Toda
vez que o Brasil entra em crise econômica, a TV Globo convoca seu
correspondente da época em Tóquio para intensificar matérias com edificantes
lições morais sobre virtudes que supostamente faltariam para um país como o
nosso que nunca dá certo: o modelo de educação mundial, a disciplina, a
disposição para o trabalho, abnegação e auto-sacrifício. É a mitologia do
“milagre japonês”. Os ocidentais tentam transformar o Japão em um espelho de si
mesmos com seus tradicionais clichês. Mas não conseguem entender o gênio da
cultura japonesa: a capacidade de imitar o ocidente sem absorver sua essência –
o Japão consegue entrar na órbita cultural, tecnológica e comercial ocidental
levando ao extremo um velho princípio taoista de que a vitória não se consegue
afirmando-se, mas, pelo contrário, desvalorizando-se, cedendo. Assim como no
jiu-jitsu onde não se vence impondo sua própria força ou valor, mas absorvendo
a força do oponente.
Nesses tempos
bicudos, onde as únicas alternativas para o País repercutidas pela grande
imprensa como soluções para a crise econômica autorrealizável seriam o aumento
da jornada de trabalho para 80 horas semanais, a “flexilibilização” (delicioso
eufemismo) das leis trabalhistas e projeto da escola sem partido político, o
Japão parece surgir como a grande reserva moral: modelo cultural e
comportamental onde teria tudo aquilo que supostamente faltaria em nós para
sermos uma grande potencia econômica e tecnológica, tal como aquele país.
Principalmente
para a TV Globo, que tem o seu correspondente Márcio Gomes sempre a postos em Tóquio com uma pauta pronta para
mostrar como os japoneses são tão disciplinados, trabalhadores, tecnologizados
e exóticos.
O script da grande mídia
O Cinegnose veio nesses últimos anos
desenvolvendo a série de análises das “bombas semióticas” onde chegou a duas
conclusões: primeiro, esses dispositivos semióticos fizeram parte de um
contexto maior que os analistas políticos chamam de “guerra híbrida” –
estratégia semiótica da geopolítica norte-americana combinando engenharia de
opinião pública com indução a “revoluções coloridas” em países do BRICS - sobre isso clique aqui.
E segundo, de que
a grande mídia possui um script pré-definido composto por três plots básicos:
crise econômica + corrupção + ameaça bolivariana (podendo variar para ameaça terrorista) - sobre isso clique aqui.
Quando passamos
para o noticiário internacional, a pauta fica mais “cor-de-rosa”: amenidades em
torno da família real inglesa; a limpeza e disciplina do povo japonês; ou a
“festa da democracia” norte-americana - a cobertura dos correspondentes da
Globo News sobre a Convenção do Partido Republicano está impagável: alegres e
hiperativos como fossem turistas visitando pela primeira vez o evento de um
“país de primeiro mundo”.
É claro que deve
haver o “mal”: crise econômica e terrorismo internacional são tratados como
fossem fenômenos naturais, assim como o aquecimento global, terremotos e
tsunamis – atiradores descritos como fossem “lobos solitários” e muçulmanos
fanáticos que precisam ser eliminados por algum tipo de limpeza étnica, ética
ou religiosa.
Quando o “mal”
manifesta-se (atentados e vítimas) mostra-se como povo desses países é heroico, resistente e
organizado diante das adversidades: pessoas colocando flores nos locais de
atentados, entoando hinos e assim por diante.
A mitologia do milagre japonês
Mas com o Japão
vai além. Nos telejornais, principalmente da TV Globo, a exótica terra das
animes, cosplayers, hashis e sushis se transforma em “Japão Inc.”, a terra do
milagre de um país destruído por bombas nucleares na Segunda Guerra Mundial e que
se transformou em potência mundial.
Por exemplo, após
o terremoto seguido de tsunami ter devastado parte do seu território em 2011, e
ainda seguido por vazamento de radiação na usina nuclear de Fukushima, imagens
da Globo davam destaque para as filas disciplinadas de moradores da região para
receber doações de roupas e alimentos. Sempre a angulação das reportagens era
para destacar a abnegação a capacidade de auto-sacrifício e espírito coletivo.
Bem diferente de
outros acidentes nucleares como, por exemplo, Chernobyl em 1986 na União
Soviética: mostrado pela mídia internacional como resultado da ineficiência de
um Estado comunista, além de preparação de terreno para o fim próximo do
próprio bloco comunista.
Filme "Fábrica de Loucuras" (1986) |
Filmes como Fábrica de Loucuras (Gung Ho, 1986) ajudaram a criar o mito
econômico do milagre japonês: uma comédia que conta os percalços de uma fábrica
de automóveis em crise e que convoca a ajuda de técnicos japoneses.
A mitologia do
milagre japonês se iniciou nas faculdades de economia e administração:
planejamento econômico, modelo mundial de educação, utilização racional da
força de trabalho, sistema monetário adequado à economia etc. Chegando ainda a
supostos fatores étnicos-culturais milenares como “espírito de poupança”, a
disposição para o trabalho disciplinado, o respeito pelos mais velhos, espírito
do sacrifício pelo interesse coletivo e assim por diante.
