Soldados
em uma pequena cidade na Tailândia sofrem de uma estranha doença do sono. Todos
estão em uma enfermaria ligados a máquinas que ajudam a ter “bons sonhos” –
máquinas supostamente usadas pelo exército dos EUA no Afeganistão. Voluntários
e uma sensitiva tentam se comunicar com os soldados para compreender essa
estranha narcolepsia. Enquanto uma empresa de cabeamento escava buracos no
entorno do hospital, a sensitiva descobre que séculos atrás o local foi cenário
de sangrentas batalhas que ainda não terminaram no mundo espiritual: se
perpetuam e sugam a energia dos vivos. Esse é o filme “Cemetery of Splendour”
(2015) do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul cuja filmografia é
permeada pelos temas sobre vidas passadas, reencarnação e memórias. Passado e
futuro se misturam até questionarmos as fronteiras entre os vivos e os mortos,
seja no dia-a-dia, seja até na política.
Ao
mesmo tempo espiritual e mundano. À primeira vista a narrativa de Cemetery of Splendour (2015) tangencia o
realismo fantástico: um grupo de
soldados dorme em uma enfermaria que outrora foi uma escola, em Khon Kaen
(cidade natal do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul), ligado a
máquinas incomuns que os ajudam a ter “bons sonhos”. Cada modelo tem um tubo
vertical que às vezes mudam de cor, inundando a enfermaria com as cores azul,
verde ou vermelho. Todos sofrem de uma estranha doença de narcolepsia –
repentinamente caem no sono para ter uma breve consciência às vezes dias
depois.
A
protagonista chamada Jenjira, uma voluntária que cuida dos soldados, vai a um
pequeno santuário rezar aos pés das estátuas de duas deusas. Minutos depois
mostram-se como pessoais reais que revelam para Jenjira que o hospital onde os
soldados dormem há milhares de anos foi um cemitério de reis e aldeões mortos
em batalhas. Batalhas que ainda não terminaram no mundo espiritual, e que por
isso requisitam a energia vital daqueles soldados.
Por
outro lado, Cemetery of Splendour é
uma alegoria política sobre a situação atual de um país que sofreu golpe
militar em 2014 depois de um grave cenário de crise por protestos a queda da
primeira ministra Yingluck Shinawatra e o aprofundamento do impasse político –
não precisa dizer que a intervenção militar na Tailândia incendiou a imaginação
da Direita política brasileira, ávida por uma “golpe militar constitucional” no
Brasil para a derrubada da então presidenta Dilma Rousseff.
O diretor Apichatpong Weerasethakul é
conhecido por filmes cujas histórias abordam temas como memórias, reencarnação,
vidas passadas e narrativas sobre como o passado influência o presente através
dos vivos e dos mortos – Tio Boomee, Que
Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), Síndromes e Um Século (2006) e Mal
dos Trópicos (2004).
Descrevendo
dessa forma, o filme pode parecer tenso, cheio de surpresas e sustos como em um
bom thriller de mistério hollywoodiano. Mas é exatamente o contrário – o filme
é muito mais descritivo do que narrativo. Em ritmo tranquilo, com
enquadramentos longos às vezes de vários minutos em plano geral e uma paleta de
cores naturalista, a narrativa transmite uma aparente paz.
Mas
essas imagens pacíficas são criadas deliberadamente pelo diretor: aos poucos,
revela-se que há algo de muito turvo e estranho por trás da rotina bucólica e
cheia de religiosidade em uma pequena cidade na Tailândia.
E a
estranha condição neurológica daqueles soldados que eventualmente acordam para,
inesperadamente, caírem em um sono aparentemente sem sonhos.
O Filme
Cemetery of Splendour é centrado na protagonista
Jenjira (Jenjira Pongpas Widner), voluntária em um hospital em Khon Kaen que
auxilia no cuidado de soldados que sofrem de uma estranha doença do sono.
Mais
especificamente Jenjira cuida de um soldado chamado Itt (Banlop Lomnoi), com
quem faz logo amizade, juntamente com a sensitiva espiritual Keng (Jarinpattra
Rueangram). Keng é uma jovem sensitiva que busca descrever para os familiares onde
os soldados estão no mundo espiritual, suas vidas passadas e mensagens para
seus entes queridos.
Em
todo filme percebemos que há uma escavadeira de uma empresa de cabeamento que
escava o terreno ao lado do hospital – elemento simbólico do filme cujos sons e
imagens da máquina são a abertura de Cemetery
of Splendour. Em breve, o hospital será desocupado para demolição e a
passagem do sistema de cabeamento elétrico e de TV da cidade.
Na
medida em que se estreita a amizade de Jenjira com a sensitiva e o soldado Itt,
a protagonista começará a questionar o que é real e o que é imaginário ao seu
redor.
