Desde a chamada “crise hídrica”, o Estado de São Paulo é o laboratório de
testes para tudo aquilo que espera o restante do País para o futuro. Lá, foi a
engenharia de opinião pública para demonstrar que a água é um bem escasso e
que, portanto, deve ser regulado pelo mercado como uma mercadoria qualquer. E o
Parque Victor Civita na cidade de São Paulo foi o seu showroom. Agora, o teste
bem sucedido do primeiro “gestor-midiático” vitorioso nas eleições municipais
de São Paulo. João Doria Jr. representa a impaciência da grande mídia em
cumprir sua agenda: chega de intermediários! Políticos tradicionais, com a sua
melodramática “mise-en-scène teatral”, não têm timing midiático. Doria Jr. é o
novo espécime da transpolítica futura: egresso do mundo da mídia e publicidade,
aquele que nega a si mesmo como político. Assim como aquela campanha
publicitária de um banco que foi adquirido pelo Itaú: “nem parece banco...”.
Enquanto isso, as esquerdas lamentam mais uma “revolução traída”.
Assim como o
Deserto de Nevada, nos EUA, foi a área de provas dos testes das bombas
nucleares, o Estado de São Paulo é o laboratório de testes de preparação do
“brave new world” que espera o restante do País para o futuro. Testes com duas
bombas: a da água e, agora, a do “gestor midiático”.
Tudo começou com
a chamada “crise hídrica”, teste de vanguarda para, sob o álibi do discurso
“verde” (alterações climáticas, aquecimento global etc.), sucatear
deliberadamente o sistema público de produção e distribuição de água, tornando
escasso um bem universal (assim como educação e saúde) para ser entregue à
regulação do mercado como simples mercadoria.
E a Praça Victor
Civita, na cidade de São Paulo (entre a decadente editora Abril e o fétido Rio
Pinheiros) foi o showroom dessa nova ordem da “sustentabilidade sustentável”
com a estética da escassez do lixo reciclado – a convergência do ambientalismo
com o hiperliberalismo das mercantilização generalizada sob a chantagem da
crise econômica e da catástrofe ecológica – sobre isso clique aqui.
Com a vitória
acachapante do candidato João Doria Jr. à prefeitura de São Paulo já no
primeiro turno, confirma-se a agenda desse vanguardismo paulista, já antecipada
por este Cinegnose no ano passado: a vitória eleitoral, para um cargo
executivo, de um personagem midiático,
egresso do mundo da publicidade, lobby e programas televisivos, cuja imagem é
não mais de um “político”, mas de um “gestor” – sobre a sinistra profecia do Cinegnose
clique aqui.
A engenharia de opinião pública da "crise hídrica" |
Uma eleição onde
outros dois candidatos também acumulavam capital midiático-televisivo: Celso
Russomano, suposto defensor dos direitos do consumidor em programas como o
sensacionalista Aqui e Agora do SBT, e Marta Suplicy cujo start up
da carreira política foi em um quadro onde apresentava-se como sexóloga no
antigo programa TV Mulher da TV Globo nos anos 1980.
Para quê intermediários?
Depois de um
trabalho diário do complexo judiciário-midiático em não só destruir o PT, mas
em desconstruir a própria Política e a figura do político, a grande mídia
realiza o sonho de mandar às favas os intermediários – para quê ter que levar à
reboque os políticos, roteirizando e turbinando suas pautas, se as próprios
produtos televisivas podem assumir o protagonismo das ações?
Até aqui a
grande mídia tem realizado um trabalho hercúleo de alavancar políticos canastrões
com expressões tão confiáveis como a de um vendedor de carros usados.
Desajeitados diante de câmeras e teleprompters, excessivamente vaidosos diante
da presença de repórteres, boquirrotos, desajeitadamente empolados. E alguns
com um português parnasiano e cheio de mesóclises.
Grande mídia quer se livrar dos seus intermediários canastrões e boquirrotos |
O “proto-coxinha”
Que a Política é
tributária da cena teatral, não é novidade na Ciência Política. A novidade é
que o laboratório dessas eleições municipais revelaram é que a mise-en-scène
teatral será substituída pelo timing midiático – um discurso em primeira
pessoa, destinado não para o público, mas para VOCÊ! O apelo não mais para um
receptor enquanto público (o enfadonho discurso de “políticas públicas”,
“ideologias” e “programas”), mas para um receptor pensado como “proto-coxinha”:
individualista e sedento por modelos bem sucedidos de self made man.
O sucesso desse
primeiro espécime gestor-midiático testado no laboratório paulistano revela o
discurso voltado para o indivíduo e não mais para o coletivo. O discurso de
Dória desceu para as profundezas da psicologia coletiva, foi além dos chamados
“coxinhas” – esses são bem sucedidos e, como ele, dependentes das gordas verbas
públicas provenientes da Política que tanto supostamente rejeitam.
