Desde a ideia do amor ao próximo transmitida por Jesus, a
tragédia transformou-se em farsa: a caridade transformou-se em filantropia
para, nos tempos cínicos atuais, finalmente se converter em marketing social.
Esse é o tema do filme de Sérgio Bianchi “Quanto Vale ou é por Quilo?” (2005).
Inspirando-se num conto de Machado de Assis e em processos judiciais do século
XVIII disponíveis no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Bianchi faz de uma
narrativa que mistura sarcasmo e drama um flagrante de como a “escravidão
moderna” perpetua as formas coloniais de dominação através do chamado Terceiro
Setor com suas ONGs. Partindo do mito da exclusão e marginalidade, o marketing
social esquece de que a miséria já está há muito tempo integrada: como oportunidade
de lucro, lavagem de dinheiro e formas irregulares de captação de dinheiro público.
Misericórdia,
compaixão, amor ao próximo e o perdão foram os valores civilizatórios trazidos
pela ética e moralidade cristã. As epístolas do Novo Testamento descrevem como
Jesus queria que o ódio e a indiferença fossem substituídos pelos “amar o
próximo como a si mesmo”, forma de Deus permanecer em nós.
Depois disso, a caridade
passou a ser considerada obra piedosa onde o autor abdicaria de toda a sua
vaidade. O anonimato é o valor máximo por ser o ato da caridade uma descoberta
íntima de Deus. As hospedarias para peregrinos de Santo Agostinho e o hospital
para vítimas da fome e epidemia em Constantinopla de São João Crisóstomo na
Idade Média foram exemplos do ascetismo como impulso voltado para o interior de
si mesmo.
Tudo muda em meados do
século XVIII quando a caridade se transforma em filantropia, entendida como a
caridade cristã laicizada: “fazer o bem” deixa de ser uma virtude cristã para
ser uma virtude social.
Por trás dessa transformação
estava o chamado ascetismo mundano,
conceito derivado da ética protestante. Na ética protestante há um componente
mundano no ascetismo pela necessidade de demonstrar não somente a Deus mas aos
outros a renúncia e sacrifício do indivíduo como forma de provar a todos ser um
merecedor das graças divinas. Por isso, a filantropia passa a ser um gesto de
utilidade e tem na publicidade a sua maior arma: a busca da visibilidade que só
acirra a rivalidade entre os benfeitores.
Mas na atualidade
descobriu-se que a filantropia pode ir além de meramente atribuir ao doador
prestígio e alívio social. Nos tempos pós-modernos ou neoliberais atuais,
descobriu-se que também pode dar lucro
ao se integrar ao fluxo dos negócios. É quando a filantropia se converte em
marketing social.
O Filme
Esse é o tema da obra ácida do
cineasta paranaense Sérgio Bianchi Quanto
Vale ou É por Quilo? Para o diretor, por trás da rotina nacional se
esconderia uma hipocrisia que esconde a dominação e a opressão das pequenas
humilhações cotidianas - veja abaixo o filme completo.
O filme foi livremente
baseado no conto de Machado de Assis Pai
contra Mãe e nos textos do historiador Nireu Cavalcanti sobre processos
judiciais do século XVIII, disponíveis no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
Bianchi quer nos mostrar
como o sistema perversamente irônico do regime escravista é hoje reencenado no
Brasil do século XXI através de uma “escravidão moderna” reeditada pela
proliferação do chamado Terceiro Setor: ONGs que assessoram grandes empresas
que descobriram que a filantropia pode ser profissionalizada e trazer lucros.
Bianchi retorna dessa forma
à ironia machadiana ao indicar que até mesmo em atividades aparentemente
virtuosas e idôneas porde haver lucros e vantagens pessoais em cima da miséria
dos despossuídos. O insólito dessa situação residiria na possibilidade de lucro
e sobrevivência de diversas ONGs por meio de falsas licitações públicas,
lavagem de dinheiro de caixa 2 de empresas em cima do mal que deveriam
combater: a pobreza.
O filme começa no século
XVIII quando senhores atrelavam ao custo da liberdade de seus escravos a um
juros crescente ao ano. Por trás da aparente boa vontade se escondia um negócio
bem lucrativo. Bianchi faz um paralelo com os tempos atuais quando uma ONG
fictícia (a Stiner Empreendimentos Sociais) superfatura a doação de
computadores ultrapassados para uma escola pública em uma favela.
Brasil é cronicamente inviável?
Mantendo a tese de que o
Brasil sofre de um mal social crônico e que condena o País ao imobilismo, ideia
presente em sua obra anterior Cronicamente
Inviável (2002), Bianchi faz uma narrativa que constantemente remete ao
passado escravista com sarcasmo e tragédia.
