O gênero
terror é um ótimo objeto para as análises de psicanálise no cinema.
Principalmente porque a sua matriz é essencialmente edipiana: dramas envolvendo
culpa, incesto, a sedução da inocência, sexo culpado (sadomasoquista), a
percepção corpo fragmentada do corpo pelo infante pré-formação do ego (daí o porquê
do fascínio pelos corpos despedaçados, vísceras e sangue no cinema de terror)
etc.
E,
principalmente, o Mal e o Estranho como os nossos próprios impulsos aos quais
deveremos renunciar na resolução do Édipo e na entrada ao mundo da Cultura. Os
filmes de terror dramatizariam a nossa própria luta interna em ter que
renunciar a Natureza (prazer, impulso, gratificação imediata) em nome da
Cultura (renúncia e sublimação).
O gênero
terror nunca teve uma tradição no cinema brasileiro, mas apenas poucos nomes. O
primeiro deles Zé do Caixão nos anos 1960, passando por Walter Hugo Khouri (Anjo da Noite e As Filhas do Fogo) e
Carlos Christensen (Enigma para Demônios) na década de 1970 e nos anos 1980 a dupla José Antônio
Garcia e Ícaro Martins (A Estrela Nua,
1984) e Antonio Carlos Fontoura (Espelho
de Carne, 1984).
Aos poucos,
filmes de uma nova geração de cineastas que experimentam esse gênero estão
chegando ao circuito comercial atualmente dominado pelas comédias blockbusters da Globo Filmes. A dupla
Marco Dutra e Juliana Rojas é um exemplo: construíram uma série de curtas do
gênero Fantástico para chegar ao primeiro longa Trabalhar Cansa (2011, já analisado por esse blog, clique aqui). Se
nesse filme o terror é mais sugerido, tendo como pano de fundo um drama social,
em Quando Eu Era Vivo Marco Dutra
aprofunda no suspense e terror, aproximando-se da iconografia e clichês do
terror mais hollywoodiano.
Por
abandonar (ou nem tanto, como veremos) o drama social como pano de fundo, Marco
Dutra mergulha na essência da matriz edipiana do terror: o mal estar e a tensão
não resolvida entre filho, pai e mãe. Dutra segue à risca as fórmulas do gênero
terror, porém com um diferencial: assim como em Trabalhar Cansa, o diretor parece fazer um estudo psicográfico ou
etnográfico das classes médias brasileiras.
Em Trabalhar Cansa, o mal estar do trabalho
precarizado e do desemprego associado a busca de explicações no sobrenatural e
na magia; em Quando Eu Era Vivo, o
drama edipiano tardio de um filho recém-separado que retorna à casa do pai para
ser apoderado por alguma energia sinistra que vem de um passado não resolvido.
O Filme
O filme
acompanha Júnior (Marat Descartes) retornando à casa do pai viúvo chamado
Sênior (Antônio Fagundes), depois do fim de um casamento, o desemprego e a luta
na Justiça pela guarda do filho. O pai o recebe, mas percebemos que há um mal
estar difuso entre os dois. Sênior tenta arrumar vaga em Hotel e contatos de
trabalho para o filho, mas Júnior recusa tudo: ele prefere morar em um
quartinho na área de serviço do apartamento ao descobrir lá reminiscências
escondidas da falecida mãe.
Aos poucos
descobrimos que ela tinha uma forte tendência para o ocultismo, o que vai levar
a narrativa aos elementos consagrados do gênero: rabiscos macabros de criança,
cantigas, estranhas, mensagens cifradas, bibelôs e objetos de decoração sinistramente
kitschs e, claro, bonecos de pano que dão o toque da inocência ultrajada, um
dos leitmotifs edipianos do gênero terror.
Sênior aluga
um quarto para Bruna (Sandy Leah), uma estudante de música e canto. A escolha
inusitada de Sandy para o filme não poderia ter sido mais acertada: segue à
risca o manual do gênero ao escolher uma beleza de porcelana com sua voz doce
que se torna particularmente perturbadora em uma cena envolvendo magia negra.
Mais uma vez o tema edipiano da inocência ultrajada. Toda a sua beleza e pureza
aos poucos vai se convertendo em perversão. Enquanto sua voz suave vai aos
poucos adquirindo uma tonalidade macabra.
