Cidade de
Santos/SP. Feriado nacional de sete de setembro. Esse humilde blogueiro em mais
uma caminhada pela cidade natal juntando lembranças da infância e juventude se
confronta com uma sucessão de sintomas de um País psiquicamente doente. Ao
redor do tradicional desfile cívico-militar na orla da praia, de singelas
selfies de famílias com filhos e cachorros tiradas com soldados em trajes de
ações de choques civis (talvez antevendo futuros distópicos) com reluzentes
espadas a pessoas transtornadas gritando xingamentos contra Lula, Dilma etc..
Tudo isso ao lado de sem tetos e catadores de latas de alumínio nos jardins da
praia replicando o mesmo ódio, dessa vez contra um escultor de areia acusado de
fazer uma estátua da Dilma... A ex-presidenta falou em “calmaria que antecede o
tsunami”. Mas talvez esse tsunami seja uma explosão de ressentimento sem
direção ou sentido, apenas à espera de um gatilho sócio-econômico. Um tsunami bem
longe da tradicional narrativa de “luta e resistência” tão apreciada pela
esquerda.
Mal sabia o que
me aguardava na minha cidade natal, Santos. Morando em São Paulo, talvez pelo
tamanho da metrópole, percebo que os sintomas sociais manifestam-se de maneira esparsa, revelando-se apenas em eventos especiais com grandes
concentrações. Para assim ficarem bem explícitos e visíveis.
Mas em Santos,
uma cidade bem menor, esses sintomas manifestam-se de maneira concentrada,
sucessiva, em alguns momentos quase em metástase. E num feriado nacional da
Independência do Brasil, com a cidade cheia de visitantes, aí vira quase uma
espécie de laboratório social a céu aberto.
Chego na cidade
um dia antes, para evitar os indefectíveis congestionamentos na descida da
serra. No dia seguinte, bem cedo, saio para uma caminhada pela cidade. Sempre
bom fazer um passeio sentimental pela memória dos lugares da infância e
juventude.
Mas não sem
antes assistir, nos telejornais das primeiras horas da manhã, ao bate-bumbo da
delação premiada de Palocci a respeito do “Pacto de Sangue” Lula-Odebrecht.
Expressão visivelmente escolhida a dedo e bem canastrona. Penso: Semioticamente
perfeita! Sangue... vermelho... PT... comunismo... pacto... sangue...
vampiro... chupar sangue... a corrupção que suga o País... semiose perfeita.
Essas caras da Lava Jato são profissionais.
Ponho os pés na
rua e saio caminhando. Passo em frente à portaria de um prédio onde dois
respeitáveis senhores conversam. Ouço: “o Lula mandou tirar as câmeras do
Palácio do Planalto...”. Nem me preocupo em aguçar a audição para ouvir mais.
Nessa narrativa já sei qual é o final. Passo reto concentrado nos meus passos.
O catador de latas e a escultura de areia
Minha flanagem
sentimental ganha os jardins da praia. Bastaram cinco minutos para ver perplexo
um pobre catador de latas de alumínio, arrastando um grande saco plástico
preto, gritando histérico e apontando para um escultor que trabalhava num bloco
de areia. “Olha! Ele tá fazendo uma estátua da Dilma... A Dilma não presta!”. E
pôs-se a vociferar um discurso antipetismo alucinado para o ar – não soube
determinar se estava alcoolizado ou sofria algum distúrbio psíquico.
Lembrei-me do
relato de um amigo que num desses dias encontrou uma senhora em um
supermercado, parada, olhando para os produtos em uma gôndola, ruminando para
si mesma xingamentos contra Dilma e Lula.
Dei mais uns
passos e percebi que o suposto busto em areia da Dilma era, na verdade, a
escultura de um peixe. E lá foi o catador gritando transtornado o seu monólogo
anti-Dilma, ironicamente vestido de camiseta e boné vermelhos...
Lembrou-me dos
estudos empíricos sobre recepção da TV por espectadores com desordem
esquizofrênica: tornam-se paranoicos e tomam metáforas e efeitos de realidade
televisivos ao pé-da-letra – passam a crer que pessoas de dentro da TV estão
olhando para elas - Leia MARCONDES FILHO. A Produção Social da Loucura, Paulus, 2003.
