quinta-feira, julho 21, 2016

Para a TV Globo o Japão é a reserva moral brasileira


Toda vez que o Brasil entra em crise econômica, a TV Globo convoca seu correspondente da época em Tóquio para intensificar matérias com edificantes lições morais sobre virtudes que supostamente faltariam para um país como o nosso que nunca dá certo: o modelo de educação mundial, a disciplina, a disposição para o trabalho, abnegação e auto-sacrifício. É a mitologia do “milagre japonês”. Os ocidentais tentam transformar o Japão em um espelho de si mesmos com seus tradicionais clichês. Mas não conseguem entender o gênio da cultura japonesa: a capacidade de imitar o ocidente sem absorver sua essência – o Japão consegue entrar na órbita cultural, tecnológica e comercial ocidental levando ao extremo um velho princípio taoista de que a vitória não se consegue afirmando-se, mas, pelo contrário, desvalorizando-se, cedendo. Assim como no jiu-jitsu onde não se vence impondo sua própria força ou valor, mas absorvendo a força do oponente.

Nesses tempos bicudos, onde as únicas alternativas para o País repercutidas pela grande imprensa como soluções para a crise econômica autorrealizável seriam o aumento da jornada de trabalho para 80 horas semanais, a “flexilibilização” (delicioso eufemismo) das leis trabalhistas e projeto da escola sem partido político, o Japão parece surgir como a grande reserva moral: modelo cultural e comportamental onde teria tudo aquilo que supostamente faltaria em nós para sermos uma grande potencia econômica e tecnológica, tal como aquele país.

Principalmente para a TV Globo, que tem o seu correspondente Márcio Gomes sempre  a postos em Tóquio com uma pauta pronta para mostrar como os japoneses são tão disciplinados, trabalhadores, tecnologizados e exóticos.

O script da grande mídia


O Cinegnose veio nesses últimos anos desenvolvendo a série de análises das “bombas semióticas” onde chegou a duas conclusões: primeiro, esses dispositivos semióticos fizeram parte de um contexto maior que os analistas políticos chamam de “guerra híbrida” – estratégia semiótica da geopolítica norte-americana combinando engenharia de opinião pública com indução a “revoluções coloridas” em países do BRICS - sobre isso clique aqui.

E segundo, de que a grande mídia possui um script pré-definido composto por três plots básicos: crise econômica + corrupção + ameaça bolivariana (podendo variar para ameaça terrorista) - sobre isso clique aqui.


Quando passamos para o noticiário internacional, a pauta fica mais “cor-de-rosa”: amenidades em torno da família real inglesa; a limpeza e disciplina do povo japonês; ou a “festa da democracia” norte-americana - a cobertura dos correspondentes da Globo News sobre a Convenção do Partido Republicano está impagável: alegres e hiperativos como fossem turistas visitando pela primeira vez o evento de um “país de primeiro mundo”.

É claro que deve haver o “mal”: crise econômica e terrorismo internacional são tratados como fossem fenômenos naturais, assim como o aquecimento global, terremotos e tsunamis – atiradores descritos como fossem “lobos solitários” e muçulmanos fanáticos que precisam ser eliminados por algum tipo de limpeza étnica, ética ou religiosa.

Quando o “mal” manifesta-se (atentados e vítimas) mostra-se como  povo desses países é heroico, resistente e organizado diante das adversidades: pessoas colocando flores nos locais de atentados, entoando hinos e assim por diante.

A mitologia do milagre japonês


Mas com o Japão vai além. Nos telejornais, principalmente da TV Globo, a exótica terra das animes, cosplayers, hashis e sushis se transforma em “Japão Inc.”, a terra do milagre de um país destruído por bombas nucleares na Segunda Guerra Mundial e que se transformou em potência mundial.

Por exemplo, após o terremoto seguido de tsunami ter devastado parte do seu território em 2011, e ainda seguido por vazamento de radiação na usina nuclear de Fukushima, imagens da Globo davam destaque para as filas disciplinadas de moradores da região para receber doações de roupas e alimentos. Sempre a angulação das reportagens era para destacar a abnegação a capacidade de auto-sacrifício e espírito coletivo.

Bem diferente de outros acidentes nucleares como, por exemplo, Chernobyl em 1986 na União Soviética: mostrado pela mídia internacional como resultado da ineficiência de um Estado comunista, além de preparação de terreno para o fim próximo do próprio bloco comunista.

Filme "Fábrica de Loucuras" (1986)

Filmes como Fábrica de Loucuras (Gung Ho, 1986) ajudaram a criar o mito econômico do milagre japonês: uma comédia que conta os percalços de uma fábrica de automóveis em crise e que convoca a ajuda de técnicos japoneses.

A mitologia do milagre japonês se iniciou nas faculdades de economia e administração: planejamento econômico, modelo mundial de educação, utilização racional da força de trabalho, sistema monetário adequado à economia etc. Chegando ainda a supostos fatores étnicos-culturais milenares como “espírito de poupança”, a disposição para o trabalho disciplinado, o respeito pelos mais velhos, espírito do sacrifício pelo interesse coletivo e assim por diante.