Herson Capri e Caco Ciocler
são os diretores da ONG chamada Stiner que presta assessoria em marketing
social a grandes empresas. Ao mesmo tempo em que a ONG ensina o caminho das
pedras para captar recursos públicos e dar à miséria uma aparência mercadológica
de otimismo, esperança e vitória (nenhuma empresa quer associar sua imagem à
dor e derrota), a Stiner enriquece por meio do projeto de “Inclusão Digital”
com superfaturamentos em cima de verbas públicas e a transformação de uma pobre
faxineira em laranja dos seus negócios.
Quanto Vale ou é por Quilo?
acerta ao mostrar o quanto os chamados “marginalizados” ou “excluídos” são na
verdade integrados e funcionais a reprodução do sistema econômico. Desde o
livro clássico O Mito da Marginalidade (Paz
e Terra, 1981) da pesquisadora
brasilianista Janice Perlman demonstrou em pesquisas empíricas feitas em favela
no Rio de Janeiro, como os favelados são funcionais ao sistema desde como reserva
de mão de obra barata, garantia de emprego de assistentes sociais, sociólogos e
urbanistas até culturalmente como insumos vitais à cultura pop de classe média
com suas gírias, música, comidas etc. – veja o caso do fenômeno atual da
“simplicidade descolada” ou dos “coxinhas 2.0” – sobre isso clique
aqui.
Tragédia e Farsa
Porém, Bianchi passa por
cima de um detalhe importante: ao querer provar a sua tese do imobilismo
cultural brasileiro, deixa de perceber uma sutil ironia – se no passado
colonial a dominação e escravidão foram vividos como tragédia, na atualidade
tudo é reencenado como farsa.
A história do capitão do
mato que recupera uma escrava grávida fugitiva para garantir a permanência do
seu filho e a paz da sua família foi uma tragédia brasileira de um passado onde
a violência era escancarada, explícita em um cotidiano violento: a religião era
um mero conforto para anestesiar a indignidade.
Hoje a escravidão é cínica e
repetida como farsa. Depois da era neoliberal dos tempos de FHC e o sucateamento
do Estado que entrega para o Terceiro Setor (que vive de projetos falidos que captam
rapidamente verbas públicas para contabilizar a pobreza como negócio) o gerenciamento das mazelas
sociais, a velha filantropia tornou-se marketing social: a pobreza dos
derrotados da meritocracia se transforma em estímulo mercadológico da
esperança.
Rostos de crianças
miseráveis sorridentes na “inclusão digital” dos vídeos publicitários da Stiner
são agora artifícios friamente calculados para a produção deliberada de efeitos
– lucro e eliminação da má consciência.
Numa linguagem de fazer a
inveja à “novilíngua” do livro 1984
do George Orwell, agora a miséria e escravidão deixam de ser tragédia para
virar oportunidade, otimismo e esperança. Numa compulsão contemporânea pela
reciclagem universal de todos os “excrementos” produzidos pela sociedade –
lixo, esgoto, embalagens, pets etc. – os pobres também são “incluídos”: sua
miséria é agora reciclada como insumo de otimismo e esperança midiática,
enquanto produz lucro e vantagens econômicas para amplos setores empresariais.
Por isso, um dos finais
imaginados para o filme por Bianchi era um governo presidido por Lula onde o
Brasil se tornaria o maior exportador de pobres para o mundo e o seu modelo de
marketing social copiado por todo o planeta. Segundo um dos roteiristas,
Eduardo Benaim, a falta de recursos e a impossibilidade técnica de filmar a
ideia conduziram a um outro final, igualmente poderoso e inspirado no conto de
Machado de Assis.
Mas a última década não
comprovaria esse final anteriormente imaginado pelos roteiristas: afinal, os
pobres estão sendo integrados na chamada “nova classe C” e na sociedade popular
de consumo. Hoje, o “marketing social” está dando lugar a um outro modismo do
cinismo corporativo: o discurso da “sustentabilidade”, novamente com inúmeras
ONGs dando assessoria.
Ficha Técnica |
Título: Quanto
Vale ou é por Quilo?
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Diretor:
Sérgio Bianchi
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Roteiro:
Sérgio Bianchi, Nilton Canito, Sabrina Anzuapegui e Eduardo Benain
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Elenco: Herson
Capri, Caco Ciocler, Silvio Guindane, Lázaro Ramos, Cláudia Mello, Antonio
Abujamra, Caio Blat
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Produção:
Agravo Produções Cinematográficas
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Distribuição:
Elo Audiovisual (DVD)
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Ano:
2005
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País: Brasil
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