Levanto a minha
vista e tomo um susto! Um susto típico de pessoas da minha geração, que
passaram pela ditadura militar: vejo uma fila interminável de veículos do
exército. Uma fila verde oliva serpenteando a orla da praia a perder de vista.
Mas o susto e más lembranças passam rápidas – é nada mais do que um desfile
cívico-militar de sete de setembro.
Passo ao lado
das bandas de fanfarra de diversas escolas de Santos que evoluíam ao longo da
avenida, com um repertório bem eclético: de Anita a Michael Jackson. Nos tempos
da ditadura os temas musicais eram mais, digamos, marciais.
Selfies, Polícia Federal e o “kit galã feio”
Mas lá atrás,
no final do bloco de bandas escolares que avançavam na avenida, estavam os
personagens mais emblemáticos daquela festa cívico-militar: outra fila de
carros anfíbios, de assalto e de transporte do Exército e Marinha com soldados
portando espadas embainhadas, além de reluzentes carros da Polícia Federal
(todas as viaturas com direito a “pretinho” nos pneus) e ao lado agentes
federais com o indefectível “kit galã feio” (coque, barba, corpos sarados) e lenços
bandanas na cabeça com estampa da bandeira nacional. Parece que a presença
diária dos policiais federais nos telejornais da grande mídia despertou neles
um certo, por assim dizer, orgulho cívico...
E cercando soldados e agentes federais, pais
com seus filhos e cãezinhos tirando selfies ao lado deles. Forte déjà vu. As manifestações anti-Dilma lá
em São Paulo e os chamados “coxinhas” tirando selfies ao lado da polícia de
choque armada até os dentes.
Chego em casa e
encontro a TV sintonizada no SPTV: Márcio Canuto, jornalista especializado em
matérias de “infotenimento” encerrando a suíte “Caminhos da Independência” no
qual o seu traquejo folclórico transforma a rota de Dom Pedro I em São Paulo
num roteiro turístico – ou talvez o que restará do País: atração turística com
insistentes “empreendedores” perseguindo turistas estrangeiros enquanto seguram
“moderninhas” e “minizinhas” – aquelas maquininhas de crédito e débito.
E toca mais
bate-bumbo sobre o “pacto de sangue” de Lula com a Odebrecht, segundo o ínclito
delator Palocci, cujas imagens são repetidas ad infinitum em cada canal disponível na TV.
E mais atualizações da sinistra notícia (além de uma aberração jurídica) de que a
Polícia Militar publicara portaria para retirar da Polícia Civil da
investigação dos homicídios dolosos praticados por PMs no Brasil.
Após o almoço, retorno para a praia, dessa vez
com filhos e esposa... até mais uma vez me deparar com aquele catador de latas
de alumínio, ainda mais possesso e gritando a esmo contra Dilma e, agora,
também contra Lula. Constato que aquela escultura em areia foi destruída pelo
catador que, por algum motivo inescrutável, via na figura do peixe a imagem da
ex-presidenta Dilma.
Dou alguns
passos na areia fofa e quente e vislumbro um guarda-sol com estampa do artista
plástico brasileiro, radicado nos EUA, Romero Brito. E na sombra daquele
guarda-sol, um atento leitor confortavelmente sentado diante do livro aberto de
Vladimir Netto chamado Lava Jato: O juiz
Sérgio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil. Cena prá lá de
emblemática e repleta de simbolismos.
E nas horas
finais do feriado nacional, as imagens de hordas de torcedores tentando invadir
o antigo estádio (agora promovido a “arena”) do Maracanã instantes antes do
jogo Flamengo X Cruzeiro – muitos sem ingresso ou sequer dinheiro e outros com
ingressos falsos comprados das mãos de cambistas.
E a mostra da
parcimoniosa partilha do dinheiro público: enquanto no Rio a UERJ é ameaçada de
fechamento e servidores aposentados passam fome sem o pagamento dos benefícios
devidos, a polícia militar tem garantida seu farto estoque de bombas, spray de
gás pimenta e muitas, muitas balas de borracha para serem disparadas no lombo
da turba enfurecida.