O timing
midiático de Dória encontrou um tipo-ideal ainda mais insidioso e volátil: o “proto-coxinha”:
o ressentido de não ter aquilo que acha que merece, em busca de modelos de
sucesso, campeões da meritocracia. Em síntese, o protótipo do Estado
“locomotiva da nação”, aquele que acredita no sucesso e não em qualidade de
vida – crê que a sua fortuna pessoal viria de si mesmo e não de uma política
pública ou qualquer tipo de projeto coletivo ou política pública.
Mas ironicamente
para realizar esse projeto de criar o primeiro gestor-midiático na política, a
grande mídia teve que primeiro servir-se dos políticos tradicionais para a desconstrução
da própria política. Isso foi necessário para criar uma onda despolitizadora
perfeita para que o gestor-midiático surfasse em um tsunami anti-política.
Doria Jr. e o “zeitgeist”
Por isso, os
números das eleições municipais que apontam votos brancos, nulos e abstenções
superior aos votos do primeiro colocado João Dória Jr. (1/3 do eleitorado se
recusou a votar) não surpreende.
Por isso o
discurso do gestor-midiático Dória Jr. foi perfeito para capturar o zeitgeist
do momento: pouco falou em políticas metropolitanas ou práticas modernas das
grandes capitais do mundo. Pensando nas funções da linguagem, seu discurso foi
apenas fático e conativo – colcha de retalhos de slogans como “acelera São
Paulo” (o apelo fático para apenas manter contato, assim como o singelo “alô”
telefônico) e o apelo não ao coletivo (nós ou vocês), mas ao individual (VOCÊ!)
– VOCÊ! Vítima da “indústria da multa”, dos “petralhas”, do “IPTU”, da “gestão
ineficiente” e assim por diante.
Enquanto o
político tradicional, imerso no seu papel da mise-en-scène teatral,
tenta ser messiânico ou épico (apela para a “Nação”, o “Povo”, a “Pátria”, o
“cidadão”), o gestor-midiático fala para o indivíduo, seja pensado como
consumidor (Russomano) ou como vítima de gestores ineficientes – Doria Jr.
Com o
gestor-midiático finalmente a mídia consegue colocar um “político” em sintonia
com a sua própria linguagem apelativa em segunda pessoa (“TU”, “VOCÊ”),
essência da linguagem dos meio televisivo. Afinal, o que é o teleprompter? Senão
a simulação da intimidade, da conversa olho no olho, escondendo o fato de que o
emissor fala para alguém ausente.
Toda revolução será traída
Mas também a bem
sucedida experiência com o novo espécime midiático João Dória Jr. revela que todas
revoluções foram, desde o início, revoluções traídas: síndrome que
historicamente as esquerdas não conseguem superar.
É irônico vermos
o indiciamento do ex-ministro das Comunicações Paulo Bernardo e a prisão do
ex-ministro Antônio Palocci pela
Operação Lava Jato na chamada “Operação Boca de Urna” que turbinou a onda na
qual Doria Jr. surfou.
O primeiro,
quando teve a oportunidade de promulgar a Lei dos Meios, optou pela
continuidade da orientação “técnica” e “republicana”.
Enquanto Palocci
se esforçava em agradar os grandes conglomerados de mídia. Talvez achassem que
teriam um lugarzinho na Casa Grande também.
As esquerdas parecem ainda pensar a comunicação
na era da impressão tipográfica. Enquanto a Direita é um produto da era
eletromagnética do rádio e da televisão. Seu despertar foi a estetização da
política através radiodifusão e do cinema no nazi-fascismo.
Enquanto as
esquerdas se orientam pelos aspectos, por assim dizer, “iluministas” ou
“conteudistas” da comunicação (reflexão, conscientização, pensamento crítico
etc., funções referenciais da comunicação) a Direita compreendeu muito
bem a natureza fática e conativa das comunicações do século XX –
atmosferas de opinião, o discurso direto em segunda pessoa e todo o repertório
da canastrice que faz referencia não mais ao teatro ou ópera bufa (como fazem
os políticos tradicionais), mas aos personagens do cinema e TV. Hitler e
Mussolini que o digam.
Doria Jr. e o meme do Rei do Camarote
Por isso João
Doria Jr. é o resultado dessa bem sucedida estratégia fática de criação de
atmosferas de opinião depois dos últimos anos de incansável guerrilha com
bombas semióticas: em primeiro lugar na mídia tradicional. E depois, nas redes
sociais com as guerrilhas de memes como, por exemplo, o meme do “Gigante” do
Luciano Huck e o meme do “Rei do Camarote” – sobre isso clique aqui.
Doria Jr. é a
concretização desses memes “coxinhas” para eleitores “proto-coxinhas”. Huck e o
“rei do camarote” e empresário Alexander posando ao lado de uma Ferrari para
“pegar gatinhas” são modelos self made man que lentamente criaram um
clima de opinião para a experiência pioneira paulistana.
O primeiro
espécime gestor-midiático foi a conclusão final desse silogismo memético: com
seus canastríssimos sapatos italianos e
cashmeres jogados sobre os ombros, conseguiu a sintonia perfeita com o clima de
opinião diligentemente criado pela grande mídia.
Enquanto isso,
as esquerdas lamentam mais uma revolução traída.
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