobrem que partículas estão desaparecendo em
experiências com baterias num pequeno laboratório. Ou estão se movendo? Mas
para onde?
Dentro do paradigma da
mecânica quântica, a resposta é irresistível: abriram um wormhole (“buraco de minhoca”) em escala microscópica no qual
partículas são descolocadas por uma dobra do espaço-tempo.
É nessa campo de intersecção
entre a Ciência experimental e a Metafísica que Anti Matter irá nos mostrar como cientistas se confrontam com a
questão da existência da alma.
O Filme
Anti
Matter acompanha a
pesquisadora em Química Ana (Yaiza Figueroa), uma norte-americana de origem
hispânica, os companheiros de experimentos Liv (Philippa Carson), uma especialista
em computação e o físico Nate (Tom Barber-Duffy).
Após o grupo descobrir o
misterioso efeito colateral do experimento de eletrolise, Ana tenta não apenas
estabilizar o buraco de minhoca. Ela pretende leva-lo para a escala
macroscópica com o tele-transporte de pequenos objetos. De pequenas peças de
mármore, passando para vasos de plantas passando para seres vivos como
lagartas, pequenas aves e gatos.
Num pequeno laboratório sujo
e bagunçado nos porões da Universidade, o grupo percebe que para estabilizar o wormhole terão que ter uma capacidade
computacional muito maior do que os servidores da Universidade.
Liv, com seu conhecimento de
hacker, configura um vírus para poder roubar o poder de processamento de outras
máquinas e servidores ao redor do mundo, colocando-os à serviço da
estabilização do pequeno buraco de minhoca do laboratório, capaz de
tele-transportar objetos e pequenos seres vivos a poucos centímetros.
Nesse ponto o filme lembra o
clássico O Homem do Terno Branco de
1951 (no qual um cientista descobre uma fibra indestrutível e que não suja,
deixando em pânico a indústria têxtil com a durabilidade das roupas): os jovens
pesquisadores acreditam que revolucionarão a história do transporte, das
metrópoles e da matriz energética do planeta – imagine o pânico da indústria
petrolífera e automobilística com o tele-transporte quântico...
Porém o filme não desenvolve esse potencial
tema político, preferindo uma guinada metafísica – ambicionando um potencial
comercial para descoberta e a necessidade de conseguir investimento
empresarial, sentem a necessidade de enviar um ser humano com sucesso através
do wormhole.
Os jovens tiram a sorte no
palito e Ana ganha a oportunidade de ser a cobaia humana para o experimento. A
partir o pequeno tele-transporte quântico de Ana, Anti Matter dá uma guinada metafísica, abandonando a temática
política que se desenhava.
Memória e Paranoia
Vemos Ana acordando no dia
seguinte em sua casa. Aparentemente tudo
está normal no day after da histórica
experiência. Mas percebemos algo diferente, a começar pela fotografia do filme
que muda – tonalidade de cores mais fortes e contrastantes. Além disso, Ana
percebe uma progressiva perda de memória de curto prazo.
O filme revive os insights
de Memento (2000) de Christopher
Nolan: Ana leva um bloco de anotações com lembretes e espalha cartazes com
mensagens para si mesma.
Com a perda da memória, vem
logicamente a paranoia: seus colegas de experimentos estão estranhos e
reticentes com ela. E para aumentar a atmosfera caótica de desorientação,
cresce a presença de manifestantes pelos direitos dos animais do lado de fora
da Universidade, pedindo o fim de experimento com animais e a polícia descobre
a origem do vírus, que infestou milhões de máquina pelo mundo, no endereço IP
da própria Universidade.
E para piorar, alguém com
uma máscara de chipanzé (provavelmente um manifestante) invadiu sua casa e
roubou seu laptop e todas as anotações do seu projeto.
Será que Ana está em um
universo paralelo alternativo? Há um complô dos seus amigos pesquisadores para
roubarem o seu projeto?
Alma, Luz e Matéria – Alerta de spoilers à frente
A discussão da alma como
aquilo que nos torna realmente humanos é um dos grandes temas da ficção
científica – desde a série clássica de TV Jornada
nas Estrelas (1966-69, no episódio em que capitão Kirk divide-se em dois
após um tele-transporte para a nave Interprise
- um Kirk bom mas sem élan e um Kirk mau e cheio de energia) passando
por Blade Runner (1982, no qual
replicantes ganham alma e passam a amar a própria vida, muito mais do que os
humanos que os criaram) até o gnóstico Cidade
das Sombras (Dark City, 1998, no
qual aliens, através de um gigantesco experimento, tentam entender a
durabilidade da alma humana).
Anti
Matter parece se inspirar
no argumento do episódio “Mirror, Mirror” de 1967 da série televisiva Jornada
nas Estrelas no qual um problema no tele-transporte faz Kirk e seus
companheiros viajarem para um universo paralelo, no qual se alternam a versão
Kirk e Spock espelhada “más” e as “boas”.
Apenas que as duas versões
de Ana, resultantes do buraco de minhoca, coexistem no mesmo universo. Porém,
não são versões espelhadas, mas diferentes “camadas” de um ser humano: a dobra
do contínuo espaço-tempo tele-transporta apenas a matéria... deixando a alma (ou
a “luz”) para trás.
A Ana “matéria” tem as
memórias, porém sente-se vazia e sem vitalidade. Enquanto a Ana “alma” não
possui massa e perde as memórias de curto prazo.
O curioso é que Anti Matter lembra a curiosa teoria a
respeito da fotografia formulada pelo escritor francês Balzac no século XIX:
toda fotografia é um “crime espectral” porque cada exposição à câmera roubaria
as camadas que compõem o nosso ser.
O filme Skew (2011), inspirado nesse insight de Balzac, vai mais além: cada
foto roubaria as nossas memórias, ao fixar a luz dos nossos corpos no suporte
fotográfico.
Por isso, ao descrever,
através da mecânica quântica, como a Ciência poderia dar de frente com a
existência “física” da alma, o filme vai de encontro com a gnóstica
identificação da própria alma com a “fagulha de luz” espiritual. Fagulha de luz
esquecida na nossa vida imersa no cosmos material, cuja redescoberta exige o
autoconhecimento gnóstico, seja qual for a jornada espiritual escolhida:
xamânica, espiritualista, hermética, esotérica etc.
E no final, a narrativa de Anti Matter mostra como a cisão de Ana
entre luz e matéria, revela como essa fagulha de luz espiritual se revela no
cotidiano: alegria, boa-fé, brilho, vitalidade, confiança etc. Exatamente
aquilo que a Ana “luz” detém e a Ana “matéria” perdeu.
E o resultado dessa clivagem
interna é o medo e a paranoia.
Ficha Técnica
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Título: Anti Matter
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Diretor: Keir Burrows
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Roteiro: Keir Burrows
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Elenco: Yaza Figueroa, Philippa Carson, Tom Barber-Duffy, Yolanda
Vasquez
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Produção: Cast Iron Pictures
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Distribuição: Uncork’d Entertainment
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Ano: 2016
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País: EUA
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