Em um futuro próximo, finalmente a Ciência conseguiu a prova definitiva da existência após a morte. Porém, o resultado foi catastrófico: uma onda de suicídios varre o planeta com pessoas angustiadas em busca da terra prometida no outro lado. A produção Netflix "The Discovery” (2017) é um filme que aborda o recorrente tema cinematográfico da “segunda chance”: motivados por culpa e arrependimento por decisões erradas na vida, buscamos sempre a segunda chance, seja através da viagem no tempo, em um novo planeta Terra ou por meio de alguma experiência espiritual. Porém, “The Discovery” inova a abordagem do tema ao mostrar protagonistas que buscam a segunda chance dessa vez na possibilidade da vida pós-morte. A chance de um recomeço ou, pelo menos, a oportunidade de corrigir decisões erradas. Mas a mesma máquina que deu a prova científica da imortalidade da alma, pode revelar algo maior e inesperado.
Passamos metade da vida cometendo erros. E a outra metade tentando consertá-los. Além da própria morte, essa parece ser uma condição inevitável da existência na qual nunca mente e corpo parecem estar alinhados – na juventude temos a vitalidade, mas ainda não conquistamos a sabedoria. E quando temos a sabedoria, a vitalidade da juventude se foi.
Por isso, o mito da segunda chance é uma das
narrativas mais exploradas pelo cinema e na literatura: a busca de uma segunda
oportunidade na qual, com a sabedoria conquistada, pudéssemos consertar erros
do passado e nos libertarmos da culpa e do arrependimento.
De livros como Christmas Carol de Charles
Dickens e a jornada multidimensional de Alice de Lewis Carroll até
chegarmos ao cinema com Contra o Tempo (2011), Efeito Borboleta
(2004) ou Click (2006), repete-se o anseio de termos mais uma chance na
vida e corrigirmos os erros.
O meio de conquistarmos a segunda chance pode ser
através de uma viagem no tempo, de encontrarmos um segundo planeta Terra no
presente (como no filme A Outra Terra, 2011), de entrarmos no universo da
física quântica com mundos alternativos nos quais pudéssemos corrigir escolhas
erradas (Coherence, 2013) ou, simplesmente, por meio de alguma
experiência sobrenatural como no filme Os Fantasmas de Scrooge (2009).
Mas a produção Netflix The Discovery (2017)
acrescenta mais uma novidade dentro desse tema: a vida pós-morte. O roteiro de
Justin Lader e McDowell não se prende aos cânones do gênero ficção científica,
apesar de vermos cientistas e máquinas que procuram uma prova científica da
existência pós-morte – não há um thriller sci-fi com vilões tentando roubar uma
máquina revolucionária e muito menos discussões metafísicas sobre o nosso
propósito nesse planeta.
The Discovery é um filme sobre culpa, arrependimento
e perdão, sobre decisões erradas e como elas podem marcar uma vida inteira. O
filme se insere em uma tendência das produções independentes atuais chamada
“psicodramas alt. Sci-fi” – narrativas que emulam temas da ficção científica,
mas apenas como pano de fundo para discussões existenciais e de relacionamentos
humanos.
A novidade
aqui é o tema da possibilidade da vida pós-morte como uma forma de busca da
segunda chance. Memórias e reencarnação são temas nos quais a narrativa
tangencia, mas The Discovery quer mesmo associar o tema da morte à loop
temporais e mundos alternativos quânticos.
O Filme
Na primeira cena vemos Thomas Harbour (Robert
Redford) um controverso cientista recluso que há alguns anos descobriu a
definitiva comprovação científica da existência da vida após a morte. Ele está em uma entrevista ao
vivo na TV. Mas o assunto não é propriamente a sua descoberta, mas os efeitos: a
descoberta acabou provocando uma onda em massa de suicídios, todos à procura da
terra prometida no outro lado. O clima da entrevista é tenso. Harbour se nega a
aceitar a responsabilidade pelas mortes em massa. Até que um técnico da
produção entra em cena e dispara uma arma contra a cabeça. Mais um suicídio,
dessa vez ao vivo na TV.
Semelhante a uma peste, há nos lugares públicos placares
com os números de suicídios por minuto. Parece que há também um esforço
publicitário dos governos em convencer as pessoas a não partirem. Tanta culpa e
arrependimento nesse mundo parece motivar as pessoas a buscarem ou uma simples fuga
ou a possibilidade de recomeço em algum lugar na vida pós-morte.
