Caro leitor, chegou o momento de abrir o seu coração e esvaziar sua carteira para ajudar a curar alguma coisa que está errada com as pessoas desse curta-metragem. “Help Us” (2016), de Joel Cares, lembra aqueles vídeos institucionais de ONGs como Médicos Sem Fronteiras, Save The Children etc. Mas ao invés de vermos flagelados de algum lugar remoto e sem esperança, vemos uma família de classe média pedindo ajuda e o nosso dinheiro. O que há de errado com eles? Um curta que aplica dissonância cognitiva e o método de comutação para fazer o espectador refletir sobre o destino da velha caridade e humanitarismo que hoje se transformou em “voluntariado” e “ativismo”. Qual a recompensa psíquica que encontramos na velha filantropia profissionalizada pelas ONGs? Qual a relação entre essa recompensa e os rostos "psychos" dos personagens do curta que ao invés de inspirarem altruísmo dão medo.
Estudando a semiologia do sistema da moda, o
pesquisador francês Roland Barthes (1915-1980) desenvolveu um engenhoso método:
o teste de comutação. Encontrar em um texto ou imagens a menor unidade de
significação, procurando alterar um signo por outro dentro de uma estrutura.
Até encontrar a mudança de significado.
O pequeno curta com menos de 2 minutos Help Us (2016) de Joel Cares faz algo
parecido, num curioso teste de comutação em um vídeo. A estrutura é idêntica
aos vídeos institucionais de ONGs como Médicos Sem Fronteiras, Save The
Children, Médicos do Mundo etc. nos quais são pedidos donativos, contribuições
regulares ou a adoção à distância de crianças em situações de risco como
pobreza, áreas de guerra ou calamidades naturais.
Sob a mesma linguagem de enquadramento de
câmera em lentos zoom in, acordes melancólicos ao piano e personagens com
olhares vazios e sem esperança clamando por compaixão e ajuda, vemos em Help Us protagonistas bem diferentes:
integrantes de famílias de classe média, uma criança, um casal e uma jovem,
além de uma estranha figura deformada criando uma estranha dissonância:
“Ajuda!”, “Ajude-nos!”, “Precisamos da sua ajuda!” etc.
Os pedidos começam a ficar mais ostensivos:
“Precisamos do seu dinheiro!”, “Dê para nós o seu dinheiro!”, “Dê tudo o que
você tiver!” e assim por diante, enquanto a trilha musical vai subindo em um
arranjo mais grandiloquente.
Dissonância cognitiva
Um curioso teste de comutação que acaba
criando dissonância cognitiva: tudo no vídeo parece estar no lugar: a
estrutura, linguagem e música igual aos vídeos de ONGs com os quais nos
acostumamos ver na TV. Mas os personagens estão fora do lugar: são pessoas de
classe média, bem nutridos e materialmente confortáveis. Por que nos pedem
ajuda? Para quê querem nosso dinheiro?
Além da dissonância, há algo estranho com os
personagens... um olhar com um quê psicótico. Definitivamente há algo de errado
com eles. Claro, excetuando-se a enigmática figura deformada.
Esse teste de comutação (manter a estrutura e
mudar apenas um signo de um sintagma para perceber as alterações de
significados) e o efeito da dissonância cognitiva cria o estranhamento
necessário para iniciar uma reflexão sobre os destinos da compaixão ou do amor
ao próximo na sociedade atual.
Se no passado tínhamos casas de caridade,
fraternidades ou irmandades religiosas filantrópicas que procuravam minimizar o
drama daqueles que foram esquecidos pelo Estado e cidadãos, hoje são
substituídos por ONGs, pelo ativismo e voluntariado.
Apesar da numerosa hipocrisia (afinal os
ricos e os bens favorecidos estimulavam a filantropia como forma de manter os
pobres no seu devido lugar), pelo menos havia a ética cristã como cimento
ideológico para a institucionalização da caridade. Como o filósofo Theodor
Adorno dizia, toda ideologia teve o seu momento de verdade – ao menos no
passado a filantropia rememorava o princípio civilizatório da ética cristã,
para depois ser esquecida na hipocrisia.
A filantropia profissionalizada
Hoje, tempos corporativos e meritocráticos, a
filantropia foi “profissionalizada” como atividade de voluntariado nas
entidades sem finalidade lucrativa. Por assim dizer, a caridade foi
secularizada para se transformar em uma atividade de mercado. Inclusive,
criando capital de distinção para jovens lançarem em currículos como
diferencial na competição profissional.
A ideologia da ética cristã foi substituída
pelo quid pro quo – eu doo meu tempo
e esforços para ajudar o próximo em uma instituição de marca e renome
internacional. Em troca, faço a “diferença” e a imortalizo nas redes sociais e
currículo à espera do reconhecimento pelo mercado.
Mas também há uma outra forma de recompensa,
dessa vez psíquica. O que se aproxima com os tipos “psycho” do curta Help Us: na sociedade meritocrática e
hipercompetitiva atual, a compaixão e o amor ao próximo é um luxo religioso,
algo velho e inútil como a filantropia de antigamente. Amor ao próximo transformou-se em “ética
corporativa”, “vestir a camisa” e “trabalhar em equipe”, expressões que acabam
assim que se encerra um projeto profissional de curto prazo ou quando
consegue-se a promoção ou ascensão social ao custo da frieza com o próximo.
Adotar uma criança africana em extrema
pobreza ou debitar automaticamente na conta a contribuição mensal para uma
entidade para crianças especiais serve para aliviar a culpa e o mal estar – a
sensação de que, no final, é cada um por si e as amizades resumem-se à contagem
do número de likes e de “amigos” nas
redes sociais.
Principalmente em datas como festividades
natalinas, parece que esse mal estar e culpa desse novo inconsciente social vem
à tona. Mas o alívio politicamente correto de ser um “voluntário” ou por ter
adotado alguém em um lugar remoto e sem esperança dá a sustentação psíquica
para seguir em frente.
Não é à toa que protestam de forma tão
raivosa contra qualquer iniciativa do Estado de inclusão social. Acusam de
populismo e dar dinheiro a gente “preguiçosa” e “vagabunda”. Claro, como pode o
Estado roubar os nossos pobres. E, o que é pior, com a possibilidade de os
“nossos” pobres desaparecerem com o processo de inclusão social.
Esse parece ser o estranhamento e dissonância
provocados pelo curta Help Us: no final, aquelas figuras estranhas com caras de
“psychos” somos nós.