À primeira vista, “Don’t Blink” (2014) é mais
um filme sobre um grupo de jovens que se hospeda em uma cabana em algum lugar
remoto para serem punidos por seus vícios e pecados, por algum serial killer.
Mas estamos no terreno do horror independente e nada é o que parece: sem
explicações um a um começa a desaparecer assim que o grupo tem a atenção desviada ou
simplesmente fecha os olhos. Mais um filme inspirado no misterioso
desaparecimento, sem deixar qualquer rastro, de uma colônia inteira no início
da colonização dos EUA em 1587. Filmes como “O Mistério da Rua 7” e adaptações
de Stephen King como “A Tempestade do Século” e “A Fenda no Tempo” (“The
Langoliers”) também exploraram esse misterioso acontecimento, cada um com sua
própria interpretação. “Don’t Blink” discute as consequências morais (o que
você faria, sabendo que desapareceria nas próximas horas?) e deixa uma série de
pistas narrativas para o espectador montar sua própria explicação. De uma hora
para outra poderíamos ser arbitrariamente apagados como se a realidade fosse um
conjunto de fotogramas, assim como o cinema? Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
Um incidente histórico marcou o início da
colonização norte-americana: o misterioso desaparecimento de 113 colonos na ilha de Roanoke (hoje
parte da Carolina do Norte) em 1587. Nenhuma pista sobre o paradeiro dos
colonos foi encontrada, a não ser a inscrição “Croatoan” em uma árvore. Segundo
as lendas, a inscrição “Croatan” seria a designação de uma entidade demoníaca
indígena.
Stephen King se inspirou
nesse histórico episódio para escrever o livro “A Tempestade do Século” (foi
feita uma adaptação cinematográfica em 1999) no qual ficcionalmente sugere que
todos os colonos foram levados por um demônio como forma de castigo pelos pecados.
Em 2007, o filme O Mistério da Rua 7 reatualizou essa antiga lenda – quando a
noite cai (e as noites vão ficando cada vez mais longas) pessoas desaparecem em
meio a vozes e vultos na escuridão. Seres de origem desconhecida esperam que as
luzes apaguem para levar as vítimas. Um típico filme de terror com sustos,
mortes e entidades sombrias explícitas, espreitando as próximas vítimas - sobre
o filme clique aqui.
Don’t Blink é mais uma narrativa inspirada no insólito desaparecimento dos colonos
de 1587. Mas, dessa vez, com o tom do horror metafísico ao melhor estilo da
antiga série Além da Imaginação, sem
vilões identificáveis, entidades, serial killers ou explicações plausíveis.
Isso, o espectador terá que buscar nas poucas pistas aqui e ali no filme.
Horror metafísico
Em primeiro lugar, Don’t Blink é uma didática oportunidade
para diferenciar o terror e o horror no cinema. Enquanto no terror tudo é feito
para arrancar sustos (medo = sustos), no horror é mobilizado aquilo que Freud
chamava de uncanny (o “estranho”) – a
possibilidade de a qualquer momento sermos “apagados” da face da Terra, sem
qualquer razão plausível. Pior que a morte, ódio ou vingança de alguma entidade
(Jasons, Fred Krugers etc.) é o desaparecimento, a banalidade e a indiferença.
E o horror metafísico –
aquilo que contraria a Natureza por acontecimentos banais – o desaparecimento.
E segundo, o filme revela o
característico sabor gnóstico da desconstrução do próprio tecido da realidade,
tal como em outros filmes de horror indie
como O Segredo da Cabana (2011 – clique aqui e Resolution
(2012 – clique aqui). Como veremos, Don’t Blink sugere uma instigante analogia entre frames ou
fotogramas do cinema e audiovisual como a própria natureza da realidade: entre
um fotograma e outro (no cinema, 24 por segundo) podemos ser arbitrariamente apagados.
E novamente Stephen King: em
certos aspectos, Don’t Blink lembra o
mesmo argumento do livro/minissérie Fenda
no Tempo (The Langoliers, 1995) –
um voo noturno que acaba preso em um lugar interdimensional entre um segundo e
outro do tempo.
O Filme
O filme inicia quando
acompanhamos dez jovens divididos em quatro carros dirigindo-se pela estrada na
direção de uma remota cabana-resort nas montanhas. Pelo conteúdo das conversas,
brincadeira e tipos, parece que estamos diante de mais um filme de horror em
cabana na floresta com os típicos personagens estereotipados – o “garanhão”, a
“piranha”, a “nerd”, o tímido, o “chapado”, e assim por diante.
O grupo acaba chegando, quase
sem gasolina, ao local que está estranhamente deserto. Lá encontram as mesas
com pratos postos, comida servida, os quartos como se estivessem recém-ocupados
e banheiras com o banho preparado. Para onde foi todo mundo? Por algum motivo,
parece que todos tiveram que sair às pressas.
O espectador habitual começa
então esperar por alguma força malévola, algum serial killer à espreita.
Principalmente, quando o grupo comete o erro clássico dos filmes de terror:
“vamos nos dividir em grupos e depois nos encontrarmos...”. É a senha para o
início do derramamento de sangue.
Mas nada disso acontece. Cada
grupo encontrará anomalias na região como a ausência de pássaros e insetos, o
lago congelado fora da época, a temperatura que começa rapidamente a baixar.
Estamos agora nos elementos dos atuais filmes de horror indie que pagam elevado tributo à série Além da Imaginação.