A narrativa acompanha a chegada de Will (Jason
Segal), um dos filhos de Harbour, que tem sérias críticas contra o trabalho do
seu pai. Em sua viagem para uma área remota onde seu pai trabalha, Will encontra
Isla (Rooney Mara). Por algum motivo acha seu rosto familiar, começando uma
conversa agressiva e espinhosa.
Os dois acabam descobrindo que estão indo para o
mesmo lugar: uma fortaleza na qual Harbour mentem-se isolado em seu laboratório
ajudado por devotados seguidores – em comum, todos tentaram alguma vez o
suicídio. Todos usam macacões com cores correspondentes ao seu status naquele
lugar. Will vê claramente que seu pai acabou criando uma seita de seguidores
fanáticos, aumentando ainda mais a repulsa às pesquisas dele.
Will acredita que Harbour trouxe o mal para as
pessoas e está decidido em encerrar as pesquisas do pai.
O ritmo do filme é lento e contemplativo. A
atmosfera geral é de confusão psicológica, limites dissolvidos e identidades
fraturadas. Um ambiente assustador no qual muito do mistério é mantido intacto
até quase o final.
Will revela a Isla que sua mãe se matou quando era
mais jovem, antes da descoberta do pai. A certa altura, Will vê Isla na praia,
caminhando em direção ao mar com uma mochila cheia de pedras, decidida a se
matar – também ela guarda culpas e arrependimentos no passado.
O filme ganha força com a revelação de Thomas
Harbour que a máquina que desenvolve poderá gravar imagens da existência
pós-morte – finalmente será possível ver o que existe realmente do outro lado.
A revelação CosmoGnóstica – alerta de spoilers à frente
Como o leitor verá no filme, imagens são gravadas.
Porém, as investigações levantam dúvidas: são imagens reais ou apenas memórias
da pessoa falecida? A máquina ironicamente poderia contradizer a grande
descoberta de Thomas Harbour? Essa é a esperança de Will para por fim a toda a
loucura da onda de suicídios.
A situação fica ainda mais controversa quando Will
e Isla encontram anomalias nas imagens gravadas: parecem ser memórias do
falecido, porém há discrepâncias em relação ao passado e presente da linha de
tempo. Parece que as imagens não se referem nem a memórias do passado, nem a
suposta existência além da morte. O quê são então?
Nesse momento The Discovery tangencia com o
tema da reencarnação, que é apenas oferecido como pista falsa para o
espectador.
Embora a narrativa coloque em confronto pai e
filho, Thomas e Will, evita cair no maniqueísmo fácil da questão sobre quem
estará certo ou sobre quem vencerá no final. Certamente começamos a desconfiar
que ambos estão errados e de que, sem ninguém ainda saber, a máquina descobriu
algo muito mais além de uma suposta vida pós-morte.
A resposta é a mais gnóstica possível, trazendo à
luz o clássico tema CosmoGnóstico: vivemos prisioneiros em algum tipo de prisão
cosmológica, da qual nem a morte é capaz de nos libertar. Torturados por culpa,
arrependimento e sempre em busca de perdão, acreditamos que após a morte tudo
poderá ser passado a limpo. Poderemos começar do zero e finalmente teremos a
segunda chance para nos redimir.
Mas, e se o escritor Stephen King estiver correto
de que “o Inferno é a repetição”? Vida e morte poderiam fazer parte de um loop
temporal no qual morremos para despertar em sucessivos mundos alternativos onde
corrigimos uma decisão errada para incorrermos em outros erros e assim
sucessivamente em um infinito labirinto de mundos alternativos. Alimentados por
culpa e arrependimento.
Essa é a grande contribuição do filme The Discovery
para o recorrente tema da “segunda chance”: uma criativa combinação entre
Gnosticismo, física quântica e os paradoxos dos loops temporais.
Ficha Técnica |
Título: The Discovery
|
Diretor: Charlie
McDowell
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Roteiro: Justin Lader e Charlie McDowell
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Elenco: Robert Redford, Jason Segel, Rooney Mara, Jesse Plemons
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Produção: Edgame Entertainment, Netflix
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Distribuição: Netflix
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Ano: 2017
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País: EUA
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