Os clichês globais sobre o Japão


No Brasil, sempre nos momentos quando o País passa por crises econômicas e políticas, a grande imprensa intensifica a produção de matérias sobre como devemos nos mirar no exemplo japonês. E agora vivemos outro pico de matérias de espírito construtivo sobre aquele país.

Na Globo as matérias recentes vão desde o tema sobre como o Japão é um modelo de educação mundial (“onde ganham confiança para irem mais longe...”) até de cunho metalinguístico: a vida dos correspondentes Márcio Gomes e Roberto Kovalick no país “que une o moderno e o tradicional, tudo certinho...”. E toma imagens de japoneses perfilados e se curvando a estrangeiros em sinal de boas vindas “mostrando alegria e respeito”, robôs, tecnologia. “Nada é feito para falhar”, fala o surpreendido Roberto Kovalick – veja abaixo as reportagens.

Essa mitologia do Japão Inc. acabou tornando-se uma ideia próxima do self made man (a convicção de que o sucesso pessoal se faz pelos próprios esforços pessoais), dessa vez aplicado para o progresso de uma nação.  

Essa postagem nem vai entrar nas evidências econômicas que desmentem a mitologia do milagre japonês – proteção comercial durante a Guerra Fria onde os EUA mantinham propositalmente o déficit comercial com aquele país; crescimento do desemprego para quebrar o poder de negociação dos sindicatos;  sofisticação tecnológica voltada para a descartabilidade dos postos de trabalho; crescimento dos trabalhos temporários, acabando com o mito do “emprego vitalício” e o “espírito familiar” das empresas japonesas etc.


O gênio da cultura japonesa


Vamos apenas ficar nos aspectos culturais. Os atentos correspondentes internacionais da TV Globo, com o seu olhar estrangeiro e ocidentalizado, parecem cair na armadilha do “gênio” da cultura japonesa: a noção dada à palavra “sentido”, bem diferente do conceito ocidental.

Enquanto os solertes jornalistas globais procuram um “sentido” para a cultura japonesa (progresso, cerimoniosidade, refinamento, americanização, disciplina, alta tecnologia), o sentido para os japoneses está em outra cena.

Para um ocidental a palavra “sentido” tem um forte significado ontológico (a “essência”, o porquê das coisas etc.). Por isso, ao conhecer o Japão buscamos lá a confirmação das ideologias como meritocracia, progresso, capitalismo, tecnologia etc. Procuram-se lições ou o espelho ideal das virtudes que supostamente estariam em falta em países como o nosso.

Mas a palavra “sentido” tem um outro significado na cultura japonesa: significa direção para onde um fluxo aponta, movimento, deslocamento. Não mais essência, mas forma e estilização.

Talvez aquele que explicou melhor essa lógica cultural japonesa tenha sido o filósofo e escritor catalão Rubert de Ventós no seu livro De La Modernidad. Para ele, o gênio japonês estaria no mimetismo, na imitação – o Japão consegue entrar na órbita cultural, tecnológica e comercial ocidental levando ao extremo um velho princípio taoista de que a vitória não se consegue afirmando-se, mas, pelo contrário, desvalorizando-se, cedendo-se. Assim como no jiu-jitsu onde não se vence impondo sua própria força ou valor, mas absorvendo a força do oponente.

Filme "Encontros e Desencontros" (2003)

O Japão copia hoje a tecnologia exatamente como há séculos vem “copiando” religiões. Um secular e sutil desprezo por “mensagens” ou “conteúdos” do que vem de fora. Tudo é copiado, imitado para depois ser filtrado o conteúdo e transformado em forma ou estilização vazia voltada aos seus próprios interesses.

Um filme recente que ilustra essa tese é o filme Encontros e Desencontros (Lost in Translation, 2003) onde percebemos a inacreditável estilização da cultura pop ocidental no Japão: programas de TV com apresentadores freaks estilizando de forma caricata a linguagem MTV, karaokês onde cantores amadores encarnam punks, metaleiros e românticos.

Um país como o Brasil é muito mais americanizado do que a cultura japonesa. Ao contrário daqui não querem entender o sentido em ser punk, metaleiro ou qualquer outra coisa importada. Apenas absorvem, ritualizam e formalizam para incorporar às suas próprias necessidades.

A modernidade não convive tranquilamente com a tradição milenar, como quer estereotipar o olhar ocidental dos correspondentes da Globo, para justificar o porquê do Brasil nunca dar certo. Na verdade a tradição estiliza tudo o que vem de fora, inclusive o próprio Capitalismo e sua cultura pop, para criar uma grande aparência para os ocidentais. Mas no fundo dessas aparências está o gênio japonês do mimetismo e superficialidade das aparências.

Somente os ocidentais veem no Japão o espelho triunfante de si mesmos.




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