De repente, cada um começa
simplesmente a desaparecer em um piscar de olhos: basta desviar a atenção ou
virar o rosto para que a pessoa ao seu lado desapareça em pleno ar. Há alguma
força invisível e inteligente naquele lugar.
O ritmo do filme é lento e os
dois primeiros atos são usados para desenvolver os personagens e introduzir os
espectadores ao mistério. Há pouca tensão, concentrando-se a narrativa na
criação do ambiente misterioso e claustrofóbico.
Hedonismo
Don’t Blink faz uma curiosa inversão em relação aos tradicionais filmes de terror
nos quais os jovens são punidos com a morte pela atitude hedonista em relação a vícios,
sexo e traição. O filme propõe também o tema do hedonismo: que responsabilidade
você teria com o seu próximo sabendo que simplesmente desaparecerá nas próximas
horas? Ao contrário, os jovens tentam evitar isso em busca de uma explicação
plausível para tudo o que ocorre. Em Don’t
Blink não há o elemento punitivo e moralista dos filmes de terror. Há
apenas o desafio em descobrir a identidade da força invisível e o seu
propósito.
A certa
altura acabam encontrando um sobrevivente da rodada anterior de
desaparecimentos – primeira pista para o espectador: parece que essa entidade
inteligente sempre deixa um sobrevivente para atrair mais pessoas ao local.
Porém, o sobrevivente está tão perdido quanto eles, sem pistas ou evidências.
De certa forma, o filme
parece também se inspirar em uma ansiedade da primeira infância: o medo de que
os pais, os brinquedos ou o mundo desparecerem enquanto a criança esteja com os
olhos fechados ou dormindo. Por que “todos nós seremos a qualquer momento
apagados”, como nos diz uma linha de diálogo do filme.
Por isso, a única forma de
sobreviver é não piscar os olhos e cada um ficar olhando para o outro, até que
possam encontrar um jeito de escapar dali.
Cinema e a realidade quântica
Como a maioria da atual safra
de filmes indie de horror, há um
latente tema metalinguístico em Don’t
Blink: os personagens podem desaparecer de um segundo para outro se o
espectador piscar os olhos, assim como a passagem dos 24 fotogramas por segundo
criam a ilusão de movimento cinematográfico – alguém que estava em um fotograma
poderá não estar no próximo.
No início do século XX o
francês Georges Méliès descobriu a trucagem no cinema com a técnica de parada e
substituição – a câmera era parada, o objeto era substituído e depois o
dispositivo reiniciado. Numa passo de mágicas homens viravam mulheres, prédios
desapareciam e pessoas surgiam do nada. A sucessão de fotogramas fragmentados
criava ilusões ao transformar espaço em movimento.
Porém, realidade e cinema
ainda eram bem distintos - o real é
contínuo e análogo; o cinema e audiovisual são fragmentados em fotogramas e
frames. Por isso, é o reino da trucagem, efeitos especiais e da ilusão.
Mas, e se essa diferença
desaparecer? Principalmente depois da mecânica quântica ter comprovado que a
realidade não é assim tão analógica, aproximando-se bastante da ilusão
fragmentada do dispositivo cinematográfico: no mundo das partículas subatômicas
confrontamo-nos com paradoxos como pedaços de quantum binários tipo sim/não,
ondas pixeladas.
No mundo das micropartículas
encontramos quantum ou “pacotes” de energia, e nada é tão fluido e contínuo
como percebemos a realidade no nível macro.
Isso abriu a possibilidade da
hipótese dos Muitos Mundos na Física Quântica (clique aqui) ou nas teorias de que o Universo é uma gigantesca
simulação de computador (clique aqui).
Desconstrução da realidade? – alerta de spoilers à frente
O vislumbre dessa
descontinuidade subatômica abre a possibilidade de descontinuidades em níveis
macro espaço-tempo e que vem inspirando a literatura e cinematografia sci fi
recente – como por exemplo Fenda no Tempo
de Stephen King, onde um avião inteiro está preso entre um segundo e outro no
tempo. Desapareceu do fluxo temporal, mas está em alguma lacuna espacial.
Essa é a mesma matriz na qual
se inspira Don’t Blink. O filme
termina de forma aberta e, para muitos críticos e espectadores, decepcionante
por não apresentar nenhuma explicação, lógica ou sobrenatural, sobre os 90
minutos de mistérios. Mas o leitor observará algumas pistas que apontam para
algum tipo de experiência (governamental?) que fugiu ao controle. Algum tipo de
experiência de desconstrução do tecido espaço/tempo que chamamos por realidade.
Na sequência final, a única
sobrevivente (Claire) vê chegarem ambulâncias, bombeiros e policiais chegarem,
além do indefectível carro negro de onde saem homens em ternos pretos e óculos
escuros. Suas atitudes parecem demonstrar que sabem o que está acontecendo. Agentes
do governo?
Claire os adverte: “não
pisque!”. “Eu nunca pisco”, reponde ironicamente o homem de preto numa alusão
de que não só sabem o que está ocorrendo como estão envolvidos em tudo.
Don’t Blink termina com um sombrio questionamento ético e moral: se todos vamos
desaparecer, junto com tudo o que fizemos, nada importa?
Ficha Técnica |
Título:
Don’t Blink
|
Direção:
Travis Oates
|
Roteiro:
Travis Oates
|
Elenco:
Zack Ward, Mena Suvari, Brian Austin Green,
Joanne Kelly
|
Produção: EchoWolf
Productions, Engine Film Group
|
Distribuição:
Vertical Entertainment
|
Ano:
2014
|
País:
EUA
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