Os clichês globais sobre o Japão
No Brasil, sempre
nos momentos quando o País passa por crises econômicas e políticas, a grande
imprensa intensifica a produção de matérias sobre como devemos nos mirar no
exemplo japonês. E agora vivemos outro pico de matérias de espírito construtivo
sobre aquele país.
Na Globo as
matérias recentes vão desde o tema sobre como o Japão é um modelo de educação
mundial (“onde ganham confiança para irem mais longe...”) até de cunho
metalinguístico: a vida dos correspondentes Márcio Gomes e Roberto Kovalick no
país “que une o moderno e o tradicional, tudo certinho...”. E toma imagens de japoneses
perfilados e se curvando a estrangeiros em sinal de boas vindas “mostrando
alegria e respeito”, robôs, tecnologia. “Nada é feito para falhar”, fala o
surpreendido Roberto Kovalick – veja abaixo as reportagens.
Essa mitologia do
Japão Inc. acabou tornando-se uma ideia próxima do self made man (a convicção de que o sucesso pessoal se faz pelos
próprios esforços pessoais), dessa vez aplicado para o progresso de uma nação.
Essa postagem nem
vai entrar nas evidências econômicas que desmentem a mitologia do milagre japonês
– proteção comercial durante a Guerra Fria onde os EUA mantinham
propositalmente o déficit comercial com aquele país; crescimento do desemprego
para quebrar o poder de negociação dos sindicatos; sofisticação tecnológica voltada para a
descartabilidade dos postos de trabalho; crescimento dos trabalhos temporários,
acabando com o mito do “emprego vitalício” e o “espírito familiar” das empresas
japonesas etc.
O gênio da cultura japonesa
Vamos apenas
ficar nos aspectos culturais. Os atentos correspondentes internacionais da TV
Globo, com o seu olhar estrangeiro e ocidentalizado, parecem cair na armadilha
do “gênio” da cultura japonesa: a noção dada à palavra “sentido”, bem diferente
do conceito ocidental.
Enquanto os
solertes jornalistas globais procuram um “sentido” para a cultura japonesa
(progresso, cerimoniosidade, refinamento, americanização, disciplina, alta
tecnologia), o sentido para os japoneses está em outra cena.
Para um ocidental
a palavra “sentido” tem um forte significado ontológico (a “essência”, o porquê
das coisas etc.). Por isso, ao conhecer o Japão buscamos lá a confirmação das
ideologias como meritocracia, progresso, capitalismo, tecnologia etc.
Procuram-se lições ou o espelho ideal das virtudes que supostamente estariam em
falta em países como o nosso.
Mas a palavra
“sentido” tem um outro significado na cultura japonesa: significa direção para
onde um fluxo aponta, movimento, deslocamento. Não mais essência, mas forma e estilização.
Talvez aquele que
explicou melhor essa lógica cultural japonesa tenha sido o filósofo e escritor
catalão Rubert de Ventós no seu livro De
La Modernidad. Para ele, o gênio japonês estaria no mimetismo, na imitação
– o Japão consegue entrar na órbita cultural, tecnológica e comercial ocidental
levando ao extremo um velho princípio taoista de que a vitória não se consegue
afirmando-se, mas, pelo contrário, desvalorizando-se, cedendo-se. Assim como no
jiu-jitsu onde não se vence impondo sua própria força ou valor, mas absorvendo
a força do oponente.
Filme "Encontros e Desencontros" (2003) |
O Japão copia
hoje a tecnologia exatamente como há séculos vem “copiando” religiões. Um
secular e sutil desprezo por “mensagens” ou “conteúdos” do que vem de fora.
Tudo é copiado, imitado para depois ser filtrado o conteúdo e transformado em
forma ou estilização vazia voltada aos seus próprios interesses.
Um filme recente
que ilustra essa tese é o filme Encontros
e Desencontros (Lost in Translation,
2003) onde percebemos a inacreditável estilização da cultura pop ocidental no
Japão: programas de TV com apresentadores freaks estilizando de forma caricata
a linguagem MTV, karaokês onde cantores amadores encarnam punks, metaleiros e
românticos.
Um país como o
Brasil é muito mais americanizado do que a cultura japonesa. Ao contrário daqui
não querem entender o sentido em ser punk, metaleiro ou qualquer outra coisa
importada. Apenas absorvem, ritualizam e formalizam para incorporar às suas
próprias necessidades.
A modernidade não
convive tranquilamente com a tradição milenar, como quer estereotipar o olhar
ocidental dos correspondentes da Globo, para justificar o porquê do Brasil
nunca dar certo. Na verdade a tradição estiliza tudo o que vem de fora,
inclusive o próprio Capitalismo e sua cultura pop, para criar uma grande
aparência para os ocidentais. Mas no fundo dessas aparências está o gênio
japonês do mimetismo e superficialidade das aparências.
Somente os
ocidentais veem no Japão o espelho triunfante de si mesmos.
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