O tsunami e a esquerda
Na TV as
imagens de um desinterino Temer como que revivido e oxigenado (depois das trapalhadas
do PGR de Janot) no palanque das autoridades assistindo aos desfiles em
Brasília. Diante de protestos mornos e esparsos pelas capitais do País.
Deve ser a
“calmaria” a que se referiu a ex-presidenta Dilma. Segundo ela, o Brasil vive
“a calmaria antes do Tsunami”.
Mas temo que
esse “tsunami” não seja aquele imaginado pela esquerda: épica, com sentido e
direção, recolocando o País nos trilhos do progressismo. Imaginada por uma
esquerda que atualmente se limita a organizar “atos simbólicos” com showmícios
no qual artistas são anunciados como atrações de algum carnaval politizado fora
de época. E com muito “wishifull thinking” a cada discurso sob o tradicional
slogan da “luta e resistência” – assim como aquele outro velho slogan de que o
Brasil é o “País do futuro”.
Temo que esse
tsunami será uma explosão sem coordenada ou sentido. A liberação violenta das
energias do ressentimento cujos sintomas puderam ser constatados por esse
humilde blogueiro em uma simples observação aleatória, num feriado em um balneário
paulista.
Esse País foi
envenenado e, mentalmente doente e confuso, está à espera de algum gatilho que
dispare o processo que os sociólogos chamam pomposamente de “esgarçamento do
tecido social”.
Por exemplo, o
banqueiro Luiz Cesar Fernandes, sócio da GRT Partners e criador dos bancos
Garantia e Pactual, anunciou no seu perfil na rede Linkedin que “o crescimento
da dívida pública interna atingirá 100% do PIB do Brasil já na posse do próximo
Governo. A situação será insustentável, gerando uma completa ingovernabilidade.
Para evitarem uma CORRIDA BANCÁRIA (grifo do autor) as grandes instituições
bancárias terão, obrigatoriamente, de impedir seus clientes de efetuar os
saques de suas poupanças à vista ou à prazo”.
Esse será um
dos gatilhos, assim como nos anos 1980 a hiperinflação e o empobrecimento
estimulavam saques a supermercados em regiões periféricas das grandes cidades
brasileiras.
De um lado
teríamos um Estado finalmente minimizado pelo roubo do butim do golpe por ação
de uma elite que, nesse momento, já estaria bem longe do País. E do outro, a
explosão da anomia social das massas sem direção ou sentido. E no meio as
classes médias atônitas - de bucha de canhão do golpe de 2016 a cidadãos em
pânico tentando proteger suas propriedades conquistadas pela corrida
meritocrática que tanto acreditavam.
Sem Estado e
com uma polícia militar legalmente livre para reprimir e matar (só terão que
responder pelas suas ações aos seus próprios pares), só restará uma única
entidade organizada em uma sociedade agonizante: a hegemônica facção criminosa
nacional PCC (que a grande mídia não ousa dizer o nome), esperando as massas
desesperadas caírem no seu colo para vender proteção. E as almas perdidas delas
nos bancos das igrejas neopentecostais.
Um golpe com um
roteiro tão preciso, com timing tão perfeito (como esse Cinegnose já observara na série das bombas semióticas de 2013-16 – clique aqui) e com efeito tão
impressionante (a impotência da sociedade diante seu avanço) que é impossível
que tenha sido planejada pela quadrilha do desinterino ou pela grande mídia
brasileira liderada pelas Organizações Globo. Um roteiro de guerra híbrida
exaustivamente repetido nas diversas “primaveras” e “revoluções coloridas” ao
redor do mundo cujos produtores e roteiristas estão na CIA e Departamento de
Estado dos EUA.
Diante de um governo de esquerda, tão
facilmente apeado do poder, é irresistível não lembrar da provocativa tese do
pensador francês Jean Baudrillard: as esquerdas jamais desejaram o poder porque
a Política deixou de ser produção de
alguma finalidade social. Tornou-se apenas reprodução
de narrativas. E a esquerda reproduz a narrativa que mais almeja: a narrativa
da “luta e resistência”. Ad aeternum, acrescentaria.
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