Júnior
acredita que sua mãe está lhe querendo dizer alguma coisa. Os estranhos vídeos
que encontra mostrando ele e seu irmão na infância envolvidos em estranhos
rituais com sua mãe (como, por exemplo, a produção das cabeças de gesso dos
garotos em um ritual que se torna ainda mais sinistro nas imagens granuladas e
de baixa qualidade em VHS) só reforçam sua curiosidade que evolui para a
obsessão e loucura.
A tensão edipiana
Ao contrário
do terror hollywoodiano cheio de reviravoltas, em Quando Eu Era Vivo acompanhamos um processo lento cuja fotografia e
design de áudio são fundamentais para a criação progressiva de uma atmosfera
claustrofóbica aterrorizante que faz lembrar o terror “sala-quarto-cozinha”
como em O Inquilino e O Bebê de Rosemary de Roman Polanski – o
filme começa com um apartamento iluminado daquelas lâmpadas econômicas de
classe média para evoluir para a escuridão, transformando um pequeno
apartamento em um casarão gótico em constante clima de velório.
A tensão
edipiana tardia sugerida pela narrativa é curiosa, pois não reedita as
clássicas relações com a mãe. O drama está concentrado na relação pai e filho.
O apego do filho à memória da mãe, a forma como espalha seus objetos kitschs
novamente pela casa, tentando reencenar o passado, apontam o tema moderno da
dificuldade em introjetar o pai.
“Esse homem
não é o meu pai”, diz constantemente Júnior, sugerindo a possibilidade de um
parricídio. Júnior odeia o pai por ele nunca ter compactuado com as “manias”
ocultistas e religiosas da mãe. Já vimos em postagem anterior que ausência do
pai (física e/ou simbólica) faz parte do processo de esvaziamento simbólico das
funções de socialização da família atual. A introjeção do Pai (Cultura e a Lei)
passam problematicamente para os meios de comunicação e sociedade de consumo –
sobre isso clique
aqui.
A “superstição secundária”
Por isso, a
introjeção dificultada do Pai fragilizaria um ego que se tornaria cada vez mais
aberto à irracionalidade, viciosidade e dependência emocional – o terreno
fértil para aquilo que o pesquisador alemão Theodor Adorno chamava de
“superstição secundária”.
No filme Quando Eu Era Vivo é marcante o
ecletismo religioso-espiritual de classe média: um amálgama de catolicismo,
espiritualismo new age, magia negra, espiritismo kardecista e por aí vai. Estátua
de Nossa Senhora Aparecida, alinhamento de chakras, ritual de magia negra,
quiromancia vão se acumulando de forma delirante.
Esse
ecletismo em que se apega Júnior se reflete no acúmulo de bibelôs kitschs que
ele espalha pelo apartamento do pai, numa tentativa simbólica de expulsá-lo.
O complexo
de Édipo na psicanálise não se refere tanto aos pais literais, mas a um drama
da espécie humana que é reencenado em cada biografia individual e que nos
separaria para sempre do mundo natural: o drama do abandono da Natureza (Mãe)
para a introjeção da Cultura (Pai). Sobre esse drama filogenético, outra drama
está sendo escrito pela sociedade moderna: o enfraquecimento da figura paterna
e a introjeção precária da Cultura. Sem bases racionais, o ego enfraquecido
facilmente se apega a explicações mágicas do mundo – a negação ou esconjuração
da realidade por meio de uma “superstição secundária” marcada pelo pastiche
espiritual-religioso.
Dessa
maneira, Marco Dutra constrói uma lenta narrativa de terror baseada nos
estranhamento de uma classe média frente a realidade que a corrói: o
desemprego, o fracasso conjugal etc. Sênior tenta negar a realidade por meio
dos halteres e novas namoradas; Júnior, mergulhando no ocultismo que ele
reconstrói de forma pastiche.
Ficha Técnica |
Título: Quando
Eu Era Vivo
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Diretor:
Marco Dutra
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Roteiro:
Marco Dutra e Gabriela Amaral baseado no livro “A Arte de produzir Efeitos
sem Causa” de Lourenço Mutarelli
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Elenco: Marat
Descartes, Antônio Fagundes, Sandy Leah, Gilda Nomacce, Helena Albergaria
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Produção:
Camisa Treze e RT Features
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Distribuição:
Vitrine Filmes
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Ano:
2014
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País: Brasil
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