Soldados
com narcolepsia, a atual situação política do país, o peso das guerras do
passado e a milenar presença militar (a influência das guerras milenares e das
recentes como a guerrilha do Laos e a guerra do Vietnã) irão criar uma espécie
de zona cinza de intersecção entre sonhos, realidade, fantasia, política e
parapsiquismo.
O
que as deusas encarnadas do pequeno santuário local e a jovem sensitiva Keng
revelarão é que o local do hospital outrora foi um palácio real com luxo e
opulência, e também local de uma sangrenta batalha. Batalha que ainda não
terminou. E, por isso, os espíritos daqueles soldados são compulsoriamente
“convocados” por uma velha dinastia (o país vive em um regime monárquico) para
continuar a batalha pela defesa do palácio na eternidade.
Política e Parapolítica
Por isso o filme permite fazer dois tipos de
leitura: política e parapolítica. De um lado, como Apichatpong Weerasethakul
vai visitar a sua cidade natal para mostrar uma Tailândia cujo futuro é
incerto: uma escola que se transformou em hospital que é ameaçado por uma obra
que representa a evolução tecnológica em um país em crise política.
Do
outro, o passado, a tradição, a memória e os mortos: um país monarquista no
qual o passado das velhas dinastias contamina como um pesadelo o presente,
sugando a energia vital dos vivos que se tornam prisioneiros de uma espécie de
eterno retorno. É o que o Cinegnose
denomina de “parapolítica” – por trás da política terrena ou mundana das guerra
e conspirações político-partidárias estariam atuantes forças de um mundo
espiritual organizado em falanges que, através de egrégoras de formas-pensamento,
influenciam a psicoesfera dos vivos, dando continuidade a guerras e conflitos
do passado que não encontram um fim.
Filmes
como Ink (clique aqui) ou mesmo obras literárias
espíritas com a série Nosso Lar de Chico Xavier ou mesmo as obras do médium
Robson Pinheiro como Aruanda e a
trilogia Legião das Sombras (clique aqui) abordam essa espécie de zona
cinza de contato entre os vivos e os mortos que, muitas vezes, têm
consequências politicamente catastróficas.
Principalmente
quando os vivos tentam instrumentalizar essas forças em busca do Poder
(político ou simbólico), acreditando ter pleno controle sobre elas por meio de
rituais ou cerimonias ocultistas que passam longe da cobertura midiática
especializada.
Alegoria política
Mas ao largo dessa abordagem espiritual, Cemetery of Splendour faz uma alegoria
política da Tailândia atual.
Sabemos
que a intervenção militar no país em 2014, após intensos movimentos de
protestos nas ruas contra a primeira ministra, fez parte de uma sequência de
“primaveras” ou “revoluções coloridas” (estratégia de Inteligência criada pelos
EUA para desestabilizar Estados nacionais que ameacem a sua hegemonia
geopolítica) que varreram simultaneamente diversos países, no qual o Brasil fez
parte a partir de 2013 – as “Primaveras Árabes” a partir de 2010 (Argélia,
Egito, Jordânia, Iêmen), na Ucrânia cujo objetivo no teatro de ações
internacional dos EUA é frear a presença da Rússia no Mediterrâneo ou o avanço
da China na Ásia e Oriente Médio.
Cemetery of Splendour faz diversas referencia sutis à
influência norte-americana na cultura tailandesa. Para começar, a própria obra
de cabeamento que abre e fecha o filme e a constante comparação que Jejnjira
faz dos soldados tailandeses com o personagem Superman.
E
numa das principais sequências: Itt e Jenjira vão a um cinema de um moderno
shopping center. Lá assistem a um típico filme de terror de produção asiática
mas com a linguagem thriller e gore hollywoodianas. Em meio ao filme,
Itt cai em repentino sono para ser carregado depois à enfermaria do pequeno
hospital local.
São
as constantes alusões que Apichatpong Weerasethakul insere na narrativa – o
estranho mix da contaminação do american
way of life norte-americano com o peso da tradição e memória dos mortos que
paralisa a vida dos vivos.
É
essa bizarra combinação que faz Jenjira terminar o filme com o olhar perplexo
para a escavadeira abrindo buracos no entorno do hospital, sem mais conseguir
distinguir o mundo dos vivos e dos mortos.
Ficha Técnica |
Título:
Cemetery of Splendour
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Diretor:
Apichatpong Weerasethakul
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Roteiro:
Apichatpong Weerasethakul
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Elenco:
Jenjira Pongpas, Banlop Lomnoi, Jarinpattra
Rueangram
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Produção:
Kick The Machine, Iluminations Film
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Distribuição:
Strand Releasing
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Ano:
2015
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País:
Tailândia, Reino Unido, Alemanha
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