Criada em 2009,
Bitcoin é uma moeda digital controlada por uma rede peer-to-peer sem depender
de bancos centrais e com um mercado de bilhões de dólares. Bitcoin parece ser
movido por um ímpeto anarquista porque seus seguidores odeiam governos e
autoridades financeiras. Mas suas ações são espirituais, lembrando uma religião
com um Criador, messias profetas, confirmando a tendência humana de perceber no
dinheiro e valor atributos inerentemente mágicos e místicos. E como toda
religião, tem a cortina que esconde o Mágico de Oz: o “fetichismo da
mercadoria”, tal como diagnosticou Karl Marx no século XIX sobre o velho Capitalismo,
a cortina que esconde a reprodução da desigualdade. O “Cinegnose” lista cinco
evidências de que o Bitcoin é mais uma religião, porém mais “cool” do que a
Teologia da Prosperidade das igrejas neopentecostais. Porque Deus desceu ao
mundo não mais sob a forma de dinheiro, mas agora como Criptografia e
Matemática.
Por que uma
barra de ouro vale mais do que um cacho de bananas? Se o leitor acha que essa é
uma pergunta supérflua porque é “natural” ouro valer mais do que bananas, você
está não só confirmando o diagnóstico de um pensador do século XIX como,
também, comprovando o porquê da moeda virtual chamada “bitcoin” ser uma
verdadeira religião contemporânea.
Fetichismo da mercadoria
foi o termo usado pelo pensador alemão Karl Marx (1818-1883) para designar a
relação mágica ou religiosa do homem com o dinheiro, valor, e uma série de
outras categorias econômicas – capital, mercadoria etc. Para Marx, o homem não
esqueceu de Deus: simplesmente transformou-O em relações econômicas.
Da mesma forma
que Deus (figura criada pelo homem que ganhou vida própria e dominou seu
próprio criador) e a religião encobriam e justificavam economias baseadas na
escravidão e sociedades estruturadas em castas, o dinheiro esconde numa relação
místico-religiosa a desigualdade da distribuição da riqueza – a “luta de
classes”.
Por que ouro
vale mais do que bananas? Para Marx porque essas mercadorias refletem a
quantidade de trabalho necessária não só para produzi-las, mas também para
comprá-las. O que determina as desigualdades sociais – um professor, como esse
humilde blogueiro, teria que trabalhar muito mais do que, digamos, um
especulador financeiro para adquirir uma barra de ouro. Por isso, devo me contentar
com bananas. O trabalho de um professor vale muito menos do que o de um
profissional das finanças.
A cortina do Mágico de Oz
Pois é essa
relação místico-religiosa com ouro e bananas que esconde, tal qual a cortina
que escondia o Mágico de Oz, a reprodução da desigualdade social e relações de
poder: se alguém ganha, muitos necessariamente têm que perder.
A atual febre
envolvendo a moeda virtual Bitcoin parece atualizar esse velho conceito
marxista. Tanto do lado dos críticos como daqueles que a defendem, existe o
mesmo clamor religioso: ou a nova moeda seria a confirmação da livro bíblico do
Apocalipse a respeito do “caminho que levará à Marca da Besta”; ou a afirmação
de não-religiosos de que a Bitcoin seria “quase algo enviado por Deus”.
E nem precisa
ser marxista para constatar essa relação religiosa com a moeda virtual. Por
exemplo, um estudo clássico da Apple mostra que certas marcas induzem a
sensações religiosas reais – na abertura de uma loja da Apple em Londres,
funcionários enlouquecem de euforia. Exames de ressonância magnética detectaram
que as sinapses disparadas foram equivalentes ao das catarses ou epifanias
religiosas – clique aqui.
Bitcoin, e a
tecnologia de apoio chamada blockchain, vêm se tornando autênticas varinhas de
condão: se acrescentar Bitcoin ao seu empreendimento, instantaneamente seu
projeto vai melhorar. Assim como as “minizinhas”, “moderninhas” e “vermelhinhas”
(máquinas de crédito e débito) para os recém-desempregados promovidos a
“empreendedores”.
Tendo em mente
essa natureza fetichista da relação com o dinheiro e o valor, vamos iniciar as
cinco evidências de que Bitcoin é a nova religião contemporânea.
1. O milagre da multiplicação
Em um
episódio da animação O Incrível Mundo de Gumball, Darwin e
Gumball perguntam para o seu pai, o coelho Ricardo, de onde vem o dinheiro com
o qual a família se sustenta. Poderíamos esperar alguma lição moral sobre a
nobreza do trabalho do pai aos filhos. Mas Ricardo é mais prático: leva os
filhos para um caixa eletrônico bancário e mostra: “a mamãe me dá esse cartão e
o dinheiro sai dessa máquina...”.
Essa impagável
relação fetichista com o dinheiro (parece ser multiplicado magicamente pela
tecnologia) também pode ser encontrada na Bitcoin. Há três maneiras de
acrescentar essa moeda à sua carteira virtual: pela chamada “mineração”,
comprar unidades em casas de câmbio ou aceitando a criptmoeda ao vender coisas.
A “mineração” é
a mais emblemática: simplesmente bitcoins “nascem” desse processo quando
usuários “emprestam” a capacidade de suas máquinas para registrar as transações
feitas, mantendo o funcionamento descentralizado da moeda, o blockchain. Os “mineradores”
(o termos é sintomático) extraem bitcoins do misterioso mundo virtual, assim
como mineiros extraem pedras milionárias das profundezas da terra.
Se na economia a “moeda” é expressão das
relações sociais, no mundo virtual é simplesmente “extração” – ninguém ganha ou
perde, apenas uns acham bitcoins e outros não.
2. Uma religião individualista e motivacional
Partindo da
categorização das religiões propostas pelo antropólogo Anthony Wallace
(xamânicas, olímpicas, comunais e eclesiásticas ou monoteístas), a bitcoin é
uma típica religião xamânica de sociedade de bandos em economias coletoras – no
caso, “mineradoras”. Qualquer um pode ter contato direto com o sobrenatural
sagrado.
O xamã seria
aquele dotado de maior experiência (e na religião Bitcoin, o criador do sistema
blockchain: o misterioso Satoshi Nakamoto, que ninguém sabe sua verdadeira
identidade), mas qualquer pessoa pode se tornar um xamã.
A rede Bitcoin
é um dos mais avançados sistemas de motivação e incentivo já construídos – todo
mundo continua sendo um indivíduo, mas através do blockchain todos contribuem
coletivamente para um sistema monetário totalmente independente, sem
autoridades monetárias ou câmeras de compensação do mundo real.
Ninguém está a
cargo do Blockchain, a não ser a criptografia e a matemática. E como certa vez
Einstein declarou, a Matemática é a visão de Deus da própria ciência. É,
portanto, espiritualmente considerado um “dinheiro limpo”, sem governo, reserva
federal ou pessoas no poder.
E ainda há uma
ideia de “sacrifício”, típica das religiões: as bitcoins têm valor por meio da
escassez (uma ideia mantida do próprio capitalismo – para uma mercadoria, e o
próprio dinheiro, terem valor, é necessária a escassez). Progressivamente a
mineração torna-se matematicamente cada vez mais difícil, para evitar
obviamente que todos tenham bitcoins.
Acredita-se que
Satoshi tenha feito essa “renuncia” pessoal com as primeiras bitcoins,
absolvendo a todos os seguidores do pecado da ganância. É um sacrifício para o
bem de todos os outros participantes do sistema.
3. Dinheiro versus Religião
Como sabemos,
riqueza e religião são mutuamente excludentes. Ao aderir a uma religião, o fiel
deve desistir da riqueza. O dinheiro está envolto com os pecados do mundo
material, nada a ver com a espiritualidade.
Mas a religião
bitcoin resolve esse problema teológico, muito melhor do que a Teologia da
Prosperidade das igrejas neopentecostais. A criptomoeda é gerada pela
matemática e tecnologia, supostamente sem a presença da mão humana. A própria
“encarnação” de Deus na Terra através de códigos fonte.
4. Os sete pecados capitais do sistema bancário
Muitos
bitcoiners têm uma forte motivação anarquista contra o governo. Mas tudo vira
uma panaceia quando acredita-se que automaticamente o sistema da criptomoeda
vai desmantelar o governo por contra própria. Por que? Porque o sistema
bancário é materialista e pecaminoso e a única salvação seria um sistema
descentralizado e espiritualizado pela matemática e criptografia.
O sistema
bancário queima no inferno por meio da Gula (o estereótipo do grande banqueiro
barrigudo), da Luxúria (o grande crash financeiro de 2008 e notícias de
envolvimento dos nomes dos culpados com redes de prostituição e drogas), do
Orgulho (o ataque da MasterCard à rede bitcoin – clique
aqui), da Ganância (ganância fracionária por lucros),
Inveja (o motor emocional da especulação financeira e lavagem do dinheiro de
cartéis de drogas), Ira (governo e sistema financeiro unidos para agir contra a
sociedade), Preguiça (o sistema bancário é ineficiente quando comparado com um
sistema baseado em matemática e consenso coletivamente distribuído, sem horário
definido de funcionamento ou inatividades).
Portanto,
bitcoins e blockchains libertariam o homem da tirania financeira e do
julgamento e corrupção humanas.
5. O Criador, Profetas e Messias
Na verdade a
religião da Bitcoin reflete uma ideia muito antiga, mais precisamente de
Parmênides, um filósofo da Grécia Antiga e fundador da escola eleática para o
qual a realidade era monista: tudo seria interligado e imbuído de um valor
imóvel, eterno e imutável, sem princípio ou fim, contínua e indivisível.
Richard Seaford
acredita que o desenvolvimento do dinheiro cunhado teve uma relação com o desenvolvimento
dessa cosmologia filosófica grega na qual os princípios básicos são projeções
inconscientes da substância ideal do valor de troca – leia SEAFORD, Richard, Money and the Early Greek Mind: Homer,
Philosophy, Tragedy, Cambridge University Press, 2004.
Embora o
dinheiro e o valor criem uma relação inerentemente mágica e espiritual, por ser
físico não consegue substituir essa “substância ideal do valor de troca”.
Criptografia e a Matemática, livres da mão humana por serem a própria linguagem
divina, realizam esse ideal monista da Antiguidade.
Como uma nova
religião high tech, possui a nebulosa
figura do Criador, Satoshi, que teria dito entre suas várias citações
repercutidas pelos bitcoiners: “Satoshi disse Haja Luz, e sua criação tornou-se
eterna”. Os primeiros investidores e programadores tornaram-se figuras de culto
como Roger Ver, também conhecido como “Bitcoin Jesus”. Ou pessoas como Gavin
Andresen e Vitalik Buterin, vistos pelos fiéis como sacerdotes ou profetas. Ou
até mesmo Messias delegados por Satoshi.
E como toda
religião com messias e profetas, há o milagre da ressurreição: seus seguidores
confirmam a crença de que a Bitcoin já morreu 156 vezes apenas para ressuscitar
novamente e novamente – veja os Bitcoin Obituaries.
Consideração final: a cortina do fetichismo
Em resumo: se o
velho sistema financeiro é baseado na fé cega pelas reservas federais e na
conversibilidade automática entre moeda e riqueza, também as bitcoins se
fundamentam na fé na transferência de valores por um sistema impessoal e
divino.
Mas a principal
linha de continuidade é a relação fetichista ou mágica com o valor: bitcoins
são “extraídas” do céu virtual através da capacidade dos computadores, assim
como papéis e títulos brotam nas bolhas da especulação financeira e a Casa da
Moeda imprime notas que magicamente ganham valor.
Como sempre, a
Bitcoin é mais uma cortina para encobrir os mecanismos sociais da reprodução da
desigualdade: porque poucos conseguem comprar uma barra de ouro e muitos têm
que se contentar com cachos